Mini contos

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Cidadão.

Na última madrugada fiz do gramado um colchão; da raiz daquela árvore um travesseiro e do jornal de anteontem um cobertor, mas este não servia de muito, pois o frio insistia em me fazer queimar as juntas. Despertei cedo, logo às cinco da manhã, mas não fiz questão de levantar. Fiquei ali, de boa, só espiando aquela gente apressada correr para pegar seus ônibus. Já vivi a vida que eles tanto praguejam sem conhecer a verdadeira miséria.

Por que diabos estou escrevendo este texto? Por que estou contando uma porcaria de história chata?

Não faço ideia, talvez seja culpa. Mas bateu uma grande vontade de filosofar. E para que alguém leria algo rascunhado por um “zé-ninguém”? Sei lá, mas tirará de mim também este direito? Então, deixe-me usar a cabeça para algo.

Por que culpa?

Agora pouco, pensativo, estava sentando no banco da praça que fica na frente do banco onde quem tem dinheiro demais o deposita, e quem tem de menos entrega o próprio pescoço em nome de algumas cédulas de três dígitos. Ali, pensando, cheguei à conclusão que o mundo é dividido em dois tipos de pessoas: as cegas e as invisíveis.

Se isso é contraditório?

Não, não é, pois veja bem: os cegos não nos vêem porque são, bom, porque são cegos, e aqueles que não são cegos não nos vêem porque somos invisíveis. Assim é a vida: já fui cego e agora sou invisível.

O que fazia eu naquele banco?
Como já disse: filosofava.
Mas, além disso, também refletia sobre meus dias no presídio e como aquilo destruiu minha vida. Está pensando que sou algum bandido depravado, não é mesmo? Bom, se acertei, saiba bem: cometi um crime, fiquei seis anos preso, mas não fugi da espada da lei. Paguei pelos meus erros. Saí daqueles muros um homem de caráter! Quando ganhei mais uma vez a liberdade, fiquei animado. Imaginei que pagariam para mim uma passagem de volta à cidade onde moram meus familiares, eu compraria uma casa, casaria com uma mulher bacana e teria pelo menos meia dúzia de filhos. Mas tudo que ganhei foram R$12,00 dos carcereiros, uma sacola com meus pertences e o abandono do estado.

Diga oque quiser, mas perdi o telefone dos meus pais e o dinheiro que tinha não deu para a passagem. Cheguei a pedir emprestado dinheiro a pessoas que por ali passavam. Eu precisava de R$90,00, mas todas as esmolas que me deram foram as palavras “não tenho dinheiro” e “vá trabalhar, vagabundo”.

Fiquei ali, sentindo-me um fracassado solitário no meio da selva de pedra e longe dos seios da família. Mas não me desesperei. Veja bem, ainda tinha fé e dois braços fortes. Pensei em conseguir um emprego.

Deixei minha trouxa de roupas no prédio onde estava abrigado e saí a andar. Imagine-me limpo, barbeado, sorridente e cheio de fibra moral. Procurei em lojas, bares e mercados. A vaga que me fosse oferecida haveria de ser aceita. Aquela tarde foi muito feliz. Consegui uma promessa de emprego. Começaria na Segunda-feira. Mas quando cheguei para o primeiro dia de trabalho meu mundo desabou. Perguntei o porquê de tão repentina quebra de promessa. E ele me respondeu com um sorriso robótico “lhe peço desculpas, mas este estabelecimento não tem vagas para pessoas com o seu perfil”.

Cheguei a formular na mente uma resposta ou alguma pergunta do tipo “e qual seria o meu perfil”, mas limitei minha conduta a assentir, dar adeus e voltar à busca de um emprego. Encontrei outras duas vagas, mas em ambas o desfecho foi o mesmo. Eles não falaram de perfil ou que para pessoas como eu não havia trabalho ali, mas eu sei que o motivo da renuncia não era currículo pobre (terminei o ensino médio e concluí curso técnico), mas o maldito histórico criminal que não me deixa voltar a ser cego.

