A Origem de Gênesis

By maryabade

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Gênesis tinha vários objetivos para o seu ensino médio, bem organizados em uma to do list. Só que alguns, em... More

Nota sobre a não-binariedade de Jacques
Rádio Submersa: Nova Atlântida
Entrevista com: "A salva-vidas"
Entrevista com: "A cheerleader"
Bem-vindos a Nova Atlântida
Primeiro Ato
1 - Políticas Invisíveis
2 - Garotas Prodígios
3 - Salva-vidas Caninos
4 - Animais de doce
5 - Apostas de corrida
6 - Pedidos de Desculpas
7 - Frases de efeito
#1 - Rádio Submersa: Pangen? Nathan é gay?
Segundo Ato
8 - Caçadores de Medos
9 - Melhores Violinistas (e ciúmes)
10 - Malditas coincidências
11 - Últimas Opções
12 - Capivaras Domésticas (#DiaDoOrgulhoLésbico)
13 - Boca a boca (#VitoriaDay, rs)
14 - Garotas de toalha
15 - Restaurantes Franceses
16 - Políticas Visíveis
17 - Palavras não ditas
18 - Patos de Borracha
Entrevista com: "A (ou o) locutora"
#2 - Rádio Submersa: Jacques é uma mal amada
19 - Palavrões
21 - Sáficas
#3 - Rádio Submersa: Rapidinho, tem mais.
Terceiro Ato
22 - Maré Baixa
23 - Parentesco #JulinhaDay
24 - Colares da Amizade
25 - Presentes natalinos
26 - Lar
27 - Encontros Românticos
28 - Pansexual
29 - Espuma
30 - Pangen
31 - Péssimas Amigas
32 - Famílias Minúsculas
33 - Violinos (e vínculos) quebrados
34 - Coberturas (e garotas) lésbicas
35 - Atos de Amor (e Atlantis, de novo!)
36 - Caixas de Panetone
37 - Dia de São Nunca
Rádio Submersa: Eu, Gênesis Salvador
38 - Unanimidade
39 - Família Grande
40 - Gênesis
Bônus: A Origem de Primeiros Beijos

20 - Anéis de Brinquedo

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By maryabade

Beijar Isaac foi a coisa mais morna que já fiz.

Não estou dizendo que ele beija mal. Não. Ok, talvez o beijo não tenha dado certo. Não teve... química. Talvez seja porque foi o primeiro. Primeiros beijos são ruins. Tipo, não o primeiro beijo da vida inteira, mas primeiros beijos com pessoas diferentes. Com Pandora foi assim. Tudo bem, foi legal. Pela emoção. Talvez, na verdade, foi porque .não esperava. Como alguém beija tão de repente? Como Isaac me beijou? Por que Isaac Boaventura me beijou? E por que eu não senti nada? Sério? É tipo isso? Você passa a vida inteira querendo algo e no fim parece que você está ensaiando beijo em uma maçã ou sei lá?

Mas tem vários fatores que justifique eu não ter gostado desse primeiro beijo.

Tipo... não gostar do Isaac de verdade.

Não, isso está fora de cogitação. Ele é um cara legal. Foi gentil comigo. E me beijou. Mesmo se eu não gostasse dele, tinha que ter sentido alguma coisa, não? Tipo, gostar? O beijo parece ter ficado em um limbo. Não é que odiei, só não chegou nas minhas expectativas que eram altas demais. Tão altas que talvez sejam irreais.

Eu beijei Isaac.

E não foi nada demais.

Agora estou passando por um processo de sentimento de culpa porque deveria ter sentido alguma coisa. Ele foi gentil. Caiu no meu papo, que nem era real, e me beijou. E tudo o que estou pensando é como foi uma experiência ruim e como isso parece ter desestabilizado todas as minhas certezas. Mais ainda. Nem sei como olhar para cara dele depois disso. Primeiro, não estou conseguindo fingir que nada aconteceu. Segundo, Rebecca já riu umas cinco vezes desde que contei e estou me sentindo culpada porque ela está rindo de mim, mas também soa como se ela estivesse rindo de Isaac.

E acho que já estou me sentindo culpada demais por não ter sentido nada. Culpada demais por ter sentido tudo com Pandora. Sempre sinto.

