Capítulo 70.

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Imaginei que enfrentaria problemas quando cheguei até a recepção, mas a mulher sentada atrás do balcão folheando uma revista com a expressão entediada apenas ergueu o olhar para mim, franziu as sobrancelhas e deu de ombros. Isaías não me seguiu, enquanto Renata e aquele outro homem ficaram para cuidar de Lorenzo. Não pude deixar de me perguntar o que fariam se eu voltasse e tentasse matá-lo. Embora parecesse o certo, independente do efeito dominó que causasse, um cansaço incapacitante parecia impregnado no meu corpo. Queria ir embora, buscar as respostas para minhas perguntas e finalmente achar meus amigos. Encontrar conforto nos braços de Guilherme, depois de tanto tempo.

Encarei de volta a mulher na recepção, uma cinquentona bem arrumada com expressão de poucos amigos, até ela erguer uma sobrancelha para mim. Então, sem a iminência de ser arrastada para dentro do quarto, respirei fundo e caminhei calmamente até a saída, mas antes parei diante de uma parede espelhada para tentar me ajeitar. Meus cabelos estavam desgrenhados e não houve passada com os dedos que disfarçasse a falta de uma escova. As olheiras fundas e os novos curativos, principalmente o maior de todos no pescoço, não ajudavam a me dar uma aparência mais saudável. O máximo que pude fazer foi limpar na minha calça jeans escura o sangue do corte recém aberto no braço e torcer para que ninguém reparasse. No fim, quando deixei o hospital, não estava nem um pouco mais apresentável.

As portas automáticas funcionando não me surpreenderam, apenas despertaram uma nostalgia estranha que parecia há muito enterrada nos destroços de um novo mundo. Quando se abriram completamente, fui recepcionada por um céu repleto de estrelas.

Parando para refletir, eu sequer tinha pensado no que iria encontrar do lado de fora do hospital. Apesar de terem a inegável semelhança de não se parecerem em nada com o mundo onde eu cresci, as paisagens pós-apocalípticas variavam um pouco: de ruas completamente assoladas pelo caos, a pedaços da cidade que pareciam sequer terem sido tocados por ele; de cidades reconstruídas e habitadas, como Chapecó, com seus muros repletos de buracos de bala e destroços espalhados pela rua, aos campos extensos e vazios pelos quais passávamos em nossas longas viagens, livres de qualquer perturbação de zumbis, mas também de qualquer sugestão de que ainda havia vida neles.

Esperança não era parecida com nada disso. Era uma cidade a pleno funcionamento.

O hospital ficava no alto do morro na entrada da cidade e me permitia ter uma visão privilegiada do restante do território, delimitado por muros de concreto de pelo menos três metros. Esperança não tinha a mesma extensão da antiga cidade de São Miguel do Oeste, mas os muros cercavam pelo menos a metade dela — era a impressão que eu tinha, vendo apenas um dos lados com clareza enquanto o outro desaparecia atrás de prédios e árvores. Do lado de fora da construção, campos abertos com plantações ou criação de animais também tinham casinhas com luzes acesas, indicando que estavam habitadas.

Pela primeira vez em algum tempo, não ouvi qualquer rosnado, apenas o som de automóveis rodando pela cidade, folhas de árvores farfalhando com o vento... e grilos. Vida.

Envolvi meu corpo com os braços quando comecei a tremer de frio. Estava sem a minha jaqueta de couro e a blusa de mangas compridas não era nem perto de ser suficiente para uma noite de inverno no interior, mas nem pensei em voltar para o hospital. Ao invés disso, não consegui impedir meus pés de seguirem em direção ao centro da cidade.

A paisagem parecia remotamente familiar, mas eu nunca tinha voltado para lá desde meus cinco anos. Lembrar da minha infância sempre foi algo delicado. Os momentos em que eu andava de triciclo na calçada em frente à casa onde eu nasci logo se misturavam com uma época cuja cor predominante era cinza, já na casa de Florianópolis, que na época parecia tão estranha para mim. Minha mãe morreu meses depois que nos mudamos e eu só lembro de voltar a me sentir como uma criança normal aos nove, talvez dez anos. Foi um pouco depois de quando meu pai se mudou por causa do trabalho, meu irmão entrou na universidade e a minha relação com vovó, que me criou como uma mãe, aprofundou-se.

Em FúriaWhere stories live. Discover now