A Origem de Gênesis

By maryabade

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Gênesis tinha vários objetivos para o seu ensino médio, bem organizados em uma to do list. Só que alguns, em... More

Nota sobre a não-binariedade de Jacques
Rádio Submersa: Nova Atlântida
Entrevista com: "A salva-vidas"
Entrevista com: "A cheerleader"
Bem-vindos a Nova Atlântida
Primeiro Ato
1 - Políticas Invisíveis
2 - Garotas Prodígios
3 - Salva-vidas Caninos
4 - Animais de doce
5 - Apostas de corrida
6 - Pedidos de Desculpas
7 - Frases de efeito
#1 - Rádio Submersa: Pangen? Nathan é gay?
Segundo Ato
8 - Caçadores de Medos
9 - Melhores Violinistas (e ciúmes)
10 - Malditas coincidências
11 - Últimas Opções
12 - Capivaras Domésticas (#DiaDoOrgulhoLésbico)
13 - Boca a boca (#VitoriaDay, rs)
14 - Garotas de toalha
16 - Políticas Visíveis
17 - Palavras não ditas
18 - Patos de Borracha
Entrevista com: "A (ou o) locutora"
#2 - Rádio Submersa: Jacques é uma mal amada
19 - Palavrões
20 - Anéis de Brinquedo
21 - Sáficas
#3 - Rádio Submersa: Rapidinho, tem mais.
Terceiro Ato
22 - Maré Baixa
23 - Parentesco #JulinhaDay
24 - Colares da Amizade
25 - Presentes natalinos
26 - Lar
27 - Encontros Românticos
28 - Pansexual
29 - Espuma
30 - Pangen
31 - Péssimas Amigas
32 - Famílias Minúsculas
33 - Violinos (e vínculos) quebrados
34 - Coberturas (e garotas) lésbicas
35 - Atos de Amor (e Atlantis, de novo!)
36 - Caixas de Panetone
37 - Dia de São Nunca
Rádio Submersa: Eu, Gênesis Salvador
38 - Unanimidade
39 - Família Grande
40 - Gênesis
Bônus: A Origem de Primeiros Beijos

15 - Restaurantes Franceses

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By maryabade





Pandora é uma babaca.

O pior é que ela não está errada. Quem sou eu pra julgar os sentimentos dos outros? Ninguém. Mas sou o suficiente para julgar o modo como ela tem péssimas escolhas, tipo Cecília. A imagem dela nua ainda está na minha mente e eu simplesmente não consigo tirar. Primeiro, ela enviou uma foto nua para Pandora! Que tipo de intimidade é essa?

Segundo, por pura preocupação e política invisível, estou preocupada que Cecília a magoe. Sei lá, fique brava e faça um comentário maldoso, assim como fez comigo. Óbvio que não posso dizer nada porque Pandora está chateada comigo e já procurei todas as desculpas plausíveis que não demonstrem que estou me sentindo culpada.

E esse é o primeiro dia pós discussão no banheiro. É o primeiro dia sabendo que mamãe está ansiosa para um campeonato que nem estou participando mais. É sobre isso. Só.

Eu sou uma desesperada.

Sou uma desesperada que está com a mente turbilhando em coisas que não consigo pensar nem em pensamento. Tipo aquele momento esquisito que pensamos que tem alguém lendo nossos pensamentos e nós devemos pensar em coisas legais. Sim, por exemplo, estou pensando em xingar Pandora porque há uma linha tênue minúscula entre isso e... coisas erradas. Em todos os sentidos. Nossa última conversa foi estranha. Agora estou sofrendo todos os resquícios do que aquilo desencadeou.

Eu me senti idiota ao ver o corpo de Pandora. Mas isso não deveria acontecer porque... ela foi minha melhor amiga. Nós fomos quase irmãs. Eu sou algum tipo de monstro? Certo, ótimo. Um monstro. Queria fingir que não senti algo, mas não consigo. Mas entender o que aconteceu está bem mais distante de admitir. Eu admito que senti uma sensação esquisita, que meu cérebro igualou Pandora à uma obra de arte.

