04.1 | ou ❝eu não te odeio❞

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O incidente na praia me visitou em meus sonhos por três dias, mas logo foi esquecido. Eu estava convencida de que tinha delirado, e que o sósia do Lucas era uma miragem causada pela minha exposição ao sol.

Eu voltei a sonhar com o incêndio regularmente, todas as noites seguintes.

Decidi encerrar o meu número de celular de Viveiro, para que não mais recebesse mensagens dos meus amigos em Viveiro. Nicholas preferia fazer ligações, deixar mensagens de voz na caixa-postal. Eu não conseguia evitar ouvi-las, e estava sendo assombrada por elas.

Eu precisava esquecê-los.

Não estaria arcando com as consequências das minhas escolhas se não o fizesse.

Estava determinada a viver a minha nova vida em Vitória. Não tinha feito novos amigos na escola, porque passava o tempo todo com Lucas, tanto durante as aulas, quanto depois delas. Eu o visitava no Aquário, tomávamos café na lanchonete que tinha lá, caminhávamos na praia e eu deixava que ele tirasse algumas fotos minhas para ajustar o foco da câmera em nossos passeios.

Em uma das noites, ele me trouxe até a casa da minha mãe na caminhonete. Ficamos até de madrugada conversando dentro dela, sobre os problemas que Lucas tinha com o pai. Eu me sentia culpada por ouvi-lo ser tão aberto sobre suas inseguranças, quando eu não podia retribuir a honestidade com os meus segredos.

Mas Lucas Avelar era a única pessoa que conseguia tirar o incêndio da minha cabeça por tempo o suficiente para que eu conseguisse viver.

Me peguei rindo sozinha quando lembrava do jeito como ele tira a franja dos olhos. O flagrei me olhando intensamente, como se ele me quisesse, mais de uma vez.

Talvez eu o quisesse de volta.

Talvez, se eu me entregasse à sensação que Lucas me dava, de que eu estava vivendo uma vida nova, eu tivesse uma chance de ser feliz naquele buraco calorento que as pessoas chamavam de cidade.

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Nos fins de semana, eu não tinha muito o que fazer.

Ainda estava com problemas em desenvolver uma vida social, e no começo do ano, mamãe quase sempre ficava fora por causa dos compromissos da grife e da semana de moda que se aproximava. Marcos tinha ficado responsável pela supervisão dos adolescentes enquanto ela estava fora, mas ele tinha desistido de tentar se aproximar de mim. Eu estava grata por isso.

Fins de semana eram movimentados no Aquário, então Lucas quase nunca podia passar tempo comigo. Zé estava sempre com alguma nova garota. Foi assim que Zacarias e eu nos encontramos em uma espécie de rotina quando a namorada dele tinha compromissos familiares. Nós escolhíamos algum filme do catálogo assinado pela minha mãe, ele fazia uma pipoca doce fenomenal, e nós assistíamos fazendo comentários como se fôssemos críticos esnobes de cinema.

Era divertido, nosso pequeno ritual.

Mas, naquele dia, eu estava com a cabeça em outro lugar.

Nove de Maio. Era o aniversário de Nicholas Jordan. O primeiro que não passaríamos juntos desde que nos conhecemos.

— Desembucha, Valéria. — Zaca disse, de repente.

— Não tenho comentários.

— Não sobre o filme. Eu sei que você não está prestando atenção. — ele se endireitou no sofá e se virou para mim — Você não respondeu a nenhuma das últimas três perguntas que eu te fiz.

— Eu estava prestando atenção!

— A televisão está para lá. — disse ele, apontando pra televisão à direita — E você estava fitando aquele quadro que a sua mãe pintou na quarta série. — concluiu, apontando para o quadro da praça central de Viveiro, que estava na direção oposta.

— Estou distraída.

— Tem algo te incomodando.

— Para de me encher. — eu peguei uma almofada para ocultar o meu rosto.

— Você pode conversar comigo. — Zaca parecia sincero sobre isso. Eu abaixei a almofada. — Você deve precisar conversar sobre o que aconteceu para te trazer até Vitória, e eu sei que você não fala disso com o Avelar. — ergui as sobrancelhas — Eu simplesmente sei.

— A lanchonete estava com dificuldades e-

— Eu sei que não é isso. Você odiava passar as férias aqui. Quando vinha, fazia questão de passar o dia todo fora, só para não ficar um dia perto do meu pai. Um pouco de transtorno financeiro não te convenceria a morar na mesma casa que ele.

Mordi o lábio, impressionada. Ele foi o único que enxergou através de mim.

Senti que podia confiar nele. Podia ver as palavras se organizando na minha cabeça e a caminho da minha garganta. E se eu falasse a verdade para ele?

— Conheço você desde que éramos pequenos e brigávamos pelo controle remoto daquela televisão. — ele prosseguiu — Você desceu daquele ônibus com cara de choro. Fica encarando aquelas fotos dos seus amigos no seu mural. Ficava ouvindo as mensagens que eles deixaram no seu celular. Você está fugindo de algo, eu sei que está. Só não sei do quê, logo, não posso ajudar.

— Por que você quer ajudar? — perguntei, desconfiada — Não somos exatamente amigos. Não é como se você se importasse.

— Ah, é claro que eu não me importo. Estou perguntando apenas por fofoca. — falou ele, brincalhão.

Eu soltei um risinho baixo. Podia tentar falar sobre.

— Não sei por onde começar. — desabafei, porque não sabia mesmo.

— Pode começar me contando sobre as pessoas nas fotos do seu painel. — ele sugeriu — Se for mais fácil assim.

— Certo.

Ao perceber que eu não estava falando, ele sugeriu.

— Podemos falar sobre a garota de cabelos pretos.

— Dolores. — eu reagi, aliviada por ele ter sugerido a parte mais fácil — Era a minha melhor amiga. Eu não sou muito boa em fazer amizades, como você já deve ter notado. Mas sou eficiente em mantê-las. Nos conhecemos a vida toda. Crescemos juntas. Íamos para a escola juntas todos os dias, lado a lado. Nas sextas-feiras, nós fazíamos as unhas uma da outra, e assistíamos a filmes românticos de escolha dela, sempre. Nós queríamos ficar bonitas para as festas do Carlinhos, que sempre eram aos sábados. É como o que nós estamos fazendo agora, só que sem a parte das unhas.

— Droga. — Zaca brincou — Eu estava mesmo precisando trocar o meu esmalte. — eu ri, e ele ementou com outra pergunta — E esse Carlinhos?

— Era um garoto que sempre dava festas na mansão dele. Os pais dele são meio extravagantes e ele é um exibido, mas as festas eram boas. Na verdade, eram nossa única opção. Não tínhamos muito entretenimento lá no interior. Foi em uma dessas festas que eu conheci o Nicholas.

— O garoto de cabelos cacheados.

— Como você sabe?

— Já peguei você alisando as fotos dele. Deduzi que ele era seu namorado, ou algo do tipo.

Um nó se formou na minha garganta.

Eu não estava pronta para falar sobre Nicholas, a Zaca percebeu. Reconheceu nosso progresso para um dia, e sugeriu que voltássemos a ver o filme.

Onde Há FumaçaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora