A Origem de Gênesis

By maryabade

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Gênesis tinha vários objetivos para o seu ensino médio, bem organizados em uma to do list. Só que alguns, em... More

Nota sobre a não-binariedade de Jacques
Rádio Submersa: Nova Atlântida
Entrevista com: "A salva-vidas"
Entrevista com: "A cheerleader"
Bem-vindos a Nova Atlântida
Primeiro Ato
1 - Políticas Invisíveis
3 - Salva-vidas Caninos
4 - Animais de doce
5 - Apostas de corrida
6 - Pedidos de Desculpas
7 - Frases de efeito
#1 - Rádio Submersa: Pangen? Nathan é gay?
Segundo Ato
8 - Caçadores de Medos
9 - Melhores Violinistas (e ciúmes)
10 - Malditas coincidências
11 - Últimas Opções
12 - Capivaras Domésticas (#DiaDoOrgulhoLésbico)
13 - Boca a boca (#VitoriaDay, rs)
14 - Garotas de toalha
15 - Restaurantes Franceses
16 - Políticas Visíveis
17 - Palavras não ditas
18 - Patos de Borracha
Entrevista com: "A (ou o) locutora"
#2 - Rádio Submersa: Jacques é uma mal amada
19 - Palavrões
20 - Anéis de Brinquedo
21 - Sáficas
#3 - Rádio Submersa: Rapidinho, tem mais.
Terceiro Ato
22 - Maré Baixa
23 - Parentesco #JulinhaDay
24 - Colares da Amizade
25 - Presentes natalinos
26 - Lar
27 - Encontros Românticos
28 - Pansexual
29 - Espuma
30 - Pangen
31 - Péssimas Amigas
32 - Famílias Minúsculas
33 - Violinos (e vínculos) quebrados
34 - Coberturas (e garotas) lésbicas
35 - Atos de Amor (e Atlantis, de novo!)
36 - Caixas de Panetone
37 - Dia de São Nunca
Rádio Submersa: Eu, Gênesis Salvador
38 - Unanimidade
39 - Família Grande
40 - Gênesis
Bônus: A Origem de Primeiros Beijos

2 - Garotas Prodígios

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By maryabade




O que foi isso?

Rebecca me olha incrédula enquanto tiro a fita do saco do sanduíche que ganhei hoje cedo, antes de ter passado trinta minutos decidindo o que eu faria para corrigir tamanha estupidez. Não fiz nada. Não queria piorar ainda mais a situação do meu cabelo e a situação que ele estava não era ruim, mediana.

Estou pensando positivo e levando em consideração que ele cresce.

Mas é óbvio que estou ignorando olhares bem surpresos em direção ao meu cabelo, vindos de qualquer pessoa do Quartzo. Nada grave. Eu também olharia para alguém com um corte torto de cabelo.

A primeira mordida e continuo silenciosa. Rebecca está com os braços cruzados, o uniforme meio amassado e a saia brilhante, como se tivesse comprado uma nova mesmo sabendo que é o último semestre do colégio e seria um gasto desnecessário. Ela usa sapatos de boneca, pretos. Quartzo requer um padrão, de qualquer forma. Os sapatos são, necessariamente, pretos. Não importa se você está com um all star de 6 anos ou algum sapato caro de uma marca qualquer que eu não consigo lembrar o nome no momento. Precisa ser preto. Eu uso um tipo de oxfords de verniz. E eles me dão alguns centímetros a mais, talvez eu fique com 1,74. Eu acho. Alana usa sapatilhas estranhas.

Para algumas pessoas, é o único momento do dia em que não estamos calçados em havaianas coloridas.

Eu gosto da explicação de Jacques para os uniformes. Eles não ligam para o que você está vestindo, se é uma saia ou uma bermuda portanto que esteja vestindo algo. É óbvio que não tem nenhum garoto que usou a saia por um único dia, mas não é muito incomum garotas caminhando de bermudas um pouco acima do joelho. Eu prefiro a saia, de qualquer forma. Azul marinho. É óbvio que seria algo marinho. Tudo aqui é mar, mar e mar.

