Capítulo 19: O feitiço do mar

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Para mim, os mais fascinantes dos soans são os veans, sereias ou tritões. O nome popular em senzar significa "humanos-peixes", mas o nome erudito de delfininos é mais adequado, pois têm sangue quente e parem e amamentam os filhos. A estirpe mais conhecida e amigável é a Triteia, das costas de Atlântida. No alto mar vive a estirpe Oannes, cujos integrantes são maiores, menos humanos e mais agressivos e arredios.

Da cintura para cima, Triteias parecem quase humanos. Da cintura para baixo, são como botos, com cauda semelhante e um par de nadadeiras na altura da pelve. Torso e braços são do tamanho dos nossos ou pouco menores, mas a parte de boto é bem mais comprida que nossas pernas e isso os faz mais longos. Têm cabelos geralmente longos e encaracolados, mas nenhum pelo no restante do corpo, liso e escorregadio por uma substância oleosa segregada para facilitar a natação e protegê-la do ressecamento fora d'água. As fêmeas têm peitos iguais aos nossos. Nariz e ouvidos não têm orifícios. Respiram por um orifício atrás da cabeça e podem mergulhar muito fundo e nadar mais de cem estádios sem voltar à tona. Enxergam e ouvem tão bem dentro quanto fora d'água. Com as barbatanas laterais, movem-se fora d'água como focas. Tanto nos machos quanto nas fêmeas, os genitais ficam ocultos dentro de uma fenda bem fechada, da qual só saem quando excitados. O ânus é um buraquinho três ou quatro dedos abaixo.

Conheci o amor de uma sereia antes de minha missão na Sarna, ao participar do resgate de um poderoso cristal mágico perdido no fundo do mar durante a guerra civil, necessário para a máquina voadora do meu irmão. Correu tudo bem, mas quando voltávamos em nosso submarino, minha madrinha usou sua clarividência e nos avisou de que a armada imperial se preparava para nos abordar em busca do cristal. Para evitar um confronto, papai decidiu escondê-lo para recuperá-lo depois. A ideia era baixar um escaler e remar discretamente até a costa à noite. Como minha missão fora apenas recolher o cristal com minha psicocinese e não precisavam de mim para navegar, eu me ofereci. Ademais, eu sabia nadar e me defender melhor que a maioria dos tripulantes.

O tempo estava bom, a noite clara e a distância pequena. Eu bem poderia ter realizado o plano sem incidentes se uma baleia não tivesse saltado de surpresa e virado o bote com o cristal dentro. Algo bateu com força na minha cabeça e me debati no escuro, tonta, machucada e sem saber qual lado era para cima até um braço me agarrar pela cintura e me levar à superfície.

Ar! Por fim! Arquejei ruidosamente, antes de me acalmar e olhar minha salvadora, que me fitava, curiosa e preocupada. Uma Triteia. A falta de nariz poderia fazer supor uma voz fanha, mas não, era clara e vibrante, com uma sonoridade profunda e peculiar.

– Sangras na cabeça – disse ela, tocando-me o dolorido couro cabeludo. – Deixa-me ajudar-te a chegar a terra.

– Você é muito amável. Mas e meu bote? Não pode me ajudar a encontrá-lo?

– Partiu-se ao meio, não te servirá.

– Ai, que merda! Faltava tão pouco! Sim, vamos, paciência...

– Agarra-te em mim, assim é mais fácil.

Ela era escorregadia, mas segurei-me no cinturão de couro no qual ela levava suas coisas, tentando atrapalhar sua cauda o mínimo possível. Ela nadou ligeira na direção da costa, mas de repente estacou.

– Que foi? – senti o medo nela, mas não a causa.

– Tubarões!Dois tubarões-raposas grandes nos cercaram... O sangue os atraiu!

Entrevi ao luar as longas caudas que emergiam d'água como chicotes, larguei a sereia e saquei minha adaga. A sereia sacou de seu cinturão um punhal longo e fino.

– Tentarei espantá-los – disse ela.

Amei a coragem dela. Com sua agilidade n'água, saberia fugir dos tubarões. Não estavam atrás da sereia e sim da humana ferida e desajeitada.

As Posições da MissionáriaWhere stories live. Discover now