Sou boa em esconder as coisas. Mas dessa vez não consigo. Só de pensar na possibilidade de sentir mais por Pandora do que por Isaac, meu estômago revira.

É sexta-feira. Consegui evitar Isaac por um dia, mas agora sinto que a bomba vai estourar e não vou conseguir mentir. Tipo, é fácil quando se trata de mim. Não é fácil quando se trata em coisas que, se fingir, vai magoar alguém. Não que eu ache que ele esteja com expectativas. Mas no instante que o vejo conversando com Pandora no meio do pátio, um novo medo aparece.

Ele ter contado que me beijou.

E aí ela vai acabar descobrindo que não gostei tanto assim, vai ser desconfortável e vai rir da minha cara.

Acalma — Nate resmunga pela minha impaciência. — Beijou e não gostou? Pronto. Tu acha que a gente tem que gostar de todos os beijos do mundo?

O lugar de sempre. Sempre.

— É, mas ele é o Isaac. E ele foi super gentil comigo. Ele é legal! Sabe o que é gostar de alguém que não é o que parece? Ele é igualzinho como eu imaginei. Só... não teve borboletas nenhuma. Não teve a emoção de um sentimento correspondido.

— Eu sou o cara mais bacana do mundo e você não está apaixonada por mim, Gênesis. Não é assim que a banda toca. É por isso que nem tudo é um mar de rosas. Às vezes, a gente se apaixona por idiotas. Ou quem não esperávamos.

— Talvez eu só... não senti algo dessa vez porque estava em choque.

— Não estou falando de Pandora — Becca diz, logo de cara. — Mas você gosta de garotas?

Não. Juro. Nunca me senti atraída por nenhuma garota assim. Sério. Minha vida inteira foi estar apaixonada por Isaac. Garotas também não são meu forte. Pelo menos, consigo me imaginar namorando com um garoto.

— Mas você quer?

— Complicado. Não sei. Foi só um beijo. Não é como se tivesse dado errado de todo.

Nathan e Rebecca me olham em tom de julgamento.

Gênesis, você vai prometer que, se confia tanto na tua heterossexualidade, não vai ficar desesperada pra provar que gosta desse garoto e ficar se forçando, beleza? — Nate aponta o dedo pra mim e eu reviro os olhos. — Promete, Gênesis.

— Eu prometo. — Eu mostro as mãos, provando que não estou quebrando nenhuma promessa. — Vou pra aula.

Não porque não estou desesperada pra provar que gosto de alguma coisa, mas seria patético ficar com alguém quando não estou afim. Não sou tão babaca assim. Nem deveria me sentir culpada por não sentir nada no primeiro beijo, já que não fui eu que dei a iniciativa. Na verdade, quando falei que queria que ele me notasse, não queria que fosse justamente naquele dia.

Céus, estou pilhada por isso e talvez ele só tenha beijado por beijar, como todos os adolescentes fazem.

Gênesis. — Alguém me chama antes que eu cruze a porta.

É Alana. Eu a fito. Ela está com um ar de petulância que me irrita. Se tinha alguma consideração por ela (tenho, mas preciso fingir que sou durona um pouco), está morrendo aos poucos. É como se tivesse um fantasma a forçando a falar comigo.

— Lulu quebrou a perna. A gente tá sem uma base.

Eu sei o que isso significa, mas finjo que não.

— E daí?

— Que a gente tá sem base, o campeonato é semana que vem e sua mãe falou comigo sem saber que não somos mais amigas. Ela perguntou como estão os treinos, que você está indo, e está bem animada para o campeonato. — Alana cruza os braços, séria. — Você tem uma semana pra aprender seus passos. É fácil. Te mando um vídeo. E fala com a sua flyer.

O tom que ela usa para o fim da frase significa que é Rebecca. Alana me atravessa, entrando na nossa sala e eu não sei o que dizer. É claro que não cogitei que mamãe falaria com uma dessas idiotas. Claro, óbvio. Que burrice. É óbvio que ela falaria. Que merda. Estou parada no mesmo lugar absorvendo o tipo de ameaça que ela me fez quando sinto alguém entrelaçar seus dedos nos meus. Não é nada romântico ou coisa do tipo, mas acho que meu coração para de funcionar quando Pandora me conduz até a sala.

Ela não diz absolutamente nada. Pam apenas segura minha mão e me faz ir em direção ao meu lugar, antes de se sentar no seu.

