Graciosa [Em Andamento♡]

By AlineNegosseki

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Graciosa é um romance épico em 2 tomos inspirado no conto clássico A Bela e a Fera e se passa no século XIX... More

Graciosa
Agradecimento, Dedicatória e Epígrafe
Primeira Parte - A Rosa Rebelde
Preâmbulo
Prólogo
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XIV

Capítulo VI

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By AlineNegosseki

VI

 

 

 “— A senhora acredita, D. Amélia, na atração irresistível, que impele duas almas entre si,

e as chama fatalmente a se unirem e 
absorverem uma na outra?...

Eu acreditava nessa força misteriosa, mas ainda não tinha chegado o momento de experimentá-la em mim,

de sentir em meu ser este elo divino que prende as almas através do tempo e da matéria.”

José de Alencar, A Pata da Gazela

 

“Montevidéu, 12 de Julho de 1866

 

D. Amélia,

 

Eu te amo pois não proclamas tuas virtudes nas praças;

eu te amo pois te quero mostrar no íntimo a valorosa aura que escondes por debaixo do fulgor de estrela quando refulges nas galas;

não me enganas com os desprezares muitos que impões te proteges como podes — a mentira social te amedronta, portanto, te admiro;

eu te amo e se, quando me vires, me amares também, apesar de eu ser quem me tornei, serei todo teu e viverei para te fazer toda felicidade.

Perdoa-me se, com meu pedido, te condeno à minha companhia, mas, se o peço, nesse arroubo esperançoso de egoísmo, sim, egoísmo é que me resta essa sede insaciável de amar e ser verdadeiramente amado.

E foi somente numa estrela, na mais graciosa das estrelas que conheci, que vi a cura de minha desventura...

Seja, Amélia Mascarenhas, a minha esposa.”

 

Teu,

Fabrício”

 

Ela estreitou afetuosamente a missiva contra o peito.

Aquelas palavras a capturaram!

O que tinham Fabrício e ela? Que juras haviam eles trocado, quê haviam vivido de especial, a exemplo de Filipe e Ana, para que ele houvesse escrito palavras quais essas?

Não poderia ser compreensível para ela, que tinha lhe dito ásperas palavras naquela última carta. Fez de tudo para afastá-lo! Contudo, ao que parecia, quanto mais fazia para demonstrar que não queria um relacionamento, mais ele parecia querê-la! Estava evidenciado em todos os olhares, em cada palavra não dita, mas entredita e agora... Nessa última carta confessada. Por quê?

Ela não compreendia!

Guardou aquelas palavras emocionantes e resolveu que nada havia a fazer a não ser, nada falar. E esperar pelo que ia acontecer. Dentro do pequeno baú estava as cartas, o cacho de lilases e, que ela poderia colocar ali para compreender que não poderia fugir de algo que estava traçado pelo próprio tempo?

 “Ana, eu quero escolher o que vai direcionar minha vida. Não quero que escolham para mim. Não quero ser escolhida. Quero tomar banhos nos rios, e não ter hora para acordar nem dormir. Quero me desprender desse relógio interno que vive em mim. Quero esquecer que é necessário lembrar. Quero passar pela vida, qual uma rajada de vento. Desviando indiferente aos obstáculos, desfrutando etérea aos encantos. Quero... Ah, eu quero a liberdade! Liberdade! Mas, como, minha amiga, se temo tanto? Para ser livre há de se ser corajosa. Tu disseste que se lê em meus olhos que amo Fabrício, mas esta é uma sugestão das situações. Se houvesse outra pessoa, novos assuntos e pequenas circunstâncias, também não se poderia dizer que nascia para tal pessoa? Não te iludas, amiga Ana, os anos não me irão dobrar. E não me chames louca. A lucidez é relativa.”

 

Essa carta Amélia mandara há pouco tempo à melhor amiga e ainda esperava resposta quando chegou a de Fabrício. A carta de Fabrício... Com aquelas... Palavras... Desconcertantes. Palavras que revolveram seu âmago e lhe tiraram o chão. Arrebataram para sempre sua liberdade. Ela a entregaria por próprio querer! As palavras de Fabrício... Misturou-as com aquela em que ele revelava o desejo de vê-la pelo avesso e teve sonhos calorentos e inexplicáveis.

