Capítulo I - Ligados por Sangue / Parte 2: Alguém na Noite Anterior

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Eu não sabia onde estava e nem que diabos estava a acontecendo ou o que havia acontecido. Tinha apenas algumas certezas: eu estava amarrado a algum tipo de cadeira, vendado, com o corpo nu e dolorido. E estava frio... Deus, como estava frio. Afora isso, a única certeza que eu tinha é que eu iria morrer.

***

Quando acordei, tentei me mover e não consegui. Pensei que fosse apenas mais uma merda de ressaca, o que seria normal, principalmente depois de ter sido jogado de novo na rua, mas meus braços estavam amarrados para trás da cadeira e meus pulsos ardiam, queimados por uma maldita corda que os amarrava. Cada um dos meus tornozelos estava amarrado a um pé da cadeira, também imóveis. Uma corda amarrava meu tronco ao encosto da cadeira, fazendo um filete de sangue correr pelo meu abdômen. Eu sabia que estava sangrando porque o sangue era quente... Era o único resquício de calor que me fora permitido amarrado naquele pequeno salão do inferno. O frio aumentava as dores nas extremidades do corpo e causava grande ardor no meu órgão genital. Por Deus... eu estava nu! Que tipo de monstro faria isso com um homem?

"Socorro!", gritei. Um golpe acertou-me no rosto, fazendo com que me arrependesse de meu ato. Notei que não havia visto nada vindo em minha direção. Temi estar cego e comecei a chorar. Apenas quando as lágrimas molharam o pano que estava em meu rosto percebi que encontrava-me vendado.

"Por favor...", minha voz estava rouca; o frio fazia com que eu batesse o queixo. "Minha mulher...", tentei suplicar, mas outro golpe acertou-me novamente no rosto. Senti que o osso abaixo do olho havia quebrado, era a única explicação para tanta dor. O sangue correu quente por minha bochecha. "Por...", tossi, "por Deus..."

Um som começou a se espalhar pelo local, o som oco acusava um bater rítmico de madeira contra o chão. Eu havia deixado de ser uma pessoa há alguns minutos, tornando-me apenas medo. O som parou e eu gritei recuando o rosto, pressentindo outra pancada se aproximando. "Não!!!", cerrei os olhos vendados no impulso.

"Quieto...", uma voz disse. Não era uma voz humana; não poderia ser. Um ser humano de verdade jamais faria isso com alguém. Em filmes, livros, na porra da televisão, talvez, mas não aqui, não comigo. Porra, isso não pode estar acontecendo. Por que diabos eu não acordo?! Por quê, meu Deus? POR QUÊ?

"Pelo amor de Deus", disse, recuando o rosto, já aceitando o próximo golpe, que não veio. "O que você quer de mim?", eu podia sentir as lágrimas descendo pelo meu rosto, juntando-se aos filetes de sangue. Eu merecia alguma merda de explicação. "O QUE DIABOS VOCÊ QUER DE MIM?", ousei gritar. "QUEM..."

Senti um forte baque, seguido de uma dor insuportável no meu braço. Eu não saberia dizer qual, a dor tirara qualquer tipo de discernimento que eu tivesse. Não lembro de ter gritado, mas devo tê-lo feito. Estava caído de lado sobre um dos meus braços que agora estava quebrado. Eu não conseguia mais suportar, queria pedir que por favor, que tivesse misericórdia, ou que pelo menos me matasse logo, fizesse a dor acabar.

"Calado", veio novamente a voz. Humana. Como poderia ser? Como alguém poderia fazer isso comigo? Eu nunca fiz mal para ninguém. Talvez eu tenha bebido demais um dia ou outro, talvez eu tenha acertado o rosto da infeliz da minha mulher uma vez ou outra, mas atire a primeira pedra o desgraçado que nunca fez isso! Atire a porra da primeira pedra o filho-da-puta que nunca pecou!

O silêncio tomou o local. Eu já estava incapacitado de ver e agora já não mais ouvia. Restava—me agonizar em meu inferno particular, ouvindo apenas meus dentes batendo. Pensei que o inferno fosse quente, por Deus.

Cerrei meus olhos, tentando mergulhar no fundo de minha mente na tentativa de recordar alguma das orações que minha mãe me ensinara. Se eu fosse morrer, eu não gostaria de ir para um lugar tão ruim quanto o que eu estava. Precisava lembrar alguma merda de oração para me desculpar com o Senhor Todo Poderoso. Ele teria piedade de mim.

Passaram-se alguns segundos, ou horas, ou dias – eu não saberia diferenciar – e voltei a ouvir alguns passos. O desgraçado não havia me esquecido. Senti sua presença muito próxima de meu corpo e tive a certeza de que morreria naquele instante, o que me fez começar a chorar. Eu não queria morrer!

Algo perfurou alguma de minhas coxas; uma faca, uma tesoura, o inferno que fosse, mas das minhas dores, aquela fora a menor – o que não me impedira de soltar um gemido seco.

Eu já estava quase desmaiando, sentia minha consciência fugindo de mim. Estava tudo acabado e não havia motivos para pensar diferente. Entregava-me ao sono profundo quando fui surpreendido por meus próprios olhos, que começavam a distinguir as coisas em meio a escuridão.

Era um milagre e eu estava salvo, pensei. Alguém retirara minha venda! Finalmente pararam com essa loucura e vieram salvar minha vida!

Minha rápida esperança foi destruída com a imagem que se formava em minha frente à medida que o negrume se dissipava. Um rapaz. Um maldito moleque está me matando, por Deus. Quando notei as quentes roupas que ele vestia, a inveja e a tristeza foram maiores do que pude suportar. Vomitei.

Ergui os olhos – sentia um filete de baba descendo meu lábio –, procurando alguma explicação no rosto de meu algoz. O desgraçado segurava o pano que me vendara e uma seringa, com o que parecia ser a porra do meu sangue, na outra mão.

"Por quê?"

"A maior história já contada diz que um homem morreu pelos pecados da humanidade... chamavam-no de Jesus Cristo", ele respondeu. O que diabos isso deveria significar para mim? "Qual o seu nome?", perguntou-me.

"Jo...", pigarreei, "John."

O infeliz saiu do meu campo de visão e, quando algum resquício de esperança nascia em meu peito, algo começou a apertar minha garganta. O mesmo pano que me vendara agora impendia o ar de descer por minha garganta.

"NÃ... SO...", balbuciei em vão, delirante com a ideia de que iria morrer. Comecei a me debater na cadeira; o sangue jorrava de todas as cordas, pude senti-las em minha carne. O meu braço, já quebrado, era esmagado no chão. "POR...", comecei a engasgar-me com o sangue descendo para os meus pulmões enquanto tentava buscar o mais ínfimo centímetro cúbico de oxigênio que fosse possível.

Era o meu fim.

A visão tornava a sumir e, desta vez, tive a horrível certeza de que seria para sempre.

As últimas palavras que ouvi foram: "Me perdoe, John."

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