30 - Companheiro Infernal

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Focou o rótulo da garrafa vazia, retirou o cigarro de canabis da caixa metálica e colocou os fones de ouvido

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Focou o rótulo da garrafa vazia, retirou o cigarro de canabis da caixa metálica e colocou os fones de ouvido. Tamborilou os dedos sobre a mesa cor tabaco, enfadada até os ossos. A fumaça espiralava tão sem sentido quanto tudo. Impossível ficar naquele lugar por muito tempo, ninguém merecia a danação do tédio eterno. Não havia o que fazer, ainda que gostasse de passar o tempo na natureza, estava enjoada disso também.

Como em todas as tardes, Andras e Gar desapareceram. Supermercados ou a única praça da minúscula cidade, celulares sem sinais serviam bem de desculpas. Não, nem a igreja com os urubus a pousarem no telhado cagado por pombos afastaria o enfado. Sentia falta de Santa Fé, das pipocas, de Bel. Ficar naquele fim de mundo atrapalhava todos os seus planos. Ayla, que devia sofrer de transtorno obsessivo compulsivo, se alegrava ao passar o tempo faxinando a casa. Ao menos que houvesse vaqueiros e realejos a tocar como opróbrio ao coro dos pássaros. Para isso serviam os humanos, afrontar e acabar com a natureza.

Como viver sem diversão? Sem fazer algo novo e diferente? Sem aporrinhar ninguém?

Deixou a mesa e perambulou pela casa. Trepada perigosamente sobre uma escada de alumínio de três degraus, Ayla cantarolava enquanto organizava os armários da cozinha. O porão podia ser a salvação do tédio, nunca o visitou e a escada de madeira gemeu sob seu peso após escancarar a porta pequena. A luz presa pela fiação sobre os degraus balançou ao bater a cabeça, produzindo sombras amalucadas nas paredes de tijolinhos terracota.

A infiltração deixou manchas escuras nas paredes esbranquiçadas e sujas, assim como no piso de concreto. Tão amplo quanto a casa, o porão iluminava-se pela luz furtiva que o invadia pelos vitrais rentes ao teto. Violões empenados competiam o espaço com outros instrumentos musicais, caixas de papelão emboloradas e ferramentas. O efeito do fumo a alegrava aos poucos, feito formiga carregava o tédio nas costas como folhinhas, uma a uma, aos pouquinhos o desassossego e o aborrecimento dissolviam-se. Suspirou, triste pela estante de livros. O recinto úmido não se adequava para receber os preciosos de papel. Empurrou o balcão pequeno adornado com crânios e símbolos pagãos recostado na estante, cantando a musica a qual estrondeava no fone de ouvidos.

Passou os dedos frouxos sobre os tomos, dentre os quais alguns bastante antigos, virando a cabeça para o lado para ler os títulos nas lombadas. Contudo, protegido por um saco plástico, um dentre eles chamou a atenção. Antigo, a capa de couro não apresentava qualquer título ou marcação, retirou da proteção e o folheou. As páginas pardas e ásperas acumulavam pó e a fez espirrar. Um grimório bem escrito e ilustrado. Ocorreu nas primeiras páginas se tratar de uma leitura mitológica, porém nas seguintes, demônios e objetos mágicos foram apresentados.

A figura de um portal a fisgou. Ovalado, no centro um símbolo estranho combinava várias formas geométricas em vermelho carmesim. O artista representou o portal com virtuosismo, havia cinesia, e dele vários seres saltavam e varriam uma pradaria florida representando a Terra.

Não teve mais qualquer dúvida de que se tratava de um livro ao qual implorava para ser lido quando viu a ilustração de um amuleto em preto e branco, referido como chave. Abria portais e materializava qualquer demônio conjurado. Com o livro debaixo do braço deixou o porão. Ayla parecia desejar se especializar na lustração de móveis, sacudia os quadris ao espalhar o produto perfumado sobre a mesa da sala de jantar.

E o Verbo Se Fez Carne  ⚠️Completo⚠️Où les histoires vivent. Découvrez maintenant