 

“Amo Filipe, por ele daria a vida, e me morro em pensar na possibilidade de que algum mal lhe aconteça na guerra. Como podes desprezar alguém que derrama sobre ti tanta afeição, e que, tu mesmo confessas, muito te afeta?”

 

A carta de Ana chegou uns dias depois da de Fabrício com essa questão. Havia sentimentos dentro de si que a boa e cordata amiga jamais poderia compreender. Contudo, em sua lógica simplista, tão próxima da felicidade, tinha de admitir, ela tinha razão.

As faces de Amélia queimaram naquela tarde em que entrou na sala e, sem rodeio, num chofre, o pai baixou a Gazeta da Tarde e declarou:

— Teu noivo está voltando para o Rio de Janeiro. Para casa, Amélia. É um herói de guerra! Condecorado! Não ficas orgulhosa?

Havia uma alegria quase briosa no semblante de Crisóstomo e, Amélia forçando a garganta, conseguiu dizer:

— Herói... Fabrício?

— Sim, meu anjo. Fabrício. Foi dispensado da guerra e é um herói declarado da batalha de Tuiuti, a qual vencemos com grande soberba! — ele ria satisfeito por poder finalmente dizer aquelas palavras que tão atrasadas foram noticiadas na Corte.

Amélia passou a esperar qualquer manifestação por parte dele. Porém, nenhuma carta. Nada. Em outubro ela e a mãe escolhiam fazendas para os bailes de fim de ano quando encontraram D. Esterlina na Rua do Ourives. “Meu neto chega ao princípio da semana que entra. Não imaginas, querida, como está ansioso por ver-te.” Os olhos negrosveludosos da avó de Fabrício, como sempre, tinham uns mistérios que a atraíam.

Naquele fim de semana, recebeu uma missiva curta de Fabrício. Quando a mucama lhe trouxe a carta no quarto sentiu um tremor. Nem tinha aberto o envelope e pressentiu que o que havia ali era de uma tão enorme importância e drama, que postergou abri-la. Bebeu um copo de água e, num arrufo, quebrou o lacre e falou alto, feliz por estar sozinha:

 — Que é dessa vez? Vamos, que é dessa vez?

“Beira Linda, Outubro de 1866,

 

Amélia,

 

diga-me, que não quero mais perder dias, menos ainda anos, em cortejares infinitos. Diga-me! Tu me amas? Não sou tolo para não ver que não me pões em desesperança. Porque, afinal, aceitaste essa correspondência entre nós dois! Para não dizer que dispensas os pretendentes e a mim cozinhas em fogo brando. Se disseres que me amas, preciso saber em que quantidade. Se tiver amor por mim, não o aceito se não for grande, desses eternos, desses de inseparáveis. Assegure-me que esse amor seja incondicional. Incondicional! Suspeitas o que significa um amor incondicional?

É um amor assim e só assim que almejo.

Teu silêncio tem me matado lentamente, então não sabes?

Essa é minha última carta até que nos vejamos novamente. Quão difícil é compreender a feminilidade! Desisto. Por isso serei direto. Meus sentimentos estão já confessos. Que podes querer mais? Quero às claras saber os teus. Disso dependem algumas decisões.

Pedi à minha avó, a nagymama, que promova um baile de boas vindas. Devo ser condecorado em breve e fica bem uma comemoração. Ficaria bem também anunciar um noivado.

O baile será de máscaras e o primeiro convite entregue será o de tua família. Procurarei olhos de ametistas por detrás de cada uma das máscaras e, se os vir, e a dona tão bonita desses olhos a mão direita sem luva me entregar, nos dedos dessa mão graciosa deslizarei um anel, e saberei nosso porvir.

Para a dama de olhos violetas eu contarei o que o destino lhe reserva. E, se mesmo depois disso, ela me quiser, dela serei até morrer. Até morrer, D. Amélia!

Sabes, querida Amélia, existe uma determinada lenda, que diz que eu amaria e para sempre viveria com a senhora de olhos violetas que pudesse prender minha atenção. E seu nome seria... Amélia.

Não sou louco. É verdade que a lenda existe.

A guerra me mostrou que quando algo acontece devemos exteriorizar depressa a quem nossos anseios e segredos importam, pois amanhã a estrela pode ter apagado e o salão pode estar escuro. Amanhã, quem sabe, a lua nos procure em vão! Quero as venturas da vida, na certeza do presente, com aquela que, sim, para todos os momentos prendeu a minha atenção. E quem é esta que prendeu minha atenção, toda a minha atenção? Foi a senhora, graciosa e doce Amélia Mascarenhas.