— Vai pra casa do seu pai hoje?

Hum?

— Sexta. Fim de semana lá. Eu vou pra casa, mas tenho folga hoje... — Ela batuca na sua mesa. — Quer fazer alguma coisa?

— Tipo o quê?

— Sei lá. A gente pode... Não sei. Não me importo de, sabe, só ter tua companhia.

Viro o rosto. Não consigo observar sua expressão ao dizer isso porque a professora chega, me assustando e deixando claro que quer 100 por cento de atenção na sua aula (insuportável). Ainda sim, a última frase me acerta em cheiro. Ela está triste? O que aconteceu?

Não. Não está.

Pandora está feliz. Os dias na casa do papai realmente fizeram bem para ela. Não sei, mas até o jeito dela está diferente. Isaac não contou pra ela sobre o beijo porque não há nenhuma menção ou indireta. Nós duas estamos caminhando para casa, sem muita conversa, mas não é uma clima desconfortável. Na verdade, não é um clima desconfortável porque Pandora está feliz. O beijo de ontem está me pendurando junto com a fala de Cecília. Meus pés parecem pesados, em cada passo, e Pandora está quase flutuando.

— Desembucha, bobona.

Ela vira o rosto pra mim e ri.

— Adivinha o que eu comprei.

O quê?

— Falei pra adivinhar.

— Uma nadadeira. Pé de pato. Um aspirador de por. Um tubarão. — Ela vai negando com a cabeça antes de fazer uma careta.

— Um tubarão?

Fala logo.

— Tá, fecha os olhos — pede, abrindo o bolso menor da mochila. — E estende a mão.

Eu faço o que ela pede. Ao invés de colocar algo na minha mão, ela o vira e insere um anel no meu dedo — com nem um pouco de delicadeza, talvez. Quando abro os olhos, confusa, um anel cor-de-rosa está no meu dedo. De plástico. Um anel de brinquedo. Levanto o olhar para Pandora que está sorridente. Nós duas estamos paradas no meio da rua por um anel de brinquedo e, pra ela, isso soa incrível. Demoro um pouco pra entender o motivo do anel.

500 anéis da Pandora.

— Eu não disse qualquer anel.

— "da Pandora". Eu comprei o anel pra mim, depois te dei. Logo o anel era meu.

Ela elaborou isso por tanto tempo que estou surpresa.

Quero rir.

— Você sabe muito bem que era da marca.

Ambiguidade.

Idiota. E eram quinhentos. — digo antes de repensar bem. — Não, não. Não me dê 500 anéis de brinquedo. Declaro que Pandora Verona está perdoada. Não me dê 500 anéis.

— Tarde demais.

Eu a olho incrédula. Ela morde o lábios inferior. Estamos perto da casa do papai. O sol não está tão escaldante, mas não consigo absorver que Pandora conseguiu a proeza de comprar 500 anéis só pra fazer graça comigo.

— Pandora, você comprou 500 anéis de brinquedo?

— Não exatamente. Seria desperdício. Mas sabe, é um objeto muito comum para crianças. E não consegui 500, foi 499.

Pam.

— Eu disse que faço qualquer coisa legal por ti.

Ok, de surpresa e incredulidade, acho que estou mudando o que estou sentido com a situação. As mãos nos bolsos, a animação da Pandora só pra me provocar com algo que eu nem lembrava mais. Idiota. Idiota. E... acho que estou tendo ensolação ou algo assim. Meu peito acelera e o nervosismo percorre todo o meu corpo enquanto nos entreolhamos. Nem deveríamos. Hoje não é um dia bom. Desvio o olhar, ela ri ainda.

— Só você, Pandora. Só você. — Aliso o braço, tentando disfarçar a sensação.

— Espero que seja um elogio. O que a Alana queria contigo?

O assunto ainda é delicado, mas pelo menos esqueço o anel no meu dedo e o nervosismo por uma brincadeira boba.

— Lulu quebrou a perna. Tão precisando de uma base. Ela quer que eu vá pra elas continuarem no campeonato. Uma semana de treino, tipo assim — explico, chutando pedrinhas pelo caminho.

Pandora está só existindo e eu estou caindo igual uma idiota com meus pensamentos.

— Ah, tu não vai. Claro. Nem discussão.