Rebecca continua com seu pé dando leves batidas no piso enquanto continuo mordendo o sanduíche, sem ter uma justificativa plausível. A aula nem começou ainda, na verdade. Eu não tive um café da manhã decente então estou faminta. Eu não sei como Rebecca consegue estar bem disposta se ela provavelmente deve ter chegado em Nova Atlântida às seis da manhã. Mas bem, Rebecca é aquele tipo de garota que é gentil e amiga de todo mundo. Ela conversa, se preocupa e dá importância para qualquer coisa que a gente fale. Mas quando a gente sabe que é seu modus operandi, não tem como se sentir muito especial ou próximo dela.

— Eu pensei que um corte de cabelo seria legal — digo limpando a maionese que ficou nos meus lábios com o polegar.

— Você gostou? — pergunta, colocando uma mecha do seu cabelo vermelho para trás.

Seu próximo ato será baseado na minha resposta.

Quando Rebecca decidiu pintar o cabelo de vermelho, acho que isso foi uma resposta ao seu ex-namorado que diria que seu tom de pele, mais escuro que o de Pandora (se posso fazer um comparativo), nunca combinaria com essa cor. Refutou. Mas eu com certeza teria refutado com um chute no nariz dele.

— Mais ou menos.

Ela suspira, se sentando ao meu lado enquanto ajeita a armação redonda no rosto.

— É melhor que não, certo? — Becca diz, dando uma cotovelada fraca no meu braço.

— É. Além do mais, o propósito tá feito.

— Sua mãe sabe? — Becca indaga, curiosa.

Eu nego com a cabeça. Mas meu corte de cabelo não é uma preocupação grave para minha mãe. Ela só vai reclamar que eu deveria ter esperado um pouco e ido em alguém que saiba o que está fazendo — claro que estou relativizando um sermão demorado. E com certeza Dona Helena não está errada.

— Eu acho até bom você ter saído da equipe. Quer dizer, não é o que você quer. — Ela continua e só então eu percebo que não é sobre o cabelo.

Diferente de mim, Becca ainda é uma furiosa. Ela pode usar uniformes legais (mesmo que não use) ou participar dos treinos. E acho que se ela não estivesse em Natal, provavelmente teria participado da foto de piquenique. Nem sei porque ela está me fazendo companhia. Talvez seja porque ela ainda é um anjo sob a terra e a pessoa mais gentil que conheço. E não quero conversar sobre "o que eu quero".

Em uma coisa, pelo menos, o afastamento de Alana me ajuda. Eu e Rebecca percebemos juntas o caminhar de Alana e suas sapatilhas bregas (mesmo que eu nunca vá falar em voz alta porque são suas sapatilhas e não sou tão estúpida) com Cecília ao seu lado. Alana não se afastou de Becca, mas mesmo assim ela faz uma careta.

— Eu não a entendi. Mas bem, quem se importa? — Ela dá de ombros antes do sino ecoar e fazer alunos se movimentarem de um lado para o outro. — Nos vemos no intervalo, Sis.

Não estou com vergonha, mas é óbvio que há um receio minúsculo em entrar na sala porque demoro demais no percurso entre lavar as mãos no banheiro e ir até o bebedouro. Um receio bobo que dura alguns segundos antes de eu olhar em direção a minha carteira. Nem preciso dizer que eu preciso alterar meu destino porque minha carteira está ocupada por Cecília. Então ando perfeitamente segura de si para me sentar no lugar vago mais aceitável possível, colocando os pés sob o suporte da cadeira em frente a minha.

É óbvio também que demora minutos para perceber em que lugar estou me sentando.

O lugar de sempre. Não o lugar de sempre do começo do ano ou o lugar de sempre do ano passado. O lugar de sempre. Segunda fileira próximo a parede, penúltima se comparar a porta. Quarta carteira. A última vez que eu me sentei aqui foi no primeiro dia de aula desse ano porque bem... Pandora sentou ao lado. E nem preciso virar o rosto para saber que ela provavelmente rompeu o pescoço ou algo assim olhando em minha direção. Mas eu viro.

E ela está olhando para o meu cabelo totalmente sem expressão alguma no rosto.

Que foi, ein? — Eu indago, em um sussurro que poderia facilmente ser em um tom bem mais alto. — Você tem literalmente o cabelo branco, não pode me julgar.

— O seu foi aposta também? — Ela morde os lábios, se encostando na sua cadeira.

Eu reviro os olhos. Forte.