 

                                    Teu,

                                    Fabrício.”

 

Primeiro imposto, depois tão pensado, afinal proibido.

Nunca se tinha visto história de amor mais controversa que a de Fabrício e Amélia na Corte do Rio de Janeiro. E o desenrolar do grande dilema se daria em breve.

Fabrício deixou Beira Linda naquele fim de semana, logo depois que Amélia soube de sua volta. Antes do retorno à sociedade, a ver os amigos e conhecidos, quis passar um temporada em alto retiro na fazenda do pai.

Queria reencontrar seu próprio eu, pois, mesmo de si mesmo sentia saudades. Saudades de tantas gentes! De tantas coisas! De antigos costumes e de novas posturas que gostaria de adotar! Todavia, entristeceu-se, pois, ao que lhe parecia, estava impossível de achar outra vez o mesmo Fabrício que conhecera um dia. A guerra lhe deixara feridas que custavam a cicatrizar. A dor não passava...

Com a odiosa guerra e, principalmente os últimos fatos que lhe deram desfecho, ao menos para ele, o homem expansivo e alegre passou a achar maior prazer nas sombras.

Nas sombras não havia lembretes de sua condição irremediável. Não havia espelhos. Não havia olhos. Nas sombras não há nada. Apenas sombras.

Era nisso que pensava quando a carruagem parou na frente do lindo sobrado da Corte que pertencia ao Barão de Beira Linda, Emílio Nogueira, portentoso casarão colonial com inspirações neoclássicas; era ali onde sua avó mais ficava.

Ainda não vira a avó desde que voltara de Montevidéu. Estava louco por lhe abraçar e, sabia, ela deveria estar muito ansiosa.

Era de manhã. Dentro da casa, na sala de chá, Esterlina em sua cadeira de balanço tem uma carta do único neto em mãos. Balança, balança, balança...

Pesarosa, infeliz, amargando aquela sensação de fado triste, ela aperta o papel entre os dedos e se pergunta, porque aquilo tinha de estar escrito?

O neto... O melhor amigo do neto... Tantos outros!

Fabrício começava a se acostumar com o futuro que já era presente. Sorrateiro atravessou a casa para chegar onde adivinhava que a avó estava. Era lá que ela sempre estava naquela hora do dia. Era um velho hábito tomar chá pela manhã.

Esterlina ouviu as batidas de pés contra o assoalho de madeira e cogitou se não fora sua imaginação. Dois anos sem ver Fabrício, quantas noites insones, quanto apego, quão machucado estava seu idoso coraçãozinho.

— Oh... Nagymama, avozinha querida! — ele exclamou carinhoso, baixando-se para abraçá-la pela cintura.

A pequena lágrima que até pouco escorria pelo rosto da saudosa mulher não era mais solitária. O choro silencioso escorria pelas faces enquanto ela, mal crendo no que acontecia, esticava os braços para abraçá-lo pela cabeça com todo o afeto que por ele exclusivamente nutria.

Fabrício afundou o rosto em seu colo, tão para ele maternal, e disse com a voz encrespada por um choro bem guardado:

— Ah... Avozinha! Veja que foi me acontecer!

— Tem calma, tem calma, meu menino. Vosmecê está vivo e é tudo que importa!

— Olha para mim, olha... Já não sou teu Fabrício, sou um assombro agora! Veja, até a senhora está evitando me ver!

— Nunca mais diga isso. Só quero estreitar tua cabeça junto ao meu coração para ver se te consolo, meu querido!

— Só tem uma pessoa, avozinha, que me pode consolar.

— Amélia, eu sei.

— A senhora sempre teve razão! Eu a amo desde que a vi pela primeira vez, era ainda uma criança, uma encantadora criança. E agora, que é uma moça tão linda e cheia de ideias, meu coração está cheio de paixão!

Esterlina apertou mais uma gorda lágrima que queria escapar bem de dentro de seu olho, pois o pesadelo que lhe sobressaltara na última noite aflorou vívida por conta da declaração do neto.

— Não te preocupa, haverá o tempo que tudo ficará para trás, e serão vós ambos muito, muito felizes juntos.

— Como ela pode me querer, se me vir? Tenho esperado uma resposta dela e... Nada!