— Rebecca é minha amiga, vai prejudicá-la também. Se não fosse por isso, nem cogitaria.

— É só por isso que tu tá cogitando? — Ela me pergunta, olhando do canto dos olhos.

— Deve ser.

— Sua mãe não vai brigar contigo. Vai ver só, desgaste pra nada.

— Não me sinto confortável ainda — aviso e ela suspira.

É uma frase que a faz repensar se vai continuar deixando claro que não é uma boa ideia e que a outra é mais fácil.

— Tudo bem. Vamos assistir um filme hoje?

— Que tipo de filme? — pergunto, notando que já estamos na porta de casa.

Aquele filme.

— Eu não estou pronta pra esse, mas... qualquer outro, tudo bem.

Fechado.

É unicamente Pandora que me ajuda no almoço hoje, o que é bem diferente das outras vezes. Papai está assistindo televisão no sofá, junto com Sue. É fofo ver os dois juntos agora, parecendo namorados adolescentes (principalmente quando significa que eles não terminaram). Nunca cozinhei sozinha com Pandora, nem quando éramos amigas. Não porque temos algum problema ou porque Pandora é uma péssima cozinheira — na verdade, ela é boa o suficiente para me acompanhar.

Na verdade, é estranho que eu não lembre de nenhuma vez que estivemos sozinha na cozinha preparando algo.

Talvez seja por esse motivo que essa pareça tão estranha.

Ou porque estou em confusão.

Não tirei o anel também.

O anel está no meu dedo. Bobo. Duvido que eu vá conseguir tirar sozinha depois, mas parece bonito um pedaço de plástico colorido. Céus, as tartarugas. Pandora vai matar várias tartarugas.

— Valeu por ter me deixado ficar aqui.

— Quer ficar mais? — pergunto, mordendo os lábios.

— Não, valeu. Mas muito muito obrigada.

— Você já agradeceu várias vezes — retruco, com uma risada curta. — Fica mais.

Não. Mas até que foi legal. Seu pai faz um sanduíche legal de manhã, ele sai gritando pontualmente junto com o alarme e a gente assistiu todos os filmes de Jornada nas Estrelas. Junto com a namorada dele. Sabia que a Sue tem mestrado em inteligência artificial? — O tom animado que ela usa enquanto mexe usa a faca pra cortar, devagarinho, as coisas.

— Tá vendo? Você precisa ficar mais. Parece tão melhor agora! Tá até bonita agora. Sim, antes você era feia. Quer continuar bonita? Fique aqui.

— Que argumento besta — ri, eu também. — A gente tá bem agora, não tá?

Ahram.

— Quer ir no Atlantis comigo?

— Que pedido mixuruca — brinco, só por nervosismo.

Quando a gente era criança, combinamos que queria em Atlantis em algum tipo de encontro romântico. O auge era o Atlantis porque era caro, impossível e mágico. Não é uma boa ideia perguntar isso quando minha mente está confusa porque minha maior expectativa romântica parece ter ido por água abaixo. E a outra expectativa romântica, meu cérebro está atirando pro lugar errado.

— Gênesis Salvador, me dá a honra de sair comigo? — provoca, acertando levemente o pano de prato em mim.

— Sair, como?

— Como assim? — pergunta, confusa. Eu deslizo os dedos pelo pequeno balcão próximo da pia. — Eu sei que tu queria ir com um garoto lá, mas também sou uma ótima companhia. Sério, sou divertida. E... se você quiser, posso arrumar uma roupa social. Um terno. Sei lá. Essas coisas chiques.

— Pandora.

— Quer sair comigo? — sussurra, me deixando nervosa.

— Quero. Quero sair com você, Pam.

— Suas expectativas vão subir tanto que todos os garotos que tu sair depois serão medianos.

Já são. Já são.

Idiota.

Isaac me mandou mensagem.

Tipo, às duas. Ele me enviou uma mensagem simples, perguntando como eu estava. Não sei o que isso significa além de uma pergunta educada. Vai que, de ontem pra hoje, entrei em curto-circuito? Não tem nada por trás disso, mas é uma lembrete gigantesco de que tenho um problema na mente. Dois, o outro está bem próximo de mim e não precisa de lembrete nenhum. Papai comprou um pote de 800mL de sorvete romeu e julieta pra gente, mas só de cogitar assistir um filme está me deixando ansiosa. Não tem nada demais, mas agora entendo como algo íntimo. Ou talvez seja ainda o nervosismo, minha mão alisando meu braço enquanto observo Pam enfiar duas colheres no pote cilíndrico.

