Capítulo 49.

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Fui despertada repentinamente com um chacoalhão e levei alguns segundos para lembrar de onde eu estava, meus olhos demorando a se acostumar com o breu ao redor.

— Mei, quieta! — Samuel sussurrou, incisivo, e os grunhidos da minha cachorra cessaram.

Pisquei os olhos repetidamente, como se pudesse fazê-los acostumar-se mais rápido com a escuridão. Aos poucos distingui a silhueta de Samuel, praticamente uma sombra sobre mim. Seus olhos azuis refletiam o pouco brilho que entrava pelos buracos entre as tábuas de madeira que barricavam a janela, colocadas ali muito antes de nós chegarmos ali.

Com a adrenalina esquentando meu corpo, lembrei que havíamos ficado em uma parada de beira de estrada para descansarmos durante a noite, depois de mais um dia rumando para o Oeste. Estávamos a menos de outro dia de caminhada de Chapecó.

— Samuel? Tudo bem? — sussurrei, esticando a mão até a cabeça de Mei numa tentativa de acalmá-la.

— Ouvi um barulho — explicou, mas sem olhar na minha direção, atento às janelas. Nada além da respiração ofegante da Mei ou o som dos grilos chegava até mim. — Acho que foi no posto. Pode ser só um zumbi, mas a Mei tá inquieta.

Olhei para a minha cachorra, que seguia o olhar de Samuel com as orelhas erguidas. A parada era composta por um posto de gasolina, uma conveniência, um restaurante e uma loja de lembrancinhas do sul do estado — estávamos na última, justamente porque presumimos que ela não seria um alvo.

— Barulho, você diz, um tiro ou...

— Não — respondeu. — Foi um som oco. Pode ser algo derrubado pelo vento ou até um zumbi...

— Vou com você para conferirmos — falei, levantando-me.

Coloquei os cabelos para trás em um coque feito às pressas e peguei a pistola que deixei do lado da cama improvisada com roupas que estavam à venda. Por impulso, tateei em busca do machado de Leonardo, lembrando-me depois de alguns segundos que ele havia ficado com os Tormentas. Respirei fundo e pisquei os olhos, na esperança de que aquilo afastasse o resquício de sono.

Gostaria de dizer que minhas reações estavam sob controle, acostumada como eu estava com vistorias rápidas como aquela, mas o ritmo acelerado do meu coração contava outra história. Os dias de tranquilidade ao lado do grupo de Odin já eram uma lembrança distante e o medo voltava a se impregnar nos meus ossos. Lutei para controlar o tremor nas mãos e inspirei profundamente, na esperança de encontrar alguma calma no cabo gelado da pistola.

A expressão de Samuel era um pouco mais difícil de ler. O tempo naquele mundo o deixara tão ansioso quanto eu, mas eu não sabia dizer quanta esperança o nosso encontro com os Tormentas realmente lhe trouxe. Se ele ainda tinha medo que qualquer encontro com outros humanos pudesse significar a nossa morte...

Ou apenas os que aconteciam durante a madrugada.

— Mei, junto — chamei e minha cachorra prontamente obedeceu. Então olhei ao redor antes de falar com Samuel. A loja de lembrancinhas que estávamos ficava no meio da parada e havia duas portas de vidro: uma conectada à conveniência e outra que levava diretamente para a rua. Revistamos todo o local duas vezes antes de nos recolhermos para nos certificar de que não havia zumbis. — Acho melhor seguirmos pela parte de dentro. Se o barulho veio de fora, conseguimos nos aproximar com mais discrição.

Samuel respondeu com um aceno de cabeça e liderei nossa marcha. Caminhamos curvados pelas prateleiras altas onde estavam expostas as mais variadas coisas, de chapéus campeiros até cuias de chimarrão. Pelas frestas das janelas de vidro barricadas (apesar daquilo, não havia mais qualquer sinal de que houveram humanos ali em semanas) tínhamos pouca visão do posto de gasolina, suas formas se fundindo às sombras da noite profunda e sem estrelas. Além do meu coração retumbando no peito, não ouvimos qualquer barulho que indicasse que havia mais alguém ali.

Em FúriaWhere stories live. Discover now