Pandora foi uma garota prodígio. A+. 10. O gênio em matemática e qualquer outra matéria. Eu invejava a facilidade dela de aprender quando criança, mesmo que nunca tivesse ido mal em alguma matéria. E a gente nunca estudou na mesma turma. Nunca. Ela sempre esteve uma série à frente da minha. Na verdade, só se tornamos amigas porque tia Jô era tagarela demais e me convidou em um dia qualquer para passar o dia brincando com sua neta. E aí a gente ficou inseparável, mesmo sem estudarmos juntas. Até certo ponto. Nono ano pra mim, primeiro pra ela.

Só que tia Jô era muito velha e ano passado faleceu. E os pais de Pandora sempre foram babacas então Jose era a mãe dela. Quando ela morreu, acho que Pandora não teve muita cabeça para terminar o ano. E então estamos na mesma sala, pela primeira vez na vida — que era meu sonho de criança, agora é um desconforto estúpido.

E eu precisei mudar de lugar para não sentar ao seu lado, já que ela realmente gosta da última fileira, encostada na parede e embaixo da janela — tão limpa que eu poderia acertar minha cabeça se estivesse desavisada.

Pandora... — Eu suspiro, cruzando os braços e decidindo se toda minha atuação confiante iria por água abaixo se eu me levantasse e procurasse outro lugar vago.

Iria, Gênesis. Iria.

— Eu não sei se você viu a mensagem... — diz e eu a interrompo.

— Sem conversas paralelas na aula. — Faço silêncio com o dedo indicador.

— Gen.

Gênesis — corrijo.

Não sei porque raios o professor não aparece logo. Soa como uma eternidade aqui. Aposto como ela faria silêncio. Não é como se a ouvisse cochichar na aula.

— Gênesis — repete, brincando com a lapiseira. Pronunciando devagar, como se fosse algo novo só por provocação. — A origem. Mas a origem de quê?

Ela sempre faz essa pergunta. Quando a gente era amiga, eu gostava de usar o pleonasmo "É a origem de gênesis", mas não estou afim dessa vez. Na verdade não estou entendendo sua interação. Não acredito que ela ache que mudei de lugar para ficar próxima dela quando é humilhante e óbvio que perdi o meu anterior. Quero prestar atenção na aula, mas ela está levando uma infinidade pra começar. De soslaio, eu posso ver o all star todo preto de Pandora — que ela usa desde que se entende por gente.

Nenhum a mais. Provavelmente ela tem uma coleção de all star monocromático preto. As meias são sempre pretas. Eu não sou muito fã de meias de cor única porque acho que essa é a fuga do uniforme. Um momento de liberdade. Eu gosto de coloridas, animadas. O único problema nisso é que um par acaba se tornando inutilizável quando perco uma meia dele. Eu sei, tenho uma gaveta só de meias inutilizáveis.

Giro a tampa da minha garrafa de água enquanto organizo minha mesa para que eu possa usar o celular um pouco, pelo menos até que o professor chegue. Ainda estou no décimo capítulo da minha leitura atual porque eu passei as férias inteira entediada demais para ler. Só que... acho que também estou com preguiça de ler agora.

— Você ainda gosta do cara do freezer? — indaga e quase cuspo a água inteira na minha mesa.

Para impedir isso, engulo a água tão rápido que começo a tossir forte, chamando a atenção de algumas pessoas. Sim, mais. Pelo menos quando elas percebem que não estou morrendo, elas viram o rosto.

A série de lobos adolescentes também é a série conforto de Pandora. Eu sei porque a gente meio que passou todas as crises de gostos da pré-adolescência e um pouco da adolescência juntas. Tipo One Direction, Crepúsculo, ex-atrizes da Disney e coisas do tipo. Devo dizer que morar em uma ilha era bem difícil nessa época. Sem cinema — tudo bem, agora temos o Porto, com exatas trinta cadeiras — a gente era obrigada a esperar os filmes e séries chegarem na locadora ou contrabandear na internet. Tia Jô fazia pipoca, que sempre queimava, e a gente acompanhava na íntegra garotos sarados sem camisa virando lobos e fanfics péssimas.

Acho que isso não funcionou para nenhuma de nós duas. Essa amizade.

