27.1 | ou ❝o outro romeu❞

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Eu gostava mais de Romeu e Julieta quando era um texto que eu só precisava ler, não decorar. Julieta era uma garota irritante – o que fazia sentido, considerando que tinha sei lá catorze anos – que não sabia o significado da palavra concisão. Já entendi, você o ama. Já entendi que ele fez merda, matou seu primo ou algo assim.

Minha vontade era de chacoalhar essa garota e dizer que ela tem toda a vida pela frente, e não precisa de um homem. Essas personalidades literárias do século quinze, viu, vou te contar.

Considerando a minha dificuldade com as minhas falas, pedi carinhosamente a Zaca que Mercúcio (Lucas), Romeu (Zaca), Benvólio (garoto super meio alternativo que não faço ideia de como se chama, mas que é meio bonitinho) e os outros passassem as falar antes de Julieta (eu).

Eu estava na coxia enquanto os outros ensaiavam, irritada com o fato de que eu sequer podia desistir da peça, porque eles não tinham escalado uma substituta para Julieta. A melhor opção para ocupar meu lugar era o Mário Ney que devia ser a única pessoa que sabia meus diálogos também.

Está aí uma ideia traumatizante.

"Monstruoso para mim é o nascedouro desse amor, que me faz amar tão odiado inimigo", murmurei para mim mesma. Minha vida pessoal tinha uns paralelos bem estranhos com aquele texto amaldiçoado pela ação do tempo. Dei uma olhada em volta, por todo ensaio, e pude ver Lucas no palco com Zaca e os outros enquanto lia.

Lucas, embora parecendo meio estúpido com a espada falsa na mão, parecia ter um holofote unicamente sobre ele. E não estávamos ensaiando com a iluminação ainda.

Eu devia estar com algum problema.

"És um romântico; toma emprestadas as asas do Cupido e eleva-te com elas acima da mediocridade." — citou Lucas, com perfeição. Bons mentirosos davam mesmo bons atores.

"Estou tão dolorosamente flechado, por sua seta atravessado, que me é impossível voar com as leves asas de Cupido." — narrou Zaca, em resposta, mas ele não soava natural como Lucas; me ocorreu que ele só não dera o papel a Lucas porque, assim, eu jamais concordaria em participar — "Sinto-me tão limitado que, no máximo, consigo gemer mediocremente. Queixo-me de meu infortúnio e me vou afundando sob o peso deste amor."

"E afundar nesse amor é torná-lo ainda mais pesado sobre teus ombros, opressão grande demais para coisa tão terna."

Eu precisava encontrar outro lugar para ler meus textos.

Caminhei até os camarins, sem saber o que me esperava. Abri uma das portas sem cerimônia, e me deparei com nada mais, nada menos, que Mário Ney, o babaca do time de futebol e substituto de Zaca como Romeu, completamente nu diante de um dos espelhos.

Instintivamente, fechei meus olhos.

— Mário! — gritei, com os olhos tão apertados que chegava a machucar —O que você está fazendo aqui?

— Shhh, Valéria! —fez ele —Quer que alguém nos escute?

Parecia até que eu é que estava tentando esconder alguma coisa.

— Por que você está nu? —perguntei, nervosa —Argh!

Ele gaguejou, sem me dar uma resposta. Quando finalmente conseguiu pensar em uma desculpa nada convincente, ele falou:

— Me concentrando, para decorar melhor o texto.

— Você precisa estar pelado para isso? — virei-me de costas para poder abrir os olhos, mas ainda os cobria com as mãos, por precaução.

— Cada um tem seus métodos.

Métodos? — reclamei, ainda de costas — Você acha que esse camarim, que é o mais longe de todo o ensaio, o mais escuro e mais espaçoso não seria suficiente para te dar concentração? Precisa tirar suas roupas para isso? Qual é, Ney, você acha que...

Emudeci, finalmente chegando à conclusão óbvia.

— Ai. Meu. Deus. — não pude conter o impulso de virar de frente para Mário, que, graças a tudo que eu conheço e acredito, já estava vestido. — Você estava se pegando com alguém!

— O quê? Não! — ele corou, mentindo descaradamente.

— Você está ofegante, todo suado, sem roupas. — acusei em disparada.

— Cala a boca. — exigiu ele, ameaçador.

— Vou contar aos professores. — disse eu, sem pensar.

— Não, você não vai. — Mário Ney recuperou o controle, seu tom de voz de abrandando — Porque eu sei de muitas coisas, Valéria. Coisas que podem te comprometer.

— O que você acha que sabe — eu ri com escárnio, porque ele não sabia nada a meu respeito — não pode ser pior do que o que você está fazendo no camarim, no meio do ensaio.

— Você não vai contar a ninguém sobre isso. — falou ele, agitando o indicador entre nós dois. Então, ele se virou para o espelho para ajeitar o cabelo — Caso contrário, terei que magoar profundamente meu amigo Natan, contando-o a respeito de seus passeios na enseada com meu amigo Lucas.

Meu queixo caiu.

Eu ia matar Lucas Avelar.

— Lucas te contou?

— Não exatamente. Ele não é o único que conhece aquele lugar. Foi apenas uma coincidência ele me dizer que pretendia ir até a enseada segundos depois de eu ter convidado uma garota para um encontro no mesmo lugar. Eu não ia desmarcar com a gata, não é? — Mário ajustou a alça da mochila que tinha colocado no ombro esquerdo — Então eu os vi. Mas não se preocupe, Val. — emendou ele, ao ver minha testa enrugar — Seu segredo está a salvo comigo. Espero que a recíproca seja verdadeira.

Paralisada pelo medo, não consegui dizer nada enquanto processava a ameaça. Ele ficaria de boca fechada, contanto que eu também ficasse.

— Te vejo no ensaio, Valéria.

Mário deixou o camarim. Encarei meu rosto pálido no espelho.

Meu telefone tocou, e era Natan. Mais uma vez, ignorei sua ligação.

Onde Há FumaçaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora