Capítulo 16: A canção dos anjos

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Nunca trepei com niahans ou harpias, nem conheci ninguém capaz de dar informações a esse respeito. O nome popular senzar significa "humanos-aves". Voam, põem ovos e fazem ninhos, mas amamentam os filhos e são chamados pelos especialistas de grifinos, pois não estão relacionados às verdadeiras aves e sim à família de emplumados com tetas que inclui o grifo de Agarta e o peryton de Atlântida.

Têm tórax volumosos, penas de cores diferentes de indivíduo para indivíduo, braços finos e frágeis e pés em garras. O rosto é quase humano, com olhos e nariz bem grandes, queixo pequeno e cabelos de plumas. São um pouco mais baixos que os humanos devido à postura semidobrada das pernas e bem mais leves. As asas são imensas, cada uma delas bem maior que sua estatura. Os corpos são quentes como se tivessem febre. As fêmeas são maiores que os machos e têm um par de tetas discretas. A maioria vive nas montanhas do interior de Atlântida e poucas vezes vi algum deles de perto. Dizem que os pênis são pequenos e as fodas intensas e farfalhantes. Machos e fêmeas se juntam em casais duráveis e normalmente fiéis. Uma vez formado o par, raramente copulam com terceiros da própria espécie, muito menos de outras.

Niahans seduzem uns aos outros com a voz e se o desejo é correspondido, cantam em dueto até se excitarem o suficiente para a cópula. No primeiro encontro, o ritual pode durar um dia inteiro. Aí mora o perigo. Embora procurem locais retirados, às vezes o começo do concerto apanha de surpresa um transeunte despercebido. Ai dele: o efeito em humanos é avassalador. É possuído por um desejo de subir pelas paredes e impossível de aliviar pela masturbação, porque não é só sede de prazer e gozo, é uma ânsia por paixão e entrega. Se não tiver companhia, a pobre criatura é torturada por uma exaltação amorosa sem sentido, cada vez mais intensa. Os cantores, empolgados um com o outro, nem lhe notam o desespero. Então, terminam de repente o recital e a vítima cai numa depressão profunda, às vezes suicida. Nas montanhas, há muitas histórias de mortes pelo canto das e também há de amores embaraçosos, proibidos ou incestuosos por ele desencadeados quando viandantes casualmente o ouvem juntos. Poucas poções do amor são tão potentes e nenhuma tem efeito tão rápido.

Passei uma vez por essa estranha experiência. Voltava de minha estada na pousada para a cidade com as boas notícias para meus amigos soans por uma trilha entre colinas. Ainda era bem cedo quando ouvi um canto delicioso. Quando me dei conta do que era, tentei tapar os ouvidos, mas já era inútil. O som me entrava pela pele, pelas tetas, pela buceta.

A trilha, cercada de árvores altas, corria ao lado de um riacho, pelo meio de um vale estreito. Eu não podia vê-los de onde estava, mas o macho cantava de algum lugar na encosta à direita e a fêmea na da esquerda, alternadamente ou juntos, sem parar um momento. Eu deveria ter pedido socorro à minha deusa, mas não me ocorreu. Só conseguia pensar em encontrar alguém para amar desesperadamente.

Fiz como qualquer adulto faria nessa situação: sentei-me e chorei como uma criancinha abandonada. Esse dia e os seguintes teriam contado entre os piores da minha vida se a minha aflição – pelo intermédio de Chiuknawat, apesar de eu não me ter lembrado dela no sufoco – não despertassem um osquor do bosque.

A maioria dos atlantes já ouviu falar deles, mas é raro vê-los com os próprios olhos, principalmente quando se vive nas cidades. São de muitos tipos, cada um dos quais é um elo sobrenatural entre a humanidade e uma espécie animal, dedicado a protegê-la e a seu ambiente e regular suas relações com humanos. São elementais do limbo, mas podem condensar éter em uma figura visível e tangível similar a seus animais, a uma fisionomia humana, ou a aparências intermediárias às vezes parecidas com soans. Entretanto, só uma criança pequena os confundiria com seres corpóreos. Têm algo de sobrenatural na fisionomia e uma aura perceptível mesmo sem visão mágica.