O ponto é que na série existe um cara chamado Isaac. Na pronúncia norte-americana mesmo. Ele vivia no freezer, de certa forma, em um contexto que não tinha importância para o que Pandora queria dizer — o que o levou a ser conhecido por garoto do freezer, no fandom na época. E, desde sempre, é a maneira favorito dela evitar dizer em voz alta Isaac — Isaque, abrasileirando.

Só que... ela deveria esquecer isso. Realmente.

Nem ao menos consigo responder porque gasto um bom tempo checando se estou bem depois de quase morrer engasgada.

E também nem preciso responder porque a aula finalmente começa e ela parece encerrar o contato — se acomodando encostada na parede e focando sua atenção em Geraldina, nossa professora de física. Eu olho do canto dos olhos uma única vez antes de fazer o mesmo, bloqueando a tela do celular.

O que deu nela, ein?

Eu não sei o que deu nela, mas Pandora está com as mãos no bolso como se quisesse dizer alguma coisa, mas não soubesse como explicar. Alguém precisa contar a ela que a sua bermuda não é o mesmo tom de azul marinho que o das outras pessoas. Eu não vou ser essa pessoa, obviamente. Então estou enchendo minha garrafa de água enquanto ela se encosta na parede, perto do bebedouro. Um suspiro pesado sai, antes de girar a tampa.

Estou levando em conta que ela nunca fez isso antes e talvez seja grave. E aí, bingo. Política invisível de consideração mínima. Desisto de evitar isso e espero ela falar, olhando diretamente para o seu rosto deixando claro que posso ouvir o que ela tanto quer dizer e o porquê eu preciso saber. Ela está com um sorriso fraco, não muito animado, como se quisesse ganhar tempo. Eu tenho sardas no rosto, uma quantidade considerável. Já Pandora é cheia de manchinhas pretas, pontinhos pequenos e descentralizados. Uns sete, talvez. O que é considerável alto para marcas de nascença no rosto.

— Preciso de sua ajuda — repete e eu continuo a observando.

Porte de salva-vidas. Uma incrível nadadora, desde sempre. Odiava as aulas de natação obrigatória porque minha melhor amiga conseguia diversificar o nado enquanto eu estava quase afogando — ela me salvava, devo dizer.

— Com o quê exatamente? — pergunto enquanto Pandora se afasta da parede.

— Posso falar com você a sós?

Quando a escola foi construída, eles fizeram um estacionamento. Acho que carros na ilha não é uma quantidade extensa — principalmente com adolescentes dirigindo. E tudo bem, há uma quantidade considerável de bicicletas, mas elas ficam do outro lado, no bicicletário. Então temos um lugar vazio, próximo a floresta, cheio de gramas nascendo entre o concreto e alguns ferros começando a enferrujar. E é em um deles que me encosto, olhando diretamente para as árvores e o vazio em meio a elas. A única coisa boa aqui é o vento e o barulho um pouco mais abafado que qualquer outro lugar.

Só que o ponto agora é o que raios Pandora quer me dizer e porque raios ela está coçando a nuca prolongando algo que pode nos fazer perder o intervalo inteiro sem que explique o que é tão importante que só eu posso ajudar.

E porque ela acredita piamente que farei isso.

Não que eu tenha outra coisa pra fazer no intervalo hoje.

— Eu sei que tu... eu sei que não temos uma amizade e essas coisas — começa e eu franzo o rosto, curiosa demais para onde ela quer chegar com isso.

Vamos lá, Pandora.

— Talvez isso soe satisfatório pra caralho pra ti, mas eu tô péssima nas aulas. — Pandora continua, colocando as mãos nos bolsos frontais novamente. — E tu sabe que agora eu sou dependente dos meus pais e... se eu reprovar de novo...

— Reprovar de novo? — Eu indago, surpresa demais que isso seja uma possibilidade.

— Eu não tô conseguindo fixar, Gen. Não sou mais uma criança prodígio. — Ela me corta e respiro pesado, apertando o ferro atrás de mim.

— Onde entro nessa história?

— Você é a garota mais inteligente que conheço. E acho que se você me ajudar. — Ela diz, mordendo os lábios.

Pera lá. — Eu a interrompo, abismada. — Você me chamou pra pedir ajuda? Tem o clube de reforço. E você sabe muito bem que está mentindo quando diz que eu sou a mais inteligente que você conhece. Jacques passou em primeiro lugar de publicidade então...

