Capítulo 2.

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— Falta muito, princesa?

Estava tão distraída com a contagem mental da série de abdominais que a voz de Leonardo me pegou de surpresa, segundos antes do seu rosto aparecer acima de mim. Seu cabelo estava desarrumado e, assim como eu, gotas de suor brilhavam por todo o seu corpo.

— 48... 49... — Informei em voz alta enquanto terminava o exercício. — 50. Pronto, foi a minha última série.

Estávamos os dois na última casa do condomínio, na qual eu costumava passar a maior parte do tempo no ano passado (e o que ainda não estava tão longe da realidade nos tempos atuais, para ser sincera). A obra enfim fora finalizada, com vidros nas janelas e portas dividindo seus cômodos. Apesar de espaçosa, ninguém sentiu a necessidade de se mudar e acabamos decidindo que o único andar amplo e de vários quartos era bastante apropriado para ser usado como depósito, que passou a ser sua principal função.

Além dos quartos lotados de mantimentos (pois logo se tornou evidente que, com quase vinte pessoas no grupo e três cachorros, sempre era uma boa aposta estocar o máximo de provisões possível), aproveitamos um deles para improvisar um espaço de academia, com halteres, anilhas, barras, colchonetes, banco de supino e até uma bicicleta ergométrica. Praticamente todos dedicavam pelo menos algumas horas da semana para se exercitar, mas eu, Melissa, Paulina, Leonardo e Alex éramos os frequentadores mais assíduos.

Leonardo estendeu a mão para me oferecer ajuda para levantar e aceitei. Percebi suas íris verdes passando pelo meu corpo.

— Você tá se dedicando bastante ultimamente. Tá ficando forte, Rebeca. — Ele abriu um sorriso. Apesar de não faltar flertes em nossas interações, eu sabia que aquele era apenas um elogio sincero: — Tá linda.

Por impulso, observei meu reflexo no espelho de corpo inteiro que também havíamos trazido para a academia improvisada. Sempre tive um corpo atlético graças aos esportes, mas pela primeira vez estava malhando para ganhar músculos. Eu gostava do que via: da curva dos meus bíceps, do abdome que começava a marcar, do cabelo preso num rabo-de-cavalo lateral que já passava dos ombros, deixando evidente a parte agora permanentemente raspada.

Exceto a cicatriz. Eu odiava a cicatriz.

Enquanto ainda nos recuperávamos do combate contra o grupo de Klaus, numa época em que os meus machucados lembravam do constante perigo que era o mundo pós-apocalíptico, a presença dela não me incomodava. Porém, com o passar dos meses (já estávamos em março e a realidade de que havia um ano desde o começo do apocalipse aos poucos se estabelecia) e um constante esforço de todo o grupo para replicar um ambiente que pelo menos nos permitia lembrar de um tempo mais tranquilo... Ela se tornava desconcertante.

Ainda saíamos em buscas e, infelizmente, o combate contra zumbis não estava nem perto de se tornar raro, mas voltar para casa passou a ser bom. Encontrar pessoas tão diferentes umas das outras, e ainda assim cujos rostos se tornaram reconfortantemente familiares; perceber como todos davam seu máximo para ajudar uns aos outros e criar um lugar onde valesse a pena viver; ver as crianças brincando, os cachorros correndo na grama verde e a vida ressurgindo... E, às vezes, até mesmo me permitir fechar os olhos ao anoitecer sentindo plena tranquilidade.

Então, mesmo que propositalmente desviasse o olhar de espelhos de rosto, eventualmente eu revia a cicatriz. O pedaço de pele rosado e retorcido que devorava o fim da minha sobrancelha e subia até a linha do cabelo, se estendendo pela lateral da cabeça. As duas linhas queimadas com o atiçador de brasa no meu braço, apesar de mais escuras e feias, pelo menos eram fáceis de esconder. A do rosto, porém, sempre seria um fantasma me relembrando do pesadelo que vivi. Do pesadelo em que coloquei todos.

— Obrigada — sussurrei, depois de tempo demais, e olhei nos olhos de Leonardo quando sorri. Então adicionei, em tom divertido: — professor.

Ele estava limpando o suor do rosto numa toalha, mas deixou uma risada escapar. Era brincadeira apenas em partes, pois Leonardo realmente era nosso "instrutor" de musculação — claro que mais por estar acostumado a treinar do que por ter estudo formal.

Em FúriaNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