IX - Ideias brilhantes

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Kane

O terceiro dia de treinamento se iniciava, e com ele mais uma série de incessantes reclamações. Desde o desfile, Ruby tornou-se exigente com tudo que a envolvia. A comida dela deveria ser provada por um Avox — serviçal da Capital que trabalhava no Centro de Treinamento — para garantir que não fora envenenada; o quarto dela deveria ser inspecionado para neutralizar possíveis armadilhas; as roupas, enxarcadas de repelente a insetos. 

Kane pouco se importava com a paranóia dela, até que começou a afetá-lo. O aposento da mesma localizava-se ao lado do seu, então conseguia ouvir perfeitamente as ordens sem sentido gritadas no meio da noite. Isso sem contar os atrasos por conta das suas novas "medidas de proteção". 

A garota tinha certeza que o incidente equino foi planejado por outro tributo, para eliminá-los logo de cara.

—Nós somos os mais perigosos! — Insistia para provar seu ponto, mesmo que já tivesse argumentado aquilo trinta vezes. — Eu sou, pelo menos. Vocês não acham que é muito conveniente que logo a nossa carruagem dê problema e justo nós, do distrito com mais vencedores, quase morrermos antes mesmo dos Jogos começarem?

—Fale por você, eu não quase morri porcaria nenhuma.

—Ficou desmaiado por bons cinco minutos, sim! Eu tô falando, foi tudo planejado! Por que ninguém me escuta?

Ela estava tão insuportável que Kane contava os dias até irem logo para a arena. 

Como se isso não fosse o suficiente, nos treinamentos também passava por testes de paciência. 

Os Carreiristas do 2 normalmente fazem alianças com os do 1, para eliminarem todos os outros tributos até sobrarem apenas estes. Dessa forma, Vincent e Reyna, os do Distrito 2 daquele ano, dispuseram-se em acompanhar Kane para todas as estações que ia. Ruby, por consequência, ia junto. O que eles não percebiam — ou só ignoravam — é que ele os desprezava.

—Kane Scobhejilve — a voz feminina computadorizada chamou, o primeiro para se apresentar aos Idealizadores. Suspirou de alívio ao se afastar dos três que o enlouqueciam cada vez mais. Entretanto, agora outra onda de tensão se instalara.

Praticamente não havia treinado no Centro de Treinamento, o que é irônico por si só. Sua estratégia inicial, na verdade, era observar os outros tributos, analisá-los e encontrar suas fraquezas. Nunca iria se destacar por força física, não com Vincent como comparação, e a mira e conhecimentos de sobrevivência poderiam ser aprimorados na privacidade do próprio quarto com o cair da noite. Todos já haviam visto o que era capaz de fazer, não via necessidade de ficar exibindo mais. Além disso, caso se mostrasse demais, outras pessoas poderiam fazer como ele: estudar suas limitações. 

Ficou satisfeito com as informações adquiridas nos últimos dias, seu plano seguindo como pensara. O único problema era que não tinha ideia do que apresentar. Claro, poderia exibir coisas simples: lançar facas, traçar armadilhas, botar fogo no local inteiro. Mas nada disso parecia suficiente. Precisava de algo memorável, e rápido. 

Como era o primeiro, os Idealizadores prestavam toda atenção nele. Haviam pelo menos vinte deles, acompanhando cada passo que dava até o centro da sala. Separados de onde os tributos se apresentariam, ficavam em um espaço elevado com sofás e poltronas, comidas e bebidas. Esperavam um show, e Kane ainda não fazia ideia de como iria realizar.

Olhou o pátio. Encostada na parede, uma exibição de armas se encontrava parecendo o chamar. No fim do ambiente, alvos humanos e circulares. O tempo passava.

—Scobhejilve... eu conheço esse nome — um dos ricassos disse, para a felicidade do garoto. Quanto mais tempo tivesse para pensar, melhor. O velho parecia um rato de sobrancelhas grossas pretas que nunca foram aparadas. Sua boca fora preenchida, chegando a encostar o lábio superior no nariz caído. Era baixo e esquelético. Sentado na beira da sacada, balançava os pés como uma criança. Era um dos homens mais horrendos que já vira em toda a sua vida; ainda assim, olhou para ele como se fosse a pessoa mais encantadora do mundo.

Finalmente, uma ideia surgiu em sua mente.

—O senhor tem cara de saber das coisas mesmo. Antes de começar, todos conseguem me ouvir bem? — Isso os interessou. Se antes já estavam atentos, agora até pararam as conversas entre si e se aproximaram da borda. 

Lentamente, aproveitando do fator mistério, foi até a estante de armas e pegou três facas simples. Duas, guardou na roupa sem deixá-los ver. Jogando a terceira para cima e a pegando no ar, voltou ao centro. 

—Quem de vocês gosta de jóias? — Como idiotas respondendo a um mágico, aprontaram-se para afirmar. — Inteligentes como são, devem saber que todos os adornos vêm do Distrito 1. Ainda mais detentores do conhecimento, com certeza conhecem a história por trás das peças Scobhejilve. — Eles não perceberam o tom de ironia.  — Sabem, luxo em troca de segredos. Esse é um negócio que minha família domina muito bem. — Sem deixar de lançar a faca para o alto, pegou a segunda e começou uma espécie de malabarismo. A palavra segredos os deixou cautelosos e, se possível, ainda mais alertas. — Vocês ficariam impressionados com a relatividade da verdade, como as palavras podem ser tecidas para se tornarem a tapeçaria que desejar. Senhor Magnus, estou correto? — O cara de rato, a expressão o mais surpresa que conseguia demonstrar com as plásticas, concordou com veemência. Os outros patrocinadores também pareciam, no mínimo, confusos com o reconhecimento. Aquele garoto não deveria conhecer nenhum deles, certo? — Como vão os jogos? Sua sorte está mudando?

O homenzinho, que identificou pelo apelido "cara de rato" que dera com a irmã há meses, deu um pulo, levantando-se do parepeito como se fosse atingido pelas facas. De fato, Kane adcionou a última no malabarismo. 

Aquela era uma estratégia arriscada, mas adorava riscos. Poderia muito bem estar desperdiçando a chance de conseguir uma nota boa e, consequentemente, patrocinadores. Contudo, não poderia se importar menos. O contentamento de ver os rostos artificiais deixando a indiferença de lado e se contorcendo em dúvida, até mesmo receio, valia a pena. Fazê-los provarem do próprio veneno valia a pena.

Utilizar do privilégio de seu sobrenome classificava uma vantagem: lembrar aos Idealizadores que poderia até ser um tributo, mas não um tributo qualquer. Como o mesmo disse, muito dos luxos daqueles idiotas vinham em troca de segredos. 

Um pouquinho de medo não os mataria.

—Meu ponto é: as senhoras e os senhores gostam de coisas brilhantes, ideias brilhantes. Eu também. Vocês querem ação, eu também. Vocês querem drama, eu também. Só não se esqueçam, tudo que vai, — e jogou as três facas para cima com mais força, atingindo em cheio o lustre acima de sua cabeça e lançando estilhaços para todos os lados — volta. 


it's time to go - jogos vorazesWhere stories live. Discover now