Capítulo IX

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Sara


O prefeito decretou luto, e muitas pessoas compareceram ao enterro do padre Estevão. Ele sempre foi um homem reservado, mas não era de criticar ninguém, estava sempre ressaltando a importância de amar o próximo ao invés de julgá-lo. Dava ótimos conselhos e era bondoso. Ester chorava muito, assim como eu, e isso foi estranho porque ela nunca gostou dele e sempre dormia durante seus sermões. Outro fato estranho é que Morgana não desgrudou da minha quase-irmã por nenhum segundo e não era segredo pra ninguém que elas não se davam bem.

_ Eu não sabia que a avó da Mortíssia era amiga do padre. 

O comentário de Dulce me trouxe de volta. Virei e a encarei; eu não sabia que ela era católica.

_ Eles estudaram juntos, eram amigos de infância. – Fitei a senhora de cabelos escuros cobertos por um véu negro, ao lado de Morgana e Ester. Ela havia chegado minutos antes da cerimônia, parecia que carregava uma dor que não podia ser medida. Olhei para Dulce sem entender o que a trouxera ao cemitério. – Eu não esperava que você viesse.

_ Quando meu pai foi preso, o padre Estevão nos visitou quase todos os dias, ele foi um dos poucos a nos estender a mão mesmo sem sermos católicos. Ele nunca tentou nos converter, sempre disse que estava ali para nos ajudar, que era apenas um instrumento divino. Eu não esqueci o gesto dele e meu pai também não. Tenho certeza de que se ele estivesse na cidade, faria de tudo para vir ao enterro.

Desceram o caixão e as pessoas aproximavam-se para jogar flores em cima dele. Eu e Dulce também fomos. Tiago estava na beira da sepultura observando as flores. Havia lágrimas em seus olhos.

_ Vem Tiago! É perigoso ficar aí. 

Karen arrastou seu irmão para longe enquanto ele me encarava. Um arrepio percorreu meu corpo, olhei para dentro da sepultura e vi algo se mover. Pensei que fosse minha mente me pregando peças, mas o chão tremia debaixo dos meus pés. E em segundos eu não estava mais no cemitério e sim em uma aldeia. Mulheres negras com o corpo pintado me cercavam, uma menina de uns quatro anos estava sentada aos meus pés me olhando docemente.

_ Você deve matá-la, deve arrancar seu coração. – A voz infantil era firme e ao mesmo tempo doce.

_ Ouviu a profetiza, hoje você irá caçar a Devoradora de Corações. – Quem falava era minha mãe, uma mulher que eu não conhecia, até agora.

Quando dei por mim, Dulce me arrastava para longe da sepultura, para que pudessem fechá-la. Deixei-a me guiar, enquanto recuperava meus sentidos. Quando passamos pela mãe de Karen eu a reconheci, ela era minha mãe, não aqui, não agora, mas em um tempo que eu nem sabia que tinha existido.

Rebeca


Pela primeira vez, em muitos anos, eu não conseguia dominar completamente meus sentimentos; a dor e a raiva ameaçavam sair do controle, mas eu tinha que ser forte, minha neta precisava de mim, o mundo precisava de mim. Eu encontraria as meninas e o elfo ao amanhecer, mas seria difícil dormir, na verdade eu não tinha feito nada além de olhar o vazio e lembrar os bons momentos ao lado de Estevão, desde que soubera de sua morte. Olhei a chave que Morgana encontrara na batina dele e me perguntei como um simples objeto podia guardar tantos segredos. Acabei adormecendo e acordei com Morgana me abraçando. Ela não era muito carinhosa, na verdade o seu abraço tinha o objetivo de me proteger, quando na verdade, eu é quem deveria estar a protegendo. Pouco depois descemos para o café.

_ Mamãe, coma, por favor, hoje o dia será muito agitado; precisa estar alimentada. – Consenti com um aceno de cabeça e engoli uma fatia de bolo.

_ Vocês irão conosco à Igreja?

_ Sim Morgana, já está na hora de esclarecermos as coisas.

Meia hora depois, encontramos Ester na porta da igreja. Ela estava abatida, tanto quanto eu. Vi remorso em seu semblante, pois se sentia culpada pela tragédia. Quando o pequeno chegou, já estávamos na sacristia, ele entrou cauteloso e fechou a porta. O mestiço podia sentir meu poder, e provavelmente desconfiava de minhas intenções.

_ Não se preocupe meu pequeno, não vou machucá-lo. – Ele segurou a mão de minha neta e colocou-se atrás dela.

_ Por que você nos chamou aqui? – A voz de Ester era fraca.

_ Para que vocês saibam o que de fato está acontecendo. – Abri um armário usando a chave que Morgana pegara na batina de Estevão. – Entrem.

_ Você quer que entremos em um armário?

_ Não é um armário Ester, é uma passagem secreta. 

Retirei a chave da fechadura e entrei, Davi e Abigail entraram logo atrás e foram seguidos pelas crianças. Os túneis estavam iluminados por tochas e as pias de água benta estavam no lado oposto das chamas, como manda a tradição.

_ Que lugar é esse vovó?

_ Estamos embaixo da igreja. – Chegamos ao salão e os conselheiros estavam a nossa espera.

Ester


O salão estava iluminado por tochas e eu me perguntei o motivo de não usarem lâmpadas. Havia uma mesa imensa no centro, e ao seu redor pessoas com capas brancas. Na verdade eu não sei se dá para chamá-los de pessoas, a bem da verdade, estive revendo meus conceitos sobre o que é ou não humano.

_ Sejam bem vindos! – A voz era de um homem e tive certeza que já a ouvira antes. – Sentem-se, por favor. – Enquanto nos acomodávamos nas cadeiras rústicas, Tiago foi para o colo de Morgana e ela o acolheu de uma maneira que me deixou pasma. – Com a palavra a conselheira Rebeca Fernandes.

A avó mais assustadora que já conheci falou em tom de autoridade:

_ Conselheiros, convoquei essa reunião extraordinária para que saibam o que de fato aconteceu ao Confessor. Morgana, conte a eles o que houve.

Ouvi o novamente o relato sobre o que ela e Tiago fizeram antes de eu ser perseguida pela coisa, e agora me sentia ainda mais confusa. A velha me pediu para relatar às pessoas estranhas o que eu vivi e por um segundo quis fugir daquele lugar, mas algo me manteve presa, pois meus instintos diziam pra eu ficar e contar tudo. Ao descrever os acontecimentos não consegui conter as lágrimas.

_ Ele morreu por minha causa, se eu tivesse sido mais cuidadosa, se não tivesse entrado naquela plantação... Talvez... Talvez ele ainda estivesse vivo.

_ Não foi culpa sua criança. – A voz da mulher ao meu lado me fez ter um arrepio: Eleonor, a avó de Sara. Percebi o que sempre esteve a minha frente: ela não era humana. E então eu desmaiei; algo que estava acontecendo muito ultimamente.

EntrelaçadasWhere stories live. Discover now