Parte da missão de um xamã atlante é barganhar com osquores por ajuda em feitiços além dos próprios poderes ou para negociar em nome da comunidade a caça de animais e a derrubada de árvores ou outras interferências em sua morada. Em troca, podem pedir oferendas e favores. Fiz parte do aprendizado, mas pouco me interessara por essa parte.

O osquor se aproximou como uma nuvem serpentiforme e colorida entre as árvores antes de se materializar num naga, humano da cintura para cima, dali para baixo uma serpente de umas quatro braças de comprimento. Quando ficou mais nítido, percebi serem as cores da cobra-cuspidora, a duksé. Todo ele tinha pele lisa e brilhante, vermelha viva nas costas e flanco, ventre e peito dourados, rosto semi-humano dourado com uma máscara vermelha, olhos verdes brilhantes de pupilas verticais e longas caudas vermelhas de cobra à guisa de cabelos. Ele estendeu-me as mãos vermelhas, de escamas finas e brilhantes e garras douradas.

– Não gosto de sofrimento desnecessário – disse ele. – Quero libertar-te desse encanto e dar-te paz. Se captas meu pensamento, sabes que não te quero mal, segura-me as mãos, olha nos meus olhos e entrega-te. Ficarás imune.

Eu estava muito confusa para perscrutar sua mente como deveria, mas necessitada demais de um gesto de ternura para duvidar. Deixei-me hipnotizar. Senti um calor subir pelas minhas mãos e tomar-me inteira enquanto o mundo girava. Quando voltei a mim, minha angústia se fora. Podia ouvir os niahans perfeitamente e admirar o canto belíssimo e comovente sem ser subjugada.

Também era de novo capaz de pensar e usar meus poderes com clareza. O impulso dele havia sido o de ajudar uma desconhecida em apuros, mas ficara fascinado pela minha aura, mais notável para as entidades espirituais do que uma voz cativante ou uma bunda bonita. Ele me achava muito atraente e agora tentava um sutil feitiço de sedução.

Nada de mais, quase todo atlante crescido e minimamente interessante já foi alvo de um desses. Para alguém com meu treinamento, é fácil perceber e quebrar esse encanto, mas nem sempre convém. Assim como uma roupa, uma pintura ou um perfume especial, esse tipo de magia inclina, mas não determina. Adormece recalques e preconceitos, concentra a atenção e deixa sentimentos aflorarem. Não anula a vontade e não é propriamente uma magia de ilusão, pois nos revela algo atraente que não podíamos ou não queríamos ver. Se é cativante o suficiente para querermos ir mais fundo, desconsiderar os aspectos desagradáveis e aceitar as eventuais complicações, a escolha ainda é nossa.

No caso dele, me fazia admirar sua beleza exótica e seus modos amáveis. Poderia ter-se aproveitado da situação, mas havia me devolvido a consciência e a liberdade. Dei-me conta do sortilégio e deixei-me enlevar. De outra forma, meu impulso teria sido agradecer e me afastar logo, tanto por ser a aparência dele particularmente bizarra quanto por prevenções de minha parte. Meus poucos contatos anteriores com osquores e as lições de minha mestra sobre eles não haviam me entusiasmado. Com exceção da minha deusa, porque me sinto parte dela, me parecera melhor dedicar-me a quem fosse tão carnal e mortal quanto eu e não confiar em seres tão incompreensíveis e poderosos, mas agora me sentia confortável e aconchegada ao lado dele.  Além disso, se Chiuknawat nunca usa pessoas como meros instrumentos. Se o tinha escolhido e despertado para me ajudar, tinha em vista criar uma oportunidade para o bem de ambos ou de todos. Não tinha tanta pressa de voltar. Que rolassem os dados.

As Posições da MissionáriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora