14_ A Nave - Horta

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"Do teu rosto comerás o teu pão, até que retornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó retornarás".
Gênesis 3:19

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Elevador.

Pirron Gordimer olhava ao redor deixando transparecer um ar adepto ao método da dúvida, por pura crendice ou, mesmo fingimento. Sua atitude incrédula era confrontada pelo o que seus olhos viam. Acreditava no que via, só não podia crer, sem espanto, como a humanidade foi capaz de chegar a tal ponto.

Esteira com luzes no canto do chão, Estátua grande, meio tombada, azulada e triste; aprisionada pelas profundezas do Atlântico.

Na África do Sul, Pirron era uma espécie de líder espiritual, um guru em defesa da reencarnação; acreditava - e induzia outros a acreditar - que somos o resultado de várias vidas passadas e que um dia chegaremos ao saber profundo e nos tornaremos luz. Pirron vivia por tornar-se luz e achava que o conhecimento era chave importante nesse processo de evolução. Dominou a gravidade movido por esse desejo e planava sobre os conjuntos habitacionais de Joanesburgo juntando seguidores como galinha junta pintos.

Submarino.

Pirron desenvolveu um projeto na área de alimentação. Tinha uma rede de restaurante ligados aos seus centro-espíritas que distribuía alimento para população. Sentia-se mais útil alimentando os seus do que voando sobre suas cabeças.

Hangar de pouso.

Pirron tinha o hábito da meditação. Cruzava as pernas em posição de Buda, deixava os braços cair levemente sobre os joelhos, fechava os olhos com a coluna ereta e por horas a fio criava algo com sua mente; mundos inteiros, criaturas súditas, pensamentos de luz!

Ponte para cabine de navegação.

Pirron não tinha família. Os pais morreram. O pai já era velho e a mãe vivia doente. Não tinha esposa, mas queria uma. Esposa era apenas o meio para justificar seu desejo maior: filhos.

Cabine.

Quando Pirron viu aquele acento no meio da cabine de navegação sentiu um vazio tomar seu peito. Se alguém alí estava pré disposto a dizer não àquela missão, esse alguém era Pirron. Descobriu que em meio a tanto conhecimento, inteligência e sabedoria havia ainda uma pontada de medo. O acento denunciou o quão longe estava da compreensão, da verdade e da luz...

- Em 1952, cientistas foram capazes do domínio gravitacional por meio de tecnologia aplicada. Desde então, tal conhecimento tornou-se secreto e foi iniciado o projeto Íris. O Extraterrestre de mais de dois metros de altura que vocês viram no hangar de pouso é a mente engenhosa por trás desse projeto; Dadus está na terra desde meados do século XX, há cento e setenta anos. Ajuda-nos, desde a grande inundação, a elaborar a nave - Gambrad explicava (tentava) porque a nave era tão grande se tripulada por apenas um.

- Naquela época, não sabíamos da existência de um Império Universal. Desconhecíamos as regras da Frota Estelar. Planejamos uma viagem com uma nave com capacidade para trinta e cinco tripulantes - Continuou sua explicação. Citou Alexandre, Hitler e Napoleão para justificar o complexo de grandeza dos humanos.

Saíram da cabine e desceram pela ponte ao lado oposto. Era como se fosse o segundo andar do hangar de pouso. Era tão grande quanto. Depararam-se com uma horta imensa com toda espécie de sementes e raízes. Havia um sistema automático de irrigação. Raios artificiais cuidavam da fotossíntese. Colher e armazenar eram os únicos trabalhos. Comer é uma obra que realizamos com prazer sem perceber, após o suor de nosso rosto.

- Há um espaço amplo para armazenamento de alimento acoplado ao laboratório. Há sementes e raízes lá o suficiente para uma jornada de oito anos. Como vocês ficarão apenas cinco, não morrerão de fome! - Gambrad ironizou o tempo de duração da missão no seu tom de voz usando a palavra "apenas" - Íris fará todo o cálculo, tanto de plantação quanto o de colheita.

Estava calculado também a quantidade de água e todo o processo de seu reaproveitamento.

Maruan pensava o tempo todo em Bianca. A primeira coisa que faria, após sair daquela expedição por Íris, era ligar para sua amada esposa. Se estava disposto a aceitar ser um pioneiro espacial, queria passar seus últimos dias na Terra, antes de partir, ao lado de sua mulher. O dia da decolagem estava próximo e não havia muito tempo antes de responder ao governo planetário se aceitaria ou não aquela aventura.

Exercer atividade produtiva pelo intelecto já era hábito trivial na vida de Maruan. Mas a idéia de exercer manualmente qualquer obra lhe causava certa inquietação. Não podemos julgar preguiçoso alguém desacostumado ao serviço pesado. Era útil. Mas o era por inteligência. E nesse momento, sua inteligência dizia que seu corpo robusto e atlético se adaptaria bem na colheita. Bom será aprender culinária, pois o laboratório da Nave servirá, também, de cozinha. Certo é que, sozinho no espaço, exigirá o mínimo de esforço necessário para realizar tarefas; ócios do labor. Maruan nasceu sob o manto da lei do trabalho, onde se ser útil é a remuneração mais alta que se pode alcançar em um mundo sem dinheiro. Ser útil é estar socialmente inserido. Os marginais dessa era são inúteis até para cometer crimes. Vivem na escuridão se alimentando em restaurantes religiosos abastecidos pelo Estado. Erradicar a fome é imprescindível para manter o planeta Azul no mapa estelar.

Maruan é físico por ofício. Mas queria mesmo encontrar no violino seu meio de vida. Porém, ficou tão focado em dominar a gravidade que esqueceu de dominar o instrumento musical. Tocar violino tornou-se hobby realizado com certa maestria, até. Quando tocava, fazia da ocasião um rito, uma comunhão solene exercida às claves da liberdade. Aos domingos, tocava piano na reunião sacramental. Havia um hino que falava sobre o trabalho: "Nossa lei é trabalhar". "Nossa lei é (...) trabalhar com alegria e cantar (...)", dizia o hino. Era uma canção de compasso acelerado, cantado sempre com bastante vigor pelos crentes.

Ter que colher verduras e raízes no espaço não será razão para fazer Maruan desistir de voar onde nenhum homem foi capaz de voar. Nem mesmo a saudade dos pais. Nem saudade de mulher. Nada!

O Homem Sentado Sozinho na NaveWhere stories live. Discover now