— Pelo que me disseste sobre ela, não é a aparência que lhe é cara, mas o caráter, não é mesmo? — ela buscava animá-lo. — E outra, a menina é uma rebelde disfarçada. Eu sei. O velho Mascarenhas, quando te vir, sim, meu querido, não te iluda, ele não há de querer o casamento da filha agora que... Bem, já sabes.

— Minha avó!... — ele repreendeu-a.

Esterlina insistiu:

— São nas adversidades que se mostra a índole. O velho é amigo de longuíssima data de teu pai e eu já tive mais de uma oportunidade de lhe ver em apuro. E tem outra: ele desejou demais uma filha. E disse mais de uma vez: “Para Amélia quero um verdadeiro príncipe!”

Fabrício suspirou e escondeu o rosto no colo de Esterlina.

— Não te aflija, querido. Amélia, tu verás, é a rosa rebelde do jardim dos Mascarenhas e fará o que for preciso pela própria felicidade.

— Filipe, avozinha... Filipe!

— Ana ficará arrasada.

— Serei eu a dar fúnebre notícia... Que já não se acha entre nós o nosso herói.

— A vida me mostrou que anjos não são somente aqueles que trazem avisos bons, mas também aqueles que portam notícias aparentemente trágicas. Vi Ana semana passada. Parece frágil, mas é forte como poucas.

— Havia tanto amor entre eles! Que... que... ah, que maldita guerra!

Fabrício sentia falta do bom amigo Filipe e tinha vontade de chorar. Como era dolorido, difícil de segurar.

— Maldita guerra! Maldita guerra... — Esterlina repetiu brava, depois triste, muito triste...

Tempo longo se deu até que um dos dois ousasse falar outra vez.

— Porque queres um baile de máscaras num momento como esse, meu querido? Sinto que não fica bem.

— Tem duas razões. A primeira, homenagear Filipe. A segunda, o motivo é todo meu.

— Não conta nem para tua nagymama?

— Nem para ela.

E a voz áspera de Fabrício silenciou desde então.

Emílio, que era Senador do Império, quando soube da volta do filho, deixou tudo que estava fazendo em São Paulo e voltou para o Rio de Janeiro. Chegou dois dias depois de Fabrício no sobrado e, não o encontrando, foi ter com a sogra. Depois de saber de tudo detalhadamente que se passara com o filho no campo de batalha e na primeira noite de sua convalescença, ficou pensando se era sina o infortúnio que estava sempre à espera dos seus.

Tudo que desejou foi vê-lo formado, casado, feliz.

Mas que bom, apesar de tudo, que estava vivo! Pior sorte amargavam os Monfort. Não havia nada que se pudesse dizer para verdadeiramente consolá-los. Só o tempo e a graça do Senhor para alcançar seus corações.

E agora, restava esperar a sexta-feira, para ir assistir à cerimônia de condecoração em que seu filho seria feito Coronel do Exército e Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. Em que ele entregaria as medalhas à família de Filipe, estimada família de sua estreita relação.

— Maldita guerra! — Emílio bradou também, inconformado.

E chegou o dia da condecoração.

Um calor opressivo ocupava cada espaço de todo lugar na baixada fluminense. Havia um misto de alegria e tristeza no quartel. Reencontros, esclarecimentos, perguntas. Fez-se, de súbito, ecoar um toque solene e todos se aquietaram para verem entrar os militares que estavam enfim de volta do Sul.

Os olhares buscavam disfarçadamente o rosto de Fabrício. Ele fingia que não notava. Já se vira, uma vez, no espelho. Compreendia que jamais seria algo comum, normal de se ver outra vez.

Depois de seu superior colocar as insígnias em seu uniforme, ele recebeu a caixa de madeira de lei nas mãos e olhou para os pais de Filipe. Amarrou bem seco o nó que ficou preso em sua garganta. Como aquilo era difícil!

As cornetas tocaram uma marcha de respeito e logo ecoaram umas notas fúnebres. Uma soberba coroa de flores achava-se arranjada num pedestal.

Coube a Fabrício entregar a medalha heroica que Filipe recebera a preço da própria vida a seus pais. D. Quintina soltava gordas lágrimas silenciosas. Um ar de respeito duro e revoltoso estava plantado na cara larga do Senhor Horácio Filipe Quintaes Monfort.