Clichê. Ninguém conseguiria imaginar algo tão incrível sem ver. Não estou dando contexto romântico, é só que as pequenas coisas de Pandora a deixam incrível. As pintinhas na pele negra. Os pelos crescidos e livres. A cicatriz rosada na pele.

Gênesis! O que você pensa que está fazendo?

Admito que senti uma sensação esquisita.

Mas não faço a mínima do que significa e o porquê disso parecer um alfinete em um balão cheio de água. Que vai estourar na minha cabeça. Em algum momento.

Ah, o almoço legal.

Não queria ir, esses almoços são divertidos. Eu e papai passamos boa parte do tempo falando sobre o cardápio, comida e se divertindo, como se fôssemos próprios críticos de restaurantes. É nossa tradição desde criança. É o vínculo mais forte entre nós. É algo pra levantar ânimos. Mas duvido que algo vá conseguir animar meu ânimo quando estou com tantas preocupações quanto agora. Tipo, explicar para mamãe que não sou mais líder de torcida porque não gosto mais tanto disso. Explicar para mim mesma, como se fosse uma criancinha, que não é legal olhar para o corpo da sua melhor amiga, apagar nude que não foi pra você e criar uma sensação tão constrangedora quanto criei.

Explicar que me sinto esquisitamente fora de órbita. Sinto que não sou eu mesma. Ou que eu me perdi no personagem. Ou seguindo o script, tipo Show de Truman.

Se eu falar em voz alta, vai soar mais patético ainda.

Uma crise de identidade em que tudo o que vivi parece irreal. E é estúpido porque tudo o que preciso fazer para sair dela é simplesmente sair. Mas o que me prende nela? O que me prende em querer que todas as coisas que eu queria aconteçam?

Estou com a mochila do colégio nas costas, esperando no modo indicado por papai. Tem bicicletas colocadas de qualquer jeito de um lado, a brisa do mar forte e a impaciência de um homem, provavelmente estrangeiro. Nunca fui aqui, na verdade. Talvez seja um lugar novo. O letreiro, torto, deixa bem claro que se trata de um restaurante francês. Não um restaurante requintado. A maioria dos restaurantes típicos de lugares europeus, há sempre algo característico. Algo caro. Esse parece ser como qualquer outro. Um letreiro mal feito, as mesas de plástico ao redor do lugar... soa mais confortável.

Eu e papai já encontramos um padrão. Restaurantes assim sempre são melhores que restaurantes chiques como Atlantis.

— Gênesis? — Papai chama minha atenção e eu aperto as alças da mochila, o seguindo.

Quero demonstrar minha melhor expressão, parecer amigável. É um favor pra papai, mas acho que percebo algo extremamente errado quando entro no restaurante. Não sei qual é o problema nele. Se é o aspecto de bar, se é a música sendo cantarolada por um garçom animado ou se... são as bandeiras. Que não são de países. Nenhum país tem uma bandeira como as que estão na parede. Meu peito se enche ao fazer o reconhecimento do local e ver a quantidade de bandeiras.

Não sou burra. Não preciso ser experiente no assunto pra saber que são bandeiras LGBTQ+.

Meu pai acha que sou homofóbica.

Ou algo assim.

Merda.

Eu te odeio, Pandora.

— Eu já escolhi o que a gente vai comer. — Papai diz enquanto tento não esboçar nenhuma reação exagerada. — Mas peguei um freela péssimo, vou ter que fazer uma ligação e volto já, tudo bem?

Como assim já escolheu? É uma tradição!

Meu pai sai antes de eu poder dizer qualquer coisa. Estou quase pensando em sair correndo e dizer que não estava me sentindo bem, assim como sempre faço. Mas acho que isso vai piorar um pouco o que ele acha de mim. Meu pai acha que eu odeio minha melhor amiga porque ela é lésbica! E como achar uma maneira de explicar que aquele soco foi puro nervosismo?