Hoje é um péssimo dia. Não sei se Pandora nota e por isso está fazendo isso.

— Vamos assistir qual? — Ela vem em minha direção.

Estou de braços cruzados, no meio da sala. Sem perceber. É só nervosismo.

Passo a autoridade de escolha pra ela. Não é como se estivesse com cabeça pra assistir filme, mas seria patético negar quando o motivo é beijei Isaac e não senti nada, mas só de ficar perto de você eu tenho uma manada de borboletas em mim. Ou talvez nem sejam borboletas. Talvez só seja culpa mesmo e o nervosismo de não sentir nada me deixe com meu coração batendo e meu estômago revirando. Na verdade, estou sentindo esse nervosismo que pode ser as malditas borboletas ou uma morte por se culpar tanto. Pandora se senta bem pertinho de mim, colocando o pote minúsculo de sorvete entre nós.

Não é uma animação. A gente sempre assiste filmes de desenho, mas Pandora parece entender como "melhor não" e escolhe uma comédia boba com o ator do Homem de Ferro. Não estou tomando sorvete, mesmo que Pandora afaste o pote pra mim. Na verdade, nem prestar atenção no filme estou conseguindo. Estou focada na televisão, assistindo um viagem de carro digna da sessão da tarde, mas não entendendo nada do filme porque minha mente está em outro mundo.

— Metade do sorvete, Gênesis. Eu vou comer tudo e depois vou passar mal. É isso que tu quer? — Pandora diz, estendendo o recipiente. — Quer parar e conversar ou alguma coisa? Tô te achando muito amuada. Foi por Alana? Hum?

O filme continua rodando, mas ela está com o rosto virado em minha direção. Eu não viro porque assim ficaria perto demais.

Também. Tô me sentindo culpada — confesso, sem dizer muito.

— Pelo quê?

— Por não atender minhas próprias expectativas. Mas não quero falar sobre isso, nem tô conseguindo assistir o filme. A gente pode conversar, só. — Ela coloca o pote de sorvete no meu colo. — Coisas... leves.

— Se você fosse pra qualquer lugar do mundo, pra onde iria? — Pandora se encosta no outro lado do sofá, de frente pra mim.

É ótimo que ela se afaste. Pelo menos, em situações como essa, Pandora sabe fazer o máximo para respeitar.

— Não sei. Não conheço muito. Mas provavelmente em um sítio. Na verdade, iria querer um lugar litorâneo. Acho que não consigo ficar longe da praia, mesmo que não seja tão fã assim. E você?

— Longe da praia. Eu iria querer viver em uma cidade tipo São Paulo. Mas sei lá, cidade grande demais pra mim. Acho que uma cidade média. Grande, mas não o bastante para ser a maior cidade da américa latina. Uma cidade vizinha.

— Tu vai pra lá?

Não. Vou voltar pra Recife. Não pela minha família, mas soa confortável pra mim. E acho que não tenho dinheiro suficiente para viver em São Paulo, fácil. Não que eu tenha pra Recife, mas...

— Você vai ter dinheiro, Pandora. Violinistas cultuados tem dinheiro.

— Não sonho tão alto. Na verdade, os filhos da minha melhor amiga vai ter que lidar com uma dinda sem presentes.

— Não vai ter que lidar porque você não vai ser a madrinha dos meus. Valorizo presentes — dou uma risada. — Brincadeira.

— Não tava falando de ti, mesmo — sorri de canto. — Seja coerente, por mais bobo, o que tu faria se pudesse fazer qualquer coisa? Pode ser algo de criança.

— Você sabe que minhas vontades de criança não são muito válidas.

— O que tu tá pensando agora?

— Nada.

Ela suspira. É uma brincadeirinha, mas ela entende que me afeta.

— A gente descobre. Te ajudo.

Eu sorrio. Não sei que tipo de ajuda ela poderia dar.

— Eu sei que é estúpido dizer isso a essa altura do campeonato, mas... não sei muito sobre você. Quer dizer, o que mudou? O que você descobriu que gosta?

