A viúva D. Esterlina Slewinska Coimbra dos Reis havia deixado de lado seu tricô quando pressentira que o primeiro neto estava para chegar. Foi algo como uma pontada no peito, um presságio bom. Viu a palidez na expressão da única filha, sentada no sofá oposto a ela, e observou, quando esta ficou de pé, que suas saias começavam a umedecer.

Erguendo-se, deu ordens à mucama e tratou de ir avisar logo ao genro Emílio que pela manhã seu ansiado herdeiro teria chegado a esse mundo. Levou a filha para o quarto e começou, junto da parteira que, por precaução, fora buscada há algumas semanas, a tarefa de trazer aquela criança ao mundo. A criança chegaria antes do por ela imaginado. Bem antes do amanhecer. Tudo aconteceria de uma forma jamais por ela concebida, mas ela saberia, reverberaria por anos, e anos e anos...

Madrugada a meio, a sala banhada pela luz dourada dos lampiões, dois homens conversavam sonhadores a respeito do futuro. Eram amigos de longa data. Desde a infância. Companheiros de estudo no Rio de Janeiro, aventureiros e sedentos por fazerem fortuna e nome. Serviram juntos no exército e, agora, anos depois, a maioria dos êxitos alcançados, discutiam um modo de terminarem por entrelaçar suas vidas definitivamente. Queriam unir suas famílias, seus sobrenomes.

Entre lembranças risonhas de farras da primeira juventude e os desprendimentos de sentimentos que o vinho proporciona, planejavam o casamento dos filhos de ambos para algum futuro.

— Por agora são apenas sonhos... — disse Crisóstomo, que sabia que não podia ter filhos.

Emílio, que não conhecia o segredo muito bem escondido pelo outro, argumentou:

— Não são de sonhos que as grandes realizações começam a se realizar? Já te disse, meu amigo, nada é impossível.

— E se for mulher a criança que D. Eliodora espera?

— Já te disse! É macho!

Crisóstomo riu um escarninho.

— Pode zombar. Mas uma coisa eu tenho de te lembrar: nunca houve sobre a face da terra quem desobedecesse uma ordem minha!

Crisóstomo coçou a bela barba negra que lhe cobria a palidez amarelada do maxilar. Era verdade. Mas não resistiu por provocar:

— Até mesmo o Imperador?

O sorriso que ia largo na bonita cara de Emílio feneceu. Pensou um pouco em D. Pedro I e, depois de alguma reflexão, inquiriu:

— Estou ou não estou aqui?

Crisóstomo aspirou o gostoso aroma de pinho e escutou um pouco o som do Nhundiaquara que corria ali perto da Casa Grande.

— É. Está! — teve de concordar.

Ouviram um choro de bebê cortar o silêncio mortal que se impunha pelos grandes cômodos da edificação. Trocaram um sorriso e voltaram a falar do casamento dos filhos de ambos. E Crisóstomo se perguntava o que faria para resolver seu problema de sucessão...

— E se eu não tiver filha mulher? — desafiou ao amigo.

Trocavam um olhar misterioso quando D. Esterlina surgiu no portal da sala. Silenciosa ela fitava os dois homens. Porque não falava logo se era homem ou mulher?

Afinal, que olhar era aquele, de ave desvalida?

Era mulher! Pela fisionomia da sogra, Emílio teve certeza de que lhe nascera uma filha e já quase podia escutar as zombarias do amigo pois, pela primeira vez, teria de suplantar o seu famoso orgulho para admitir que estava errado.

— Fala! — ordenou à mãe de sua esposa.

Baixando os olhos, Esterlina declarou:

— A criança... nasceu morta...

Lívido, Emílio se ergueu e avançou para onde ela estava. Crisóstomo, por sua vez, apagou o charuto no cinzeiro e acompanhou o amigo que já caminhava a largas passadas corredor a fora.

D. Esterlina ia atrás, pedindo que o genro esperasse.

— Acalma-te, filho. Deixa-me terminar. Deixa-me contar como tudo se sucedeu!

