10.1 | ou ❝é isso que você ganha❞

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Quando recobrei a consciência, minha cabeça estava latejando.

Parecia que três hipopótamos pisoteavam meu cérebro contra a minha caixa craniana. Eu tentei abrir os meus olhos, mas a claridade do que eu julguei ser o dia seguinte estava castigando minhas retinas.

Amaldiçoei a mim mesma, tentando me lembrar de como tinha ido parar onde quer que estivesse.

Abri os olhos definitivamente, para constatar que eu estava deitada sobre uma cadeira reclinável na areia da praia privativa de uma das mansões da ilhota em que ficava a casa dos Gêmeos Avelar. O mar esverdeado se estendia à minha frente, calmo. Uma brisa agradável me atingiu no rosto quando ouvi a voz de Natan Avelar.

— Bom dia, luz do sol. Gostei do cabelo.

Natan estava vestindo uma camisa branca de botões e trazia consigo algo que parecia ser o meu café da manhã: café preto, torradas, geleia de amora e vários litros de água gelada. Meu estômago se revirou em dúvida.

Ele estava bonito, mas um pouco desfeito, como eu. Obviamente, o cabelo dele não estava parecendo um ninho de avestruz. Ele caminhou até mim e se sentou numa cadeira reclinável ao lado da minha. O paradoxo de alívio e vergonha me inundou.

— O que você está fazendo aqui? — perguntei, ingrata, tomando a garrafa d'água de suas mãos e me servindo de goles generosos.

— Essa é minha casa. — respondeu ele, deitando-se na sua cadeira reclinável, cruzando as pernas e observando o oceano através de seus óculos escuros espelhados de mauricinho. Ele vestia uma bermuda listrada de vermelho e cinza.

Eu reconhecia as colunas e paredes de vidro. De fato, tecnicamente eu estava no terreno dos Avelar.

— Uau. — disse eu, me levantando imediatamente e tirando a areia que estava eu meu vestido — Eu me sinto uma completa idiota.

— Está tudo bem. Acontece.

— Ah, não, não acontece. Isso só aconteceria comigo.

— Você não é tão especial. — disse ele, com um sorrisinho. Ele não tinha covinhas na bochecha, como Lucas. Me perguntei como não tinha reparado isso antes.

— Minha cabeça dói. — choraminguei.

— É o resultado de sete doses de tequila. — fez ele, sarcástico.

— O que aconteceu ontem? — perguntei, sentando-me novamente, com as mãos no colo e tom de voz indulgente — Como eu vim parar aqui?

— Você veio caminhando em direção à praia e eu achei perigoso te deixar sozinha. Por isso, te segui. Então, você me confundiu com o meu irmão e eu soube que você estava totalmente bêbada. Tudo bem que somos gêmeos, mas não somos tão parecidos assim. — ele pausou, e emendou — Não mais, pelo menos. E, até onde eu sei, não para você.

Eu corei, escondendo meu olhar culpado no oceano.

— Eu não podia deixar você voltar para a festa. — Natan prosseguiu — Eles acabariam com você. Tenho a impressão de que você odiaria isso.

— Odiaria. — concordei, agitando a imagem de eu ser o alvo de piadas da alta sociedade de Vitória da minha mente.

Senti consideração por Natan. Eu mal o conhecia, e ele tinha desistido de sua festa para me ajudar.

— Obrigada. — falei, sincera — Por cuidar de mim.

Ele agitou a mão, como quem diz que não foi nada

— E Lorena? — indaguei, sentindo um frio percorrer a minha espinha; era medo de que, na minha embriaguez, eu tivesse soltado alguma informação da qual ela não tinha conhecimento e arruinado nossa amizade.

— Bem, ela disse ao José Eifler que você ia dormir na casa dela para que seu padrasto não te visse chegando tão bêbada em casa. — falou Natan, e eu já podia sentir o alívio afrouxando minha culpa, porque esse tipo de consideração jamais viria de alguém que acabou descobrir um romance entre a nova amiga e o namorado — Então, eu disse que ela podia continuar na festa, e eu cuidaria de você.

Mesmo que Lorena tivesse me entregado semi-inconsciente aos cuidados de um desconhecido, me senti grata. Eu enlouqueceria se tivesse que levar um sermão de Marcos com aquela dor de cabeça.

Eu só precisava saber de mais uma coisa.

— Por que você faria isso? Cuidar de mim, quer dizer.

— São... muitas perguntas.

— Natan. — insisti.

— A visão da Valéria que eu conheci, tão durona, no auge de uma bebedeira, foi algo que não fui capaz de resistir. — ele brincou, e eu pude ver em seus olhos que não era verdade.

Conhecia os olhos dele como conhecia os de Lucas.

— Natan.

— Você estava lá, toda "ai Lucas, seu mentiroso, eu te odeio". E eu estava louco para bancar o Gêmeo do Bem. Andei assistindo um monte daqueles filmes, sabe... aqueles de romance que passam na Sessão da Tarde.

Arregalei os olhos, porque ele sabia sobre as mentiras de Lucas para mim. Ela provavelmente tinha se dado conta quando eu o conheci, e não fazia ideia de que ele e Lucas eram irmãos gêmeos. Mas isso ainda não explicava o porquê de ele ter ficado comigo naquela noite.

— Natan... — mudei o tom de voz para uma súplica. Ele desviou os olhos, voltando a cobri-los com os óculos escuros para fitar o oceano.

— Eu sabia que Lucas ia ficar irritado. — ele confessou, escondendo um sorriso travesso.

Finalmente, eu soube que essa era a verdade.

E eu apreciava, em especial naquele momento, um pouco de honestidade.

— Bela discussão, a de vocês ontem. — disse ele, como quem comenta um jogo de futebol.

É claro que Natan tinha escutado tudo.

— Quanto você ouviu.

— O suficiente. — pensei ter ouvido um pouco de desdém em sua voz, que ele tratou de corrigir. — Lucas gosta de bancar o coitadinho, sabe. Para irritar o meu pai. Não se sinta especial porque você foi uma vítima disso tudo. Não tem nada a ver com você. — ele torceu os lábios, e emendou com o que agora era claramente desprezo — Fica para lá e para cá naquela velharia e alimenta umas tartarugas para chamar atenção, mas todos sabemos que uma hora ele vai parar com isso e assumir a responsabilidade dele na empresa.

Apertei os olhos na direção dele. Não sei se estava mais incomodada com o fato de que Lucas, ao que tudo indicava, apenas me usava como uma espécie de vingança freudiana contra o próprio pai, ou com Natan me falando aquelas coisas extremamente pessoais sobre o irmão.

Levantei-me novamente da cadeira de praia e ajeitei minha roupa amassada. Nesse momento, me ocorreu o pensamento de que eu não queria me olhar no espelho por nada nesse mundo.

— Aonde você vai? — questionou ele, surpreso com a minha reação.

— Eu não estou a fim de falar sobre o Lucas. — falei em tom definitivo — E eu preciso ir. Devem estar preocupados comigo lá em casa.

Natan se levantou e tirou os óculos do rosto para me olhar bem.

— Fica de aviso, Valéria. A sua sorte é que ninguém percebeu o que estava acontecendo. Bom, ninguém além de mim. Tenho pena de você se a Lola descobrir que você andou passeando por aí com meu irmão.

— Anotado. — resmunguei, e virei as costas.

Onde Há FumaçaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora