Capítulo III - O Bom Filha a Casa Torna / Parte 1: George Hoff

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Não me sentia muito bem, o desconforto no peito continuava. Meus colegas aconselharam-me a ir para casa mais cedo, alegando que eu não aparentava estar bem. Se não soubesse do respeito que possuíam por mim, iria me sentir ofendido com as insinuações. Maldita semana, maldito estresse. "Estou ficando muito velho pra essa merda", pensei no caminho para casa.

Ver a amarelada fachada de minha casa, herdada de meus falecidos pais, até acalmou o desconforto que sentia; sempre acalmava-me. As boas lembranças impregnaram-se em suas paredes e até mesmo na pequena cerca com um portão que rangia, anunciando qualquer pessoa que por ele passasse. Frente à porta havia uma aconchegante varanda com velhas mesas e cadeiras de uma já descolorida madeira e, entre a varanda e o portão, uma estradinha de pedras com uma árvore, que nunca soube o nome, plantada ao lado. Plantei a dita árvore na minha infância e a mesma acompanhou-me ao longo dos anos erguendo-se muito acima de mim quando atingi meus vinte anos. Tinha a certeza de que ela permaneceria em seu lugar muito depois de minha morte, abrangendo sua larga sombra para meus futuros netos e as futuras gerações de minha família que viveriam em uma Circodema de paz. Sacramento, a rua em que morava, era um sítio à parte em meio à cidade. Todos os vizinhos se conheciam, cumprimentavam-se e, não raro, visitavam uns aos outros. Este era o futuro que queria para minha família; imagens que tomam a mente de um homem com certa idade.

Ao adentrar a casa, Gisele, que estava sentada no sofá, lançou-me um olhar surpreso; um olhar que fez-me imaginá-la novamente em sua juventude, pois era o mesmo olhar de quando eu aparecia na porta de sua sala de aula. Minha Gisele continuava a mesma.

"George? O que está fazendo aqui uma hora dessas?". Ela me conhecia; sabia que não era de meu feitio sair mais cedo do trabalho. Eu sempre fazia o que tinha que ser feito.

"Aquele lugar está um caos. Os assassinatos, a maldita imprensa...", correspondi o olhar, encaminhando-me para sentar-me junto a ela. A sala, tal como a fachada, era repleta de boas lembranças: fotos por todos os lados, objetos que passaram por nossas famílias ao longo dos anos. O chão de tacos antigos apenas ressaltava seu toque nostálgico. "Acho que estou ficando velho para essas coisas também."

Ela se levantou.

"Tem certeza de que está tudo bem?", disse, indo em minha direção e postou as costas da mão sobre minha testa, como uma mãe checando a temperatura do filho.

"Sim, minha querida", afastei sua mão, beijando-a no rosto. "Estou ótimo", menti. "Além do mais, mereço um pouco de descanso. Me acordaram de madrugada, Santo Deus!"

"Sente-se, meu querido", levou suas delicadas mãos aos meus ombros. "Vou lhe preparar um chá para você se sentir melhor. Isso é estresse. Descanse um pouco, tire um cochilo e você se sentirá melhor." Colocou-se a caminho da cozinha. "Já volto."

Concordei com as doces palavras de minha querida esposa, sorrindo, aconchegando-me no sofá e levei a mão ao peito, procurando manter a respiração calma. Não levou mais que um par de minutos para que o sono me tomasse, leve e tranquilo, como deve ser.

***

Passado um tempo, abri os olhos lentamente, ouvindo um som ressoar ao fundo; som que após segundos descobri ser a maldita campainha.

"Primeiro o telefone, agora a campainha. Minha nossa, será que, por Deus, eu não posso ter um momento de paz?", pensei. O barulho continuava.

"Já vou!", gritei, levantando-me.

Alonguei-me, amaldiçoando até a décima quinta geração do desgraçado que martelava a campainha como se estivesse sendo pago para isso, e encaminhei-me para a porta. A boa notícia é que me sentia um pouco melhor.

Abri a porta já preparando o sermão. "Custava você...", mas não conclui a frase. A visita surpreendera-me a ponto de me tirar as palavras.

"George." Edgar Visco postava-se em minha frente.

A ligação era um tiro distante. Tinha a triste certeza que caberia a mim e aos meus então despreparados homens para cuidar de um caso como há muito não havia em Circodema. Creio que em tempos turbulentos nos é mandado aquilo que é preciso, afinal. Pelo menos foi assim que eu pensei; um rosto familiar para cuidar de casos com os quais ele era familiar. Parecia tanto ser o certo que não havia como pensar de outra maneira, não havia como imaginar as coisas acontecendo de uma forma que não fosse o bandido preso e a redenção do herói quebrado por ter visto e vivido demais. Uma última história para consagrá-lo como o bom homem e detetive que eu sabia que ele era.

"Edgar... Eu não esperava que..."

"Acho que nem eu, meu caro George. Três dias atrás se alguém me dissesse que eu estaria aqui, eu o acusaria de louco. Mas depois do corpo aparecer na rua após todo esse tempo de certa paz... Digamos que seu chamado não me surpreendeu. Creio que você fez o certo e, bom, creio que também sinto um pouco a falta dessa merda que é trabalhar na polícia de Circodema, de outro modo não estaria aqui."

"Entendo."

"Agradeceria algumas informações para começar, George."

"Passe na estação, pois acho melhor que você veja com os próprios olhos o que temos até agora. É bom que você auxilie os rostos novos que lá estão", tossi, sentindo novamente desconforto no peito. "No primeiro momento pensei que fosse algo relacionado a drogas, alguma espécie de mensagem para algum cliente vagabundo que deve muito a pessoa errada. Mas ontem...", desviei os olhos por um momento, lembrando-me de todo o sangue. "Havia um maldito "dois" talhado nas costas da vítima, Edgar." Ele arqueou as sobrancelhas com o comentário, como se isso o tivesse baqueado. "Talvez não seja pior do que o seu último caso, o que também me inclinou a convidá-lo, pois..."

"Eu não me arrependo do que fiz, George. Me arrependo de muita merda nessa vida, mas o que fiz aquele dia não é uma delas. Você, tão bem ou mais do que outras pessoas, sabe disso."

Calei-me, sentindo a verdade no comentário. Lembranças vieram-me a cabeça; aqueles foram anos difíceis, e o maldito Demônio da Mão Vermelha...

"Amanhã vou à delegacia. Lá vou me inteirar sobre o assunto, só assim para saber se de fato posso ajudá-los."

"Você sabe que pode, Edgar. Não há ninguém que conheça e entenda melhor a escória de Circodema do que você."

Minha inesperada visita desceu os degraus. Acompanhei-o com os olhos, massageando o peito; Edgar parecia mais sóbrio e equilibrado que em outro momento, admitir isso me deixava feliz.

"E George...", nossos olhares se encontraram. "Peço que não mencione mais Glenn."

As palavras alcançaram-me como golpes, mas assenti, observando-o adentrar seu sedã negro, o mesmo que dirigia outrora. Pobre rapaz, o passado ainda o feria como ferro frio cortando a carne. Acredito que algumas coisas criam raízes em nosso cerne e nos acompanharão para sempre. Acenei, despedindo-me, à medida que o carro se afastava.

"Onde será que está Gisele, meu Deus?", perguntei-me, fechando a porta.

Liberte-seWhere stories live. Discover now