Eu me sento em uma das mesas vagas, dentro do restaurante. Duas bandeiras estão fincadas. Elas parecem estar me julgando. Panos coloridos me julgando. Isso não poderia ser pior. O martelo no triângulo de fundo roxo. As cores que me parecem um verão caloroso. Eu acharia bonito, em outra ocasião, caso não estivesse tentando decifrar quando meu coração vai parar de funcionar por tamanha vergonha.

— Olha, longe de mim atrapalhar, mas vou ser direta. — Uma senhora se senta na minha frente.

Não a conheço. A voz, o sotaque torto. Ela parece tropeçar em cada fala. Não é que ela não saiba português, só é nítido que não é, de longe, sua língua materna. O tom de voz dela é rouco e ela fala baixinho. Não a conheço, mas não consigo fazer nenhuma objeção da sua aproximação. Parece uma senhora doce, mesmo que seu olhar diga que não.

Não mesmo.

— Dorinha é uma moça bonita, gentil, um amor de pessoa! Ela toca violino que é uma beleza. Aquela menina é um tesouro, merece o mundo! Tu deves saber. Odeio filhos e toda essa bobajada, mas aquela garota é minha afilhada e não aceito que alguém a deixe mal. Se ela não te faz bem, se afasta. — O olhar dela é de pena, tristeza. Não consigo decifrar, talvez seja apenas cansado. — As pessoas tem mania de achar que alguém é ruim porque não deram certo, mas tá tudo bem. Eu sei que ela tem um bom coração e aposto que você também tem então... tá tudo bem ter incompatibilidades.

Incompatibilidade?

— Mas ela tá ficando mal com isso. Tá toda tristinha. Pelo menos no colégio, tem que ser animado! Veja bem, ela inventou que quer sair daqui logo de Nova Atlântida. Quer ir embora, seguir os sonhos dela. Eu entendo, é legal. Mas tu achas que vale a pena quando ela passa todos os momentos do dia ocupada? Ela tá cansada. Quando eu era adolescente, estava quase morrendo de coma alcoólico. Eu sei que ela é animadinha, mas acho que não tá conseguindo lidar bem com a morte da mãe ainda, sabe? Não sei o que fazer, não a conheci. Fico de mãos atadas nisso. É por isso que vou ajudar no que posso. Se vocês não estão dando certo, corte pela raiz. Vai fazer bem pras duas. Se ela te magoa e não quer te pedir desculpas, se afasta.

Me afastar? Eu tento absorver cada coisa que ela diz, mas é rápido e demoro mais que deveria. Ela jorra as palavras e impede que interrompa qualquer frase sua. Não a conheço. Ela não me conhece. Como ela pode sugerir que me afaste de Pandora quando já tentei?

— Eu sei que o problema provavelmente é a Dorinha. Tá na cara! Mas sei que na cabeça dela deve ter um motivo indiscutível, sabe? E pra ela, tá justificado. As pessoas são assim, meio sem noção. É só que... — ela suspira, preocupada. — sexta vai fazer um ano que a mãe dela morreu, a menina não tem uma pessoa de verdade como responsável e ela está lidando estranhamente bem. Acho que em alguma coisa ela teria que errar. E ninguém tem que lidar com os erros dos outros.

Eu a olho. Estou absorvendo cada palavra, mesmo que meu cérebro esteja focado em "incompatibilidade". Ele repete tantas vezes a palavra que se embaralha no discurso até substituir por outra. Estranhamente bem. Pandora deixou a casa do mesmo jeito desde que a mãe morreu.

Não é nada bem. Eu sei disso.

Mas não me sinto mais na posição de questionar demais ou obrigá-la a desabafar comigo.

— Mas se você quiser tentar... — Ela tira um envelope do bolso, me fazendo ficar confusa. — Não vale a mesma coisa que saindo da boca dela, mas ela escreveu um pedido de desculpas uma vez.

O envelope se arrasta na mesa. Eu observo. Um pedido de desculpas. Um pedido de desculpas de verdade.