— Gen.

Gênesis!

— Gênesis. Eu não quero ajuda de nerds que se sentem como se fossem cotados pelo ITA desde que nasceu ou sei lá a Marie Curie da nova geração. — Ela diz e eu quero retrucar que ela já foi a nova Marie Curie da geração. — E tu sabe minha situação, não vai ter um coitadismo absurdo.

— Na verdade, vai ter sim. Você sabe.

— Ah, você sente pena de mim então? Eu pensei que tivesse asco, ódio, rancor e essas coisas. — Ela dá de ombros, cruzando os braços.

Pandora está debochando? Ah, ela se sente no direito de debochar agora?

— Não vai rolar. Eu posso conversar com o clube de nerds pra te ajudar — digo, se afastando do ferro e dando o primeiro passo para se afastar.

— Se não fosse sério eu não te pediria ajuda, Gen. Eu realmente preciso do dinheiro deles. — Pandora diz, me fazendo parar.

Merda.

— Eu sei. Mas você sabe que isso não vai dar certo e provavelmente só vai ter um atrito insuportável entre nós duas. Então... vamos ficar com nossa política mesmo. — Eu digo, dobrando a manga curta da camisa.

— Política? — Pandora arqueia as sobrancelhas.

— Eu vou falar com Rebecca. E definitivamente espero que você não ache que eu sentei ao seu lado para uma reconciliação.

— Isso é óbvio. O que rolou?

— Não é da sua conta. — Eu não sei também, mas isso não importa.

— Fiquei sabendo que tu saiu da equipe. — continua e eu fecho os olhos.

— Isso não é uma conversa, Pandora! — a interrompo pela milésima vez, incrédula.

— Eu acho que estou tendo a tal consideração mínima, certo? Não era teu sonho? E... a tua lista? — pergunta, receosa.

Pandora está prolongando nossa conversa com sua curiosidade.

— Eu entrei no Furiosas. Pronto. Eu não disse que tinha que ficar lá até o fim. — Talvez eu tenha dito. Não lembro especificamente. — E a lista já deu toda errada então... Você não vai me fazer prolongar essa conversa e eu não sei o que deu em você hoje.

Ela me olha. Seus lábios se separam por alguns segundos e eu espero que ela diga logo para eu poder ir embora. Mas é óbvio que hoje Pandora está fazendo tudo devagar e me fazendo acionar a política invisível de "o quão desesperada ela está?". E bem, quando eu desisto de esperar ela finalmente se move para dizer algo.

— Você gosta do cara do freezer? — Pandora repete, mordendo os lábios.

Não somos mais muito íntimas, mas ela sabe.

— O que tem?

— Eu posso te ajudar. Não com tudo, mas eu posso te ajudar com ele. Tu me ajuda a estudar e eu te ajudo com ele. — Ela diz e eu solto uma risada.

Espontânea. Incrédula.

Eu a olho de cima para baixo. Os all star monocromático. A meia ¾ preta . As pernas meio definidas. A camiseta pra fora da bermuda, desleixada. E bem, o cabelo cortado. Curto. Não estou dizendo curto como o de Cecília, no ombro. Eu estou dizendo curto como Isaac ou, sei lá, Nathan.

— Pandora... eu conheço sua fama. — Eu digo, encerrando a risada.

— Que fama? — Ela arqueia as sobrancelhas.

— A menos que Isaac seja uma garota, sua ajuda não vale de nada — debocho, ajeitando minha saia.

— Meu charme é com garotas porque eu quero garotas, Gen. É isso que lésbicas fazem, não é? — retruca, dando uma risada curta. — Se conhece minha fama, sabe que eu não estou interessada em garotos. Se estivesse, conseguiria ficar com eles.

Eu suspiro, desviando o olhar. É óbvio que eu sei que ela é lésbica. Todo mundo sabe que Pandora Verona é lésbica assim como todo mundo sabe que o sol só fica visível de dia ou sei lá. Eu nunca vi nada, mas definitivamente escuto coisas.

Só que é meio estranho que ela diga isso para mim pela primeira vez porque quando éramos amigas ela não me disse.

— E então como você vai me ajudar, Pandora? Não entendi. — Eu indago, mesmo que não esteja tão curiosa assim.