No fundo do salão nobre do quartel-general estava Ana, amparada por sua ama-seca. Quando Fabrício disse as palavras sinceras do discurso que escrevera em honra à memória de seu melhor amigo, destacando como haviam sido felizes na infância, o filho dedicado que Filipe fora, o valoroso, honrado e respeitoso cavalheiro e, principalmente, fiel súdito e combatente o qual deixava a nação brasileira orgulhosa de tê-lo por cidadão, a jovem Ana não mais resistiu. Chorou copiosamente. Reconstituindo na mente e no coração todos os eventos memoráveis que vivera ao lado do namorado, sofreu com o choque da verdade. Filipe estava morto. Ela afundou o rosto no seio da ama e chorou alto, tentando sem sucesso afogar com um lenço os soluços.

Fabrício pigarreou e quase não pode segurar sua imensa dor, quando proferiu aquelas emocionantes palavras: Filipe havia salvado a sua vida. E agora, não que fosse possível prestar-lhe qualquer homenagem digna, mas ele gostaria de tocar uma canção que faria a todos ali presentes lembrarem-se do modo como Filipe era: sempre sorridente, e muito impetuoso.

Tirando do bolso uma gaitinha, começou a tocá-la. As notas tomaram conta do ambiente e aquilo marcou o momento. Fabrício ia tocando e lembrava-se de momentos felizes ao lado de seu amigo, de momentos de perigo, de brigas de juventude, de planos que, ai, como era dolorido, nunca se concretizariam. Ia tocando, como se assim, fosse possível por um momento trazê-lo até ali; ia tocando, levando todos às lágrimas. A família de Ana precisou tirá-la de lá, pois desmaiou.

Amélia, por sua vez, não entendia porque ela e sua família não haviam sido convidadas para a cerimônia de condecoração de Fabrício. Queria vê-lo! Sabia que ele estava na cidade e sua curiosidade a matava vagarosamente. Ela não queria admitir nem a si mesma que sentia saudade. Muito menos à mãe que, àquela manhã, exatamente enquanto acontecia a cerimônia de condecoração, entrava em seu quarto para conversar.

Veio dentro do robe de veludo azul, a face sempre pálida, pedindo que a mucama fechasse as cortinas, pois não andava suportando as luzes da manhã.

— Vá buscar-nos um chá — ordenou à Tenória, que logo saiu.

— Mamãe, como a senhora está se sentindo essa manhã?

— Igual, querida. Assim é bom. Quando estou igual, sei que não estou piorando. Entretanto, não vim aqui para falar de minha saúde. Vim para falar de ti...

— De mim? O quê, mamãe?

Amélia olhou apreensiva para Maria Laura. Será que a mãe sabia ter pouco tempo de vida e vinha lhe dizer palavras finais? Desde aquele desmaio da mãe, um ano atrás, num sarau que foram juntas, Amélia não tinha mais paz de espírito. O diagnóstico do doutor, então, apenas veio trazer a todos a certeza terrível. Maria Laura, a sempre muito viva e alegre Maria Laura, estava doente.

— Querida, sinto que não tenho mais tempo para rodeios nessa vida. Parece que algumas pessoas compreendem da pior forma que se deve economizar palavras e tempo, quando se trata daqueles que amamos. Eu só percebi isso depois que fiquei assim, doente... Interessa-me saber... Bem, tu sabes, Fabrício está de volta. Ele te quer para esposa, como já deixou abertamente claro para teu pai em várias ocasiões. Ele é um homem de bem, tem nome, riqueza, beleza, e agora, ainda, é um herói de guerra. Quero saber se vai aceitá-lo! Não há mais motivos para impedimentos por parte do Crisóstomo. Fabrício finalmente trouxe uma prova de sua honra intocável. Uma condecoração! E agora é um Coronel e logo será Conde. E Filipe... Bem, tu sabes, Filipe o estimava tanto que arriscou a vida por ele e agora, tu sabes... Ana não tem a mesma sorte que ti. Diga-me, querida, diga-me que vai aceitá-lo?

— Mamãe...

— Não me diga “mamãe” nesse tom. Parece que ainda hesitas... Acaso, querida, conheceste alguém melhor que ele, que te encante mais, ou que simplesmente tenha capturado teu coração, e não nos quer revelar?

— De maneira nenhuma, mamãe. É que... Bem, não estou certa de meus sentimentos, e tinha vontade de viajar. A senhora sabe de meus sonhos. Pintar é o que gosto de fazer. Não sei se quero me casar. Porque não posso esperar, como Mathias?