— É por esse pedido de desculpas que entendo sua mágoa. É por ele que também entendo a dela. Se tiver te machucando, ninguém vai julgar se você desistir disso. Mas acho que seria uma boa se vocês tentassem resolver a pendência do passado, juntas. Acho que se der certo, vai fazer bem pras duas. Quer dizer, ela mexeu pela primeira vez nas coisas da mãe pra te fazer uma sopa, não foi? — sorri de canto, eu sinto algo no meu corpo. Esquisito. É como se, em algum parte, ele esteja se sentindo especial por essa frase. — E você, um palpite, tem bastante coisa presa na mente desde que pararam de se falar, não tem?

Engulo em seco. Tem bastante coisa presa na minha mente.

— Espero que se sinta confortável aqui — encerra, sem possibilitar muitas frases pra mim.

Ela se levanta, minha expressão continua a mesma enquanto a vejo se afastar em direção a alguém que grita algo que soa como "Anastácia!". Não me deixou dizer uma única maldita palavra. Ainda sim, não estou irritada. Na verdade, é tudo questão de absorver e ter certeza que eu absorvi tudo direito. E talvez, um pouco de mim, esteja satisfeita que Pandora tenha tantas pessoas preocupadas ao seu redor. Mas não é o único pensamento agora, quando tem um envelope em cima da mesa.

A carta continua lá, intocada. Eu não mexo. Como seria um pedido de desculpas de verdade? E se, finalmente, confirmar que fui errada e ela não quis contar porque achou que seria demais pra? Sei lá, descobrir que sou realmente um lixo?

Toco na carta, sentindo a textura, antes de colocá-la na minha mochila. Papai aparece minutos depois, se sentando e olhando o cardápio. Ele não tinha escolhido. Ele fez isso só para que Anastácia falasse comigo? Eu o observo olhar o cardápio e faço o mesmo com o próximo de mim. Não estou lendo as palavras, só quero fingir que meu cérebro não está fritando com tudo. Meu pai me trouxe aqui porque eu pareço algum tipo de tiozão de meia idade preconceituoso. E agora caiu a ficha que o motivo de Pandora parecer está tão bem porque ela simplesmente não está.

E eu...

Eu...

— O que acha desse aqui? — Papai vira o cartaz, apontando para um e eu concordo, sem fazer qualquer objeção ou pelo menos ler o que ele indicou.

Nervosismo corre em minhas veias. Se fosse um filme, seria aquela cena cômica que o personagem sai correndo, completamente desorientado, e sem saber o que fazer até chorar no meio das pessoas. Ainda bem que não é um filme.

— Pai, não tenho problema nenhum na Pam ser lésbica. Quer dizer, lésbicas no geral. — Aperto minha própria coxa, observando a reação confusa em resposta.

— Do que você tá falando?

— Esse lugar. Entendi. As bandeiras. Eu acertei o rosto de Pandora e isso pareceu estranho — gaguejo, desviando o olhar.

Papai ri. Ele ri em resposta.

— Gênesis, do que você tá falando? Não te trouxe por isso. Eu e sua mãe te criamos bem, tenho absoluta certeza.

— Não? — retruco, rápida e incrédula.

— Não. — Ele coça o queixo, livre de qualquer pelo de barba, sem jeito. — Só queria que você se sentisse confortável.

Ah.

— Pra qualquer coisa.

4,5.

A nota.

Eu não sei se essa nota foi manipulada pelo fato da cozinheira ser alguém que se importa com Pandora, mas a comida estava realmente boa. O bastante para (repito: talvez com manipulação sentimental) ser o restaurante com maior nota até o momento. Eu não falei muito. Nossos almoços sempre são cheios de faladeira, mas acho que nenhum de nós se importou em ficar em silêncio. Tinha muita coisa pra absorver, da minha parte. Antes de eu ir embora, Anastácia me deu um macaron vermelho em formato de coração — "comidas fofas, não é?".

E agora estou indo embora.