— Isaac é meu amigo de fliperama. A gente joga junto. Eu sei muito sobre ele. O bastante para te ajudar a ter seu momento. Sério, ele baixou muito a guarda depois que eu venci umas cem vezes. É um cara legal.

Merda. De novo. Eu não vou cair nessa. Provavelmente vai dar errado, a gente vai ficar pior e sem uma política invisível. É um ponto que eu preciso levar em consideração. Mas como uma deixa divina, o sino ecoa no instante que ela termina de falar e eu posso finalmente se afastar dali — mesmo que sejamos da mesma sala e agora estejamos sentadas uma do lado da outra.

— Não vai rolar, Pandora.

Eu estou tirando os oxfords quando minha mãe vem em minha direção, de avental. Eu não preciso nem de cinco minutos para chegar em casa e largar a mochila no lugar especial — mamãe gosta de deixar as coisas organizadas para nada se perder do caminho (isso acontece desde que ela perdeu o pendrive com fotos constrangedoras minhas e foi meses para encontrar). Ela está com uma espátula em uma das mãos e o celular em outro, demorando alguns segundos para entender — como se ainda não tivesse percebido que a grande diferença após o final de semana é um cabelo cortado torto.

Eu estou com um sorriso amarelo enquanto espero a sua primeira resposta a meu novo corte de cabelo feito em última hora. Sermão? Bem, ela também não ficou muito animada quando eu pintei meu cabelo de verde — mesmo que o correto seja ela pintou.

Uau. — Ela diz fazendo uma careta enquanto observa meu cabelo. — Tá na moda? O cabelo torto?

— Eu fiz uma técnica que não deu muito certo. — Eu digo tirando a camiseta do uniforme. — Mas bem, eu posso inventar moda.

— Quer que eu acerte? — Ela faz uma careta tirando a luva.

— Seria uma boa.

Mamãe vai em direção ao balcão que separa a sala da cozinha e guarda a espátula, tirando o avental. O celular fica em algum canto enquanto ela lava as mãos e vai em direção às inúmeras gavetas da sala, atrás de uma única tesoura. Bem, eu sabia que ela não ia me matar literalmente, mas essa atitude também é estranha. Estou me sentando em uma cadeira, ainda com o uniforme nas mãos enquanto mamãe se aproxima com a tesoura fina e pontuda, bem melhor do que a que usei ontem.

— O que te motivou a cortar? Já sei, cansou do cabelo verde. Eu te disse. Essas cores coloridas enjoa fácil. Mas isso tá muito torto, Gênesis. — Ela diz enquanto se afasta, me deixando sem entender. — O que suas amigas acharam?

Legal. Estiloso. — Eu dou de ombros, me ajeitando.

Bem, Rebecca soou como se eu estivesse gostado então estava bom então... é, está ok.

— Você não se encheu de besteira na casa do seu pai, né? Depois os treinos começam e você vai acabar passando mal entre eles. — Ela diz e percebo que trouxe um pouco de água para umedecer o cabelo.

Nas férias eu contei pra ela que as garotas também estavam de férias, mesmo sendo uma mentira. Elas treinaram bastante. E eu não fui expulsa com todas as letras. É só que você sabe quando está fora ou não. O que é chato porque precisei passar por uma seleção e não recebi nem um aviso direito justificando o porquê de eu ter saído. Tipo, quem vai me substituir? Que tenha treinado tanto quanto eu pra isso? E eu não faço a mínima ideia do porque não criei uma tempestade sobre isso ainda. Na verdade, a raiz do motivo que eu esteja estranha, de fato.

— Ah, não. Ele até me fez um sanduíche saudável com cenoura picada e tudo mais. — Eu digo enquanto mamãe acerta os fios traseiros.

— E com a nova namorada dele? É daqueles legais ou daquelas babacas?

— Sue é legal. Ela é modelo ou algo assim. Não sei se vai durar, mas eles combinam — digo enquanto mamãe se posiciona na minha frente, fazendo a milésima careta.

Ela mede no próprio olho. E sua expressão diz que está muito torto.

— É ótimo que o penteado Chitãozinho e Xororó esteja na moda. — Ela diz enquanto repica a parte da frente. — Porque você vai ficar nesse estilo. Da próxima vez, procure um profissional.

Eu disse.

— É bom ter personