prólogo | ou ❝como eu odeio Vitória❞

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Tenho uma boa teoria a respeito de como devo proceder nos próximos dias sem pirar: não proceder.

Estive na cidade infernal, vulgo Vitória, por menos de vinte quatro horas e já me arrependi da decisão de me mudar para ela.

Sinto falta do meu pai, que deveria ter controlado meus impulsos não-tão-racionais de morar na mesma casa que a minha mãe e meu padrasto. Sinto falta da minha casa e da inexistência de fechamentos de varanda e de vidros espelhados no interior de São Paulo. Da minha escola mal administrada e da romântica incurável que eu chamo de melhor amiga.

A imprevisão do tempo, as lanchonetes insalubres (para dizer o mínimo), o bairrismo e o cheiro de comida italiana da casa dos meus vizinhos, que pontualmente domina o quarteirão, todo domingo.

Não me entenda mal, eu sei que boa parte das pessoas de dezesseis anos mataria por uma chance como o combo nova cidade/nova família/nova vida. Ainda mais quando a nova vida e nova família estão em uma ilha ensolarada, cercada de belas praias e garotos bronzeados andando de skate no calçadão.

E eu mesma, até alguns dias atrás, estive convencida de que havia uma chance mínima de sucesso nessa coisa toda de me mudar do interior de São Paulo para a capital litorânea mais provinciana no país.

Era isso que eu achava que queria. Corrigindo: que precisava.

Eu precisava ficar repassando mentalmente os motivos da mudança, enquanto encarava as minhas malas que eu ainda não tinha desfeito no canto no meu novo quarto. Eram bons motivos. Quando eu pensava com racionalidade na minha decisão de me mudar, sequer me lembrava de que eu tinha uma escolha. Me parecia ser a única opção.

Eu tinha que sair de Viveiro antes que alguém pudesse cogitar que houve um crime por trás do incêndio que deixou vítimas e feridos, e destruiu a minha antiga escola.

Sabendo bem que eu levaria muito tempo para deixar o meu novo quarto com a minha cara – já que minha mãe o tinha entupido de parafernálias que eram a cara da filha que ela gostaria de ter, não da que realmente tinha –, eu decidi que isso podia esperar.

Calcei um par de chinelos e saí pela porta, caminhando pelas ruas em direção à praia com um caderno nas mãos. Me sentei na areia morna pela exposição ao sol, que já se punha, escrevi e reescrevi a mesma carta que nunca enviaria a Nicholas Jordan.

Escrever sobre o passado e trancá-lo em uma gaveta era a minha forma de lidar com tudo o que eu tinha passado. À minha maneira, era como se eu quisesse que existisse alguma evidência. A confissão que eu nunca fizera.

Apesar de eu me odiar por ter feito a escolha de sair da cidade como uma covarde, nada poderia ser pior do que as consequências de permanecer em Viveiro depois de tudo que aconteceu.

E é esse pensamento que fazia com que as cartas a Nicholas ficassem trancafiadas na minha gaveta – junto com todos os meus piores pesadelos –, de onde jamais sairiam.

Eu gostaria de poder fazer o mesmo. Me trancar em casa e nunca mais sair. Mas o dia seguinte seria meu primeiro dia de aula em uma nova escola.

Mesmo que eu não estivesse nem um pouco entusiasmada com a ideia de ficar a metade do meu dia no meio de gente de Vitória.

Eu não tinha escolha.

Essa era a minha vida agora.

Onde Há FumaçaWhere stories live. Discover now