Ir embora é uma coisa. Estou de uniforme ainda. São quase duas da tarde. O envelope é quase nada dentro da minha mochila, mas soa pesado em todas as circunstâncias. Ela escreveu um pedido de desculpas e não teve coragem de me entregar. Mas uma senhora estava com ele e leu. Ela não me mandou entregar agora.

Eu não estou indo pra casa. Na verdade, odeio dizer isso, mas estou indo pra praia. Não é a praia Principal. Na verdade, acho que não lembro a última vez que vim aqui. Há uma pequena parte de areia antes da infinidade de pedras, de todos os tamanhos, amontoadas. Um pouco pra lá, uma extensa parte verde, com árvores, matos, se elevando como uma colina. Do outro lado da colina, o aeroporto de pequeno porte. Acho que talvez seja o motivo para poucas pessoas virem pra cá. O barulho dos aviões, em momentos nada específicos do dia.

Foi por isso que, movido à filmes, eu e Pandora enterramos aqui nossas cápsulas do tempo. Em algum canto. Acho que ela não seguiu a lista dela. Quer dizer, duvido que ela pensava que seria assim agora. Mas a minha lista é um problema. Não lembro dela, tipo não é como se estivesse desesperada para preenchê-la e provar para meu eu criança que consegui. Mas, ainda sim, inconscientemente, estou.

Quer dizer, por que diabos não conto logo pra mamãe que não gostava de cheerleader? Ou que me tiraram do grupo e não estou tão afetada quanto deveria? Sinto saudades de como era divertido, mas não sinto da prática em si. Porque meu eu criança queria isso, não eu. Assim como metade da lista. Muito mais que a metade.

Por que diabos estou tentando ficar com Isaac?

— Tá tudo bem?

Isaac? — Cubro os lábios, em susto.

Não estou chorando dessa vez, mas talvez a cena seja tão esquisita quanto a última. Estou deitada em uma pedra gigantesca, com o rosto em direção ao seu e de olhos fechados — o sol me cegaria. Estou tentando ser coerente comigo mesma, mas a real é que se outra pessoa chegasse pra mim e falasse que está usando uma lista idiota de âncora, mesmo sem perceber, eu teria um discurso melhor do que estou dando pra mim. Meio perdida.

— Aconteceu alguma coisa de novo? É a mesma coisa de antes? A gente tá jogando ali, se quiser... dá pra animar. — Eu olho, em direção ao lado com menos pedras, uma rede improvisada de vôlei e alguns garotos.

Ele parece ter saído no meio do jogo só pra perguntar se estou bem.

— Não, tá tudo bem.

— Quer conversar? — Ele coça a nuca, sem graça.

Não sei o quão esquisito é minha atitude, mas assinto, observando o sinal que ele faz avisando que não vai participar mais do jogo, deitando ao meu lado. Eu o olho de canto. A pele branca dele é escura pelo sol, mas a regata solta mostra a diferença gritante entre o que não alcança. Ele poderia facilmente ser o irmão perdido de Jacques.

— E aí — suspira, pedindo para que eu fale o que aconteceu.

Ou pelo menos é o que acho.

— Vai ser uma longa história, mas você que se ofereceu — aviso e ele ri.

Tudo bem, quero realmente ouvir. Você chorou na minha camiseta então mereço saber.

É, uma boa justificativa.

— Quando criança, eu assistia muitos filmes adolescentes — começo, tentando não soar patética. — Sabe, meninas malvadas e esses filmes idiotas. Em um, eu e a Pam vimos uma cápsula do tempo e achamos a ideia incrível. Quer dizer, que legal escrever coisas que queria e depois ver se tudo aconteceu! Eu fiz uma lista de coisas que eu desejava, coisas bem adolescentes. A gente também colocou coisas importantes lá dentro, mas o ponto chave era a maldita lista.

— Tipo namorar o cara popular do colégio? — Ele retruca, entortando os lábios.

Eu o olho de canto, observando o quão falar isso não foi proposital. É só previsível. Mas ainda sim, dado às circunstâncias, me faz congelar por míseros segundos. Mas bem, o garoto do freezer não é realmente lá um garoto tão popular.