— Ele é homem, minha filha!

— Isso não é justo! — Amélia bradou toda rebeldia.

— Não é! Contudo, é assim que é! E do amor, meu anjo, o que esperas do amor?

— Eu queria ser amada, mamãe. Ser amada incondicionalmente. Porém, será que esse sentimento que os poetas falam, do modo que todos dizem, é possível? Vejo entre minhas amigas, e nas fofocas, nos romances, cada apuro que as pessoas se enfiam para vivê-lo. Não sei se gostaria de arriscar.

— Alguma afeição... Tens alguma afeição pelo Fabrício?

Amélia baixou os olhos.

— Sim, mamãe.

— Pois o que vejo em teus olhos é medo, querida. Medo. Apesar do medo, confia na mamãe, esse medo é perfeitamente normal. Posso me gabar, ah, isso sim, que eu teu pai te demos uma infância e uma vida de princesa. Conforto material, amigas, amor, proteção, carinho... Tudo que uma filha poderia desejar. Sinto que tens medo de trocar isso pelo desconhecido. Querida... Ah, minha querida... Teu pai quer netinhos. Eu os quero e, não tome por chantagem, mas tu sabes, como tenho pouco tempo de vida... Eu...

— Não me faça chorar, mamãe...

Maria Laura já fazia o que a filha pedia-lhe para que não a fizesse. Chorava. Contudo, continuou.

— Quanto a Mathias... Tu sabes o doidivanas que é teu irmão! Estava eu conversando ontem com teu pai. Estou a ver a hora de saber que meu filho levou um tiro por ter desonrado alguma moça de bem! Esse por mais esperança que tenhamos não casa, não casa tão cedo! Quem sabe não é bom que ele mude de ares, para achar algum juízo?

Amélia pensou na sorte do irmão. Por ser homem, tão logo expressou sua vontade, logo estava com a passagem comprada para a Europa. Em dois meses estaria a embarcar para lá e, ela sabia, veria tudo que ela mais sonhava em ver e não daria valor algum. Queria era saborear lentamente seus bons anos de juventude com as alegrias que o dinheiro pode comprar. Isso tudo com desculpa de estudar...

— Queria partir desse mundo, Amélia, sabendo minha filhinha amada, segura na vida.

— Ninguém está realmente seguro, seja lá o que faça, mamãe. Quem sabe que peça o destino lhe poderá pregar? Veja Aninha, há três anos ninguém poderia imaginar que entraríamos numa guerra e, ela tão apaixonada por Filipe, como saberia que ficaria viúva antes de casar? Que ela vai fazer, hein, mamãe, com aquele enxoval todo marcado com as iniciais dos dois? Que Ana fará com a dor que lhe fica no coração?

Ouvindo aquelas palavras, Maria Laura, suspirou pesarosa. Era uma verdade. Como adivinharia, há três anos, que seu tempo estava contado?

— Vai vê-la hoje de tarde?

— Claro.

Um silêncio se estabeleceu ali e ambas pensavam, conturbadas, no destino de Filipe. Que dor terrível Ana deveria estar amargando!

— Seu coração é quem sabe, Amélia. Reze com fé para ter uma resposta, mas eu peço, decida-se logo. Tenho a impressão que Fabrício não terá mais paciência, depois de tudo que passou na guerra, para esperar por uma resposta tua. A sociedade toda já sabe. Crisóstomo não fez questão de esconder depois que soube da bravura tão grande do filho de seu melhor amigo. E seria uma grande alegria para ele finalmente unir sua família a de Emílio. Agora vou me deitar um pouco antes do almoço. Quando for sair para ir ver Ana, peça para Tenória ir me avisar.

Dando um beijinho na testa da filha, Maria Laura foi para seus aposentos e deixou-a ali, na companhia de tantos pensamentos, a perguntar-se: o que o destino queria dela?

Foi Amélia mesma quem foi avisar à mãe quando ia sair, depois da sesta. Maria Laura lembrou-se de dizer que no dia anterior encontrara com D. Esterlina no convento, onde sempre iam deixar donativos aos órfãos. Na breve conversa, essa dissera que era o destino que Amélia e Fabrício ficassem juntos.

Amélia, pouco depois, acompanhada de Tenória, entrou na carruagem se perguntando rebelde: “Quem é esse tal de Destino, para dar ordem às pessoas, impedindo-as de viverem como queiram?”

 

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