Ele olhou para a mulher que tinha uma aparência exausta e descomposta. E esperou...

— Ele viveu... viveu, sim, de um modo que não sei explicar como, mas viveu. A cor foi voltando ao seu rostinho... — ela revivia, emocionada, aqueles momentos conseguintes ao nascimento do neto. — Eliodora chorava e chorava... — continuou — foi muito difícil o parto, o senhor precisa compreender. Houve um momento... um momento... em que eu soube, eu teria de escolher... a criança ou... ou...

— ...ou a Dora, não é? — ele indagou temeroso, a voz difícil de controlar, ao segurar no braço da sogra.

— Eliodora chorava e rezava em suas dores de parto pedindo que ficasse no mundo o bebê, não ela. Então, quando a criança nasceu morta eu não tive coragem de lhe contar. Ela me perguntava ansiosa, ansiosa o que era...

— Um guri! — eu lhe disse.

— Fabrício! Vai ser o nome dele... — ela me disse. E eu queria chorar, pois sabia que não haveria filho algum para batizar!

Emílio, assistido por Crisóstomo, escondeu o rosto com as duas grandes mãos.

— Foi então que algo misterioso... oh... como vou explicar? Algo estranho aconteceu!

— E o que foi, minha sogra?

— Minha filha me fitou, tremendo, e disse:

— Ele vai viver mamãe, ele apenas dorme. E vai chamar-se Fabrício. Vai ser a alegria do pai dele.

— Eu olhei para a criança que estava no meu colo, envolta nos panos que eu embrulhara, e vi com esses olhos que ela não vivia e pensei: “minha filha decerto está delirando”. Medi sua febre e ela me pareceu normal. Então me pediu para ver o filho. Eu entreguei o menino em seu colo e ela abriu os tecidos... abriu a camisola... e... e...

— E o quê? — Emílio indagou apreensivo.

— Ela enfiou o bico do seio na boca da criança e eu chorei por sua loucura. Mas, então, louca pensei que eu estava... A criança se mexia, se esforçando por mamar. A face pálida, tão pequenina, a lutar no seio moreno da mãe, por se alimentar. Eliodora chorava e passou a me explicar. Disse que um anjo estivera ali mesmo, diante dela, eu não o vira? Ela me perguntou. E perguntara se ela gostaria de dar sua vida no lugar da vida do filho. O bebê poderia ficar, se ela fosse com ele. E ela disse-me que, obviamente, faria isso. E o anjo, de feições tão ternas, disse-lhe que era para o nome do menino ser Fabrício, e que ele deveria sempre procurar por Amélia... E... e... foi assim que ela expirou: pedindo que eu o ajudasse a procurar por Amélia.

Emílio deixou a sogra ali e correu para o dormitório da esposa. Segurou uma de suas mãos que jaziam acomodadas sobre os seios e deu-lhe um beijo suave. Um beijo de dor e amargando uma tristeza incomparável. Até aquele momento, em toda sua vida, não havia experimentado semelhante sofrimento. A perda era muito grande. Amava verdadeiramente Eliodora. Havia sonhado em envelhecer ao seu lado.

Tinha muita gratidão por ela, como talvez ninguém jamais saberia. O amor deles, ele meditava, havia se dado no momento em que ele mais sofria, uma desilusão sem igual.

Ouviu o resmungar do bebê, perto dali, no berço. Erguendo-se, aproximou-se. Olhou o filho que se movia e pedia por alimento sem, no entanto, abrir os olhos.

— Fabrício... — disse ao tomá-lo nos braços, verificando como estava pálido.

Emílio não creu na história do anjo.

Só poderia ser delírio da moribunda. Todavia, fez o que julgava ser a vontade da esposa. Batizou-o de Fabrício dos Reis Nogueira. E, quando a criança ganhou força, partiu da Serra da Graciosa para nunca mais retornar. Como poderia conviver com tantas memórias?

Não poderia conviver com o aroma de pinheiro e com as memórias de sonhos que nunca se concretizaram.

Graciosa [Em Andamento♡]Where stories live. Discover now