Capítulo VIII - Liberte-se / Parte 18: Edgar Visco

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A prepotência do herói é a neblina que paira ao seu redor no momento em que um abismo se aproxima. O que acontecerá quando não mais houver chão sob os pés?

***

Aproximava-me do Ponto Final. O celular tocava, mas eu o ignorava.

Os pneus do meu velho carro cantaram e então eu desci. Era a hora do acerto de contas. Amedrontado por uma estranha pulsação em meu peito, segui. Meus instintos gritavam para eu não continuar; uma voz dentro de mim implorava isso.

Um homem deve enfrentar seus demônios.

No calor do momento, esqueci minha própria arma dentro do carro.

O ar pesava. A gravidade parecia ter dobrado seu poder.

"Onde está esse desgraçado?". Olhava para os lados da rua. Lágrimas caíam de meus olhos, mas eu não saberia dizer o porquê, mesmo sentindo a resposta subir por minha garganta, sufocando-me.

Sempre soube.

Uma caminhonete negra estava estacionada ao lado do bar. A mesma me hipnotizara, atraindo-me, emitindo uma aura tão pesada que era possível vê-la, vermelha como a própria morte. Era possível tocá-la, viscosa como uma cachoeira de sangue. Era como se uma fissura para o próprio inferno estivesse aberta no local. Morte, e do pior tipo.

Sempre soube.

Digo-vos que as pessoas adquirem um sexto sentido de acordo com a profissão que adotam. Um professor consegue dizer quando seus alunos, por mais que o olhem, não estão atentos a aula. Um vaqueiro sabe quando o touro que irá montar não se importaria em matá-lo, ainda sim, segue por coragem e amor ao que faz. Eu... Bom... Eu sabia quando a cena que seguiria seria do pior tipo possível, algo que tira a esperançana vida– avistava o local e poderia dizer que isto aconteceria.

Segui em direção ao carro, não por coragem ou amor à profissão... Mas porque avistara um braço, caído, ao lado de uma das rodas.

Uma fissura para o inferno.

Como que caminhando para a escuridão do pós-morte, eu segui. Passo. Passo.

"Não...", era a única palavra que ecoava dentro de mim à medida que as solas de meus sapatos tocavam o chão.

Passo. Passo. Passo.

As vozes interiores gritavam, meus muitos egos tomavam forma. Eu não quero descobrir! POR FAVOR, NÃO ME FAÇA DESCOBRIR! Vá embora, Edgar! VÁ EMBORA! Não há nada para você aqui. Nada além de...

Uma fissura para o inferno.

O que faz alguém caminhar para o leito de um ente querido quando o médico chega – na sala que você agoniza há horas ou dias – sem dizer sequer uma palavra? Talvez por este mesmo peculiar motivo eu continuasse, mesmo sabendo que deveria fugir para longe, para bem longe, onde a verdade não ousasse ou não pudesse me alcançar.

Passo. Passo. Já tocava o gélido capô da caminhonete. Estava tão próximo, tão próximo que as lágrimas não se seguravam mais em meus olhos. Como podia meu coração ainda bater? Passo... Passo...

Uma fissura para o inferno.

"Não...", caí sobre meus joelhos. Minha mente esmagada e minha própria alma seguiu para um lugar onde eu nunca mais a alcançaria no momento em que apertei aquela mão. Aquela macia e fria mão. "NÃÃÃÃÃO!! PELO AMOR DE DEUS, NÃÃÃO! NÃO! LINDA!!!!!!!!!!!!!!"

Com um vestido cobrindo a barriga e nada mais, Linda estirava-se... morta... em minha frente. O amor da minha vida... morto. Envolta por um vermelho que saíra de seu pescoço.

Sempre soube.

Caí com a cabeça sobre sua barriga, segurando-lhe a mão. Há momentos em que é impossível aceitar a verdade, por mais evidente que seja.

"Por favor, meu Deus", balbuciava. "Não... NÃÃÃO!", gritei para os céus.

O outro braço esticava-se. Apontava para uma arma. Cravado nele havia os dizeres: "LIBERTE-SE".

Não podia mais suportar. Não queria mais suportar.

Havia sucumbido. Perdera. Era o fim.

Rastejando, e estremecendo por tocar os joelhos no sangue de Linda, alcancei a arma.

Não havia escolha. Não havia mais o que fazer. O mundo me esmagava, pressionando cada átomo do meu corpo com uma força imensurável.

Ergui a arma e, bom...

Apertei o gatilho contra minha própria cabeça...

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