— Não mudei tanto assim. Ainda escuto as mesmas músicas. Gosto de assistir filmes. Tocar violino. Sei lá, essas coisas de sempre — dá de ombros.

— E sair? Você não jogava fliperama tanto antes. O que você gosta de fazer?

— Eu não saio taaaanto assim, Gênesis. Só com a Jacques ou quando é, tipo, um encontro ou algo do tipo. Gosto de ficar na praia, comer alguma coisa das barraquinhas e não sou muito fã de festas com barulho alto.

— Você não bebe também.

— É, mais ou menos. Nunca fiquei bêbada ou elevada por álcool, sei lá como funciona. Bebo bem pouquinho.

— Por que não gosta? — questiono.

— É, não vejo vantagem.

— Eu tive uma visão errada de você nesses três anos, tu parece o tipo que sai bebendo por aí. Você é uma adolescente careta.

Eu me divirto.

— É, mas a gente precisa de momentos vergonhosos também. Eu tenho muitos. Não com bebida, mas... fazendo bobeira. Não é minha atividade favorita, mas eu gosto. Por que você acha que os filmes vendem adolescentes que bebem e fazem besteira?

— Alimentar a indústria de bebidas alcoólicas. E estereótipos.

— Pandora — gargalho. — Veja bem, eu não quero que você beba. Eu nem bebo assim, também. Mas você precisa ter um momento bêbado. É o ato adolescente mais clichê e irresponsável.

— Quer que eu seja irresponsável?

Sim. Sim! Isso mesmo, você tem que ser irresponsável um tiquinho. Não precisa ter bebida, só... sei lá.

— Pichar um muro? Não posso fazer muita coisa que precise de um responsável legal, Gênesis. Ou um responsável, de qualquer forma.

Quando coloco uma colher de sorvete na boca, ele já virou líquido praticamente. Ok, eu não me esqueci disso, mas acabei falando algo mal colocado.

— Eu sei, mas... uma besteirinha. Sei lá, atitude precipitada.

— Qual seria sua atitude precipitada, se fosse tu?

Eu mordo os lábios. Coloco mais uma colher com conteúdo pastoso na boca. Se o cabelo da Pandora não estivesse descolorido, um cachinho mais formado estaria caindo na testa. Não é exatamente o que acontece agora. Ela está passando a mão na pulseira improvisada de lua. Fazendo a lua ficar em vai-e-vem.

— Jogaria esse resto de sorvete na sua cabeça.

— É cedo demais pra tu voltar a usar seu sol?

Olha, assim, tipo, ele está no fundo do mar, mas acho que estou me sentindo culpada porque o seu sempre esteve no seu braço.

Ahram.

— Ou tu quebrou igual o pôster? — completa, me fitando.

— Claro que não. Aliás, e se tivesse quebrado, estava no meu direito.

Ahram — me imita, desacreditada.

Eu reviro os olhos. Óbvio que eu jogaria fora. Mas há algo no olhar de Pandora de quem quer dizer mais.

— Desembucha, bobona — repito, pela segunda vez no dia.

— Eu não tô pedindo nada. Juro. Mas eu morro de curiosidade do que tu disse que tinha pra me dar de surpresa antes. Provavelmente tu também jogou fora, mas queria saber. Só pra matar a curiosidade.

Ela ainda lembra disso.

E isso revira meu estômago mais ainda. Mas isso eu tenho certeza que é nervosismo.

— Já era. Vai ficar sem saber — digo.

Seria humilhante, dado o contexto.

— Tu ia me dar aqueles presentinhos fofos com papelzinho e tudo mais? — provoca e eu reviro os olhos.

— Tá se achando muito engraçadinha, ein, palhaça.

Meu celular vibra em cima da mesinha. Eu estendo a mão para pegar enquanto Pandora ri do tom que usei para a última frase.

[Nate: Gênesis, ;( Quer sair comigo? e com a Becca? Reunir com umas pessoas e beber lá na praia. Recebida às 15:20.]

— Hoje é seu dia de sorte, Pandora. A gente vai sair.

Sair?

É. A gente vai beber na praia. Você vai beber um pouco.

— Não, Gênesis. Não.

— Eu vou cuidar de você, Pandora. Prometo. Além do mais, queria me entreter um pouco hoje. Você aceita me fazer companhia?

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