— Olha, não é bem assim. — Dou risada. — Mas tipo isso.

— E aí, não aconteceu? Tipo Nathan é um cara popular e...

— Eu não coloquei namorar o cara popular do colégio, Isaac — o interrompo.

Se tivesse, também não tinha dado tão certo. Mas não deixo de notar que até Isaac sabe sobre mim e Nathan. A gente não conversa. Como ele guardaria uma informação sobre mim?

— Eu queria entrar na equipe de líderes de torcida. Eu... tinha outras coisas. Só que a graça da lista era se esquecer dela e completá-la, inconscientemente. Mas... lembro de cada coisa e não é porque quero. Na verdade, acho que, a maioria das coisas, não desejo mais. — O discurso sai torto, cheio de pausas. Uma dicção ruim.

— Então, pronto. Desiste da lista. — Ele diz, sem entender o motivo do drama.

— Se eu desistir da lista, não sobra nada. Se eu falar que não gosto de líderes de torcida ou que ser professora de geografia foi uma vontade infantil de uma tarde, não vai me sobrar nada. Sei que a gente não precisa saber de tudo agora, mas não quero não saber quem eu sou. Ou que todas as coisas que eu me baseei até agora não foi real. Por minha culpa.

Ele se inclina em minha direção, como se minha voz embargada demonstrasse que estou chorando. Não estou, ainda bem. E é esquisito notar que Isaac está próximo de mim, observando meu rosto entupido de sardas ou imperfeições e estranhas que só são vistas de tão perto. Ele morde os lábios, como se achasse uma resposta melhor.

— Quando eu era criança, queria ser guitarrista. Ter uma banda de rock de garagem, tipo as histórias das que eu gostava.

Arqueio as sobrancelhas.

— Então enchi muito o saco da minha mãe para ganhar uma. — Ele deita novamente, com um sorriso fraco nos lábios. —A gente não tinha muito dinheiro e ela não ia me dar. Meu pai era um idiota e simplesmente não existia naquele contexto. Só que eu estava tão animado com aquela coisa toda que, no meu aniversário, ela me deu a bendita guitarra. Uma guitarra bonita, cara, parcelada em tantas vezes que fiquei quase dois anos sem presente. Ela me avisou, disse que só aprenderia com esforço.

— E aí?

— E aí que eu não gosto de guitarra tanto assim. Ou sei lá, bandas de rock. Era criança e tava animado, só. Mas me senti tão culpado pela minha mãe ter gastado tanto dinheiro nela que me forcei a aprender. Não adiantou nada. Na verdade, piorou. Deveria ter contado pra ela e ter vendido a guitarra. Devolvido. Mas fiquei com medo de decepcioná-la.

Eu o olho, notando o quão a memória o marcou. Não queria estragar o momento, mas não sei o que os amigos dele estão pensando dele ter vindo se deitar ao meu lado, em uma perda gigantesca, olhando para um sol escaldante.

— Agora a guitarra é do meu irmão e ele tá adorando. Mas se não quiser mais tarde, tá tudo bem. Se a gente for tudo que queria quando criança, não ia ter uma profissão normalzinha — ri, enquanto noto que, sem querer, a palma da sua mão se encosta na minha por milésimos até ele mudar a posição.

Eu cruzo os braços. Inconscientemente. Evitando mais um contato do tipo. E, soando sério, seu discurso parece não ter efeito algum na minha mente. Não é a mesma coisa.

— É diferente. Você sabe o que quer agora, não sabe? Você sabe do que gosta.

— Você também. Talvez só não esteja satisfeita com elas. Ou... não queira aceitá-las. — Não sei o quanto de carma acumulei, mas ele está sendo devolvido em discursos prontos de outras pessoas que me acertam em cheio. — Não precisa ser algo grandioso, Gênesis. Veja bem, eu gosto de camarão, escrever histórias de fantasias, assistir filmes com meu irmão mais novo, passar a mão no meu cachorro e ver ele animado e jogar com meus amigos. Tem outras coisas bobas que gosto, tomar banho depois de um dia extremamente quente, deitar no meio da areia e parecer um idiota olhando o céu.