Aquelas últimas semanas me feriram o peito, contudo, nem mesmo não conseguindo renovar minha ficha na fundação social e tendo ido parar nos degraus da Igreja Pentecostal da região, me deixei entregar ao desânimo. Ainda tinha esperança de que, cedo ou tarde, acharia um emprego, alugaria um kitnet e em breve teria dinheiro para voltar à casa de meus pais no interior do estado. Contudo o tsunami de esperança aos poucos se tornou uma marola. Eu sucumbi.

Minha primeira noite ao relento não foi fácil. Vi as ruas que eram pisadas por pessoas atarefadas aos poucos serem tomadas por mendigos, bêbados, usuários de drogas, traficantes e prostitutas.

Certa vez fui obrigado a ler uma tal “alegoria da caverna”.

Relembrei tal período conforme a noite chegava. Eu estava cego, percebi então (ou talvez eles estivessem invisíveis). Mas, quem sabe fosse culpa da fome que me contorcia o estômago, preferi culpar a mim mesmo e aceitar que ignorar aquele mundo sombrio era gravame unicamente meu.

Por que lembrei acerca do mito da caverna?

Fui cego por muitos anos, e quando afinal vi a luz meus olhos doeram. Essa dor não era algo físico, mas psicológico. Vi no beco um tambor em chamas e ao redor dele pessoas esfarrapadas. Eles não tinham nada; eles não eram nada nem ninguém, mas oque me doía era que daquele momento em diante eu era como eles. Eu enfim não estava mais cego, contudo passei a ser invisível.

Relutei! Não queria fazer parte daquele mundo, mas antes das três da manhã, tremendo de frio, acabei me aproximando das chamas e me juntando ao circulo de cidadãos que compartilhavam uma garrafa de aguardente.

Eles me ofereceram um pouco daquela bebida. Eu recusei e a garrafa passou para as mãos do velho que estava do meu lado. Ele bebericou e passou para o próximo. Eu não queria beber daquela bebida. Seria como aceitar que eu era um mendigo. Mas quando o recipiente chegou pela terceira vez às minhas mãos não resisti e entonei um pouco daquele líquido forte. era definitivo: eu fora iniciado neste mundo.

Já que lhe contei meu passado, também contarei o presente. Naquele banco de praça senti uma grande revolta dentro do meu ser. Em todos os lugares eu era invisível, mas ali, próximo ao banco, todos me viam e temiam. Taxavam-me como um animal. Aquilo foi me irritando. Por que eles queriam tanto fazer de mim algo que eu não era?

Uma velha passou do meu lado e empinou o nariz enquanto sussurrava “vadio”.

Nada disse. Apenas fiquei observando ela se afastar e entrar no banco. Através dos vidros a vi parar diante do caixa eletrônico e sacar algumas cédulas. Meus olhos brilharam como os de um tigre. Meu peito inflou com um desejo de vingança. Esperei ela sair do banco e me levantei. Não mais raciocinava. Me sentia um justiceiro. Por algum motivo, senti-me um representante daqueles homens e mulheres invisíveis, e vi naquela velha perua a personificação de todos os gélidos zumbis cegos que preferiam jogar pães aos pombos a matar a fome de um igual que fora abandonado pela sorte.
Acompanhei sorrateiro aquela mulher. Esperei o momento certo e ele chegou. Me tornei aquilo que ela queria que eu fosse.

Mas chega!

A história acaba aqui. Cansei de escrever. E você já deve estar cansado de ler. Quem sabe logo eu apresente novos pensamentos, mas até lá lhe deixo com a seguinte conclusão: diga oque bem entender por razoável dizer, mas não pense que é muito diferente de mim. Eu tenho certeza que se alguém de chamar muitas vezes de monstro, logo você o vai surpreender gritar “BU”.

Projeto "Vamos Conversar" (1ª Temporada)Nơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