— Tipo o que a gente está fazendo — constato.

— Sim, você pegou a indireta.

Babaca — sorrio.

— Não, tô brincando — gargalha. — De noite. Estrelas e essas coisas. Mas e você, não gosta de nada disso? Ou você tá chateada porque não gosta do que queria?

Discursos prontos com finais impactantes.

— Se vai ficar mais, usa protetor solar nesses braços.

Minha mãe não está em casa quando chego. Eu tiro os sapatos e demoro quinze minutos deitada no sofá antes de caminhar até o banheiro e tomar um banho. Eu gosto de banhos gelados após um dia quente. É, uma coisa. Também gosto de oxfords. Gosto de... Que bobagem. Sério, Gênesis. Você falou oxfords? Isaac disse palavras bonitas e eu só consigo pensar que gosto de sapatos oxfords. Sendo que, soando sério, os sapatos são uma versão falsa Dr. Martens, sem cano. Então talvez eu nem goste de oxfords bicos de pato.

Não vou listar essas idiotices. Realmente não tenho nada.

Se a gente não pode ter os sonhos de criança, por que Pandora se dá bem com o violino e ainda é o sonho dela? Ela é uma exceção? Ou talvez eu devesse parar de me comparar com os outros?

Em resposta, ela não foi forçada a isso. Ela ama, influenciada pelo vínculo de tia Jô. Já eu... bem, nada. Eu fui influenciada por coisas idiotas. Não, influenciada não. Eu apenas peguei aquelas coisas e formei o que sou, sem vínculo. Bem, soa mais idiota ainda quando deixo claro que a culpa é minha, mas é melhor deixar assim até entender, pelo menos um pouco, do que realmente sou.

Ligo o ventilador do quarto e abro a mochila, esparramando as coisas na cama pra encontrar a carta que a dona do restaurante me deu, esparramando meus pensamentos sobre mim mesma. Não tem nada pra pensar sobre. Em que circunstâncias Pandora escreveu essa carta? Por que ela não me deu? Se tem um pedido desculpas, por que ela me disse que não havia nada pra se pedir? É honesto da minha parte ler?

Se eu ler, posso entendê-la e essa sensação esquisita, de não saber o que aconteceu, vai acabar. Mas também não estarei sendo honesta com ela, a carta não foi pra mim. Por que diabos Anastácia me deu então? Ela não deveria só ter dito que sabia o que aconteceu e que valeria a pena tentar?

Não vale a mesma coisa que saindo da boca dela.

Eu abro o envelope, puxando um papel abarrotado de palavras, frente e verso. Eu desdobro, nervosa. Só que, assim como no cardápio, não foco em nada. Vejo as letrinhas, mas não acho certo. Tento focar no início. Um pedido de desculpas. Ela me pediu algo assim no banheiro, mas soou magoado. Vou poder entendê-la e talvez a nossa amizade volte a ser a mesma coisa.

E aí, vou precisar me preocupar só com as outras quinhentas coisas que aconteceram.

"Gênesis,

tu é a melhor amiga que posso ter."

Não dá.

Rasgo. Nós somos amigas e lidamos com os erros uma da outra. Rasgo. E se não for, política invisível. Eu acho que não gosto do jeito fácil. Essa carta parece estar de mão beijada pra mim e, ainda sim, não vale o esforço. Se eu ler e um dia Pandora resolver pedir desculpas, não vai ter a mesma emoção e eu vou me arrepender. Ou, sei lá, ela não queria que eu lesse. Óbvio que não quer, se quisesse teria me dado.

Jogo as quatro partes rasgadas da carta dentro de uma gaveta de tranqueiras, de qualquer jeito. Não vou ler. Não quero.

Mas, só dessa vez, estou disposta a tentar. Por uma última vez.

E ela vai sentir o outro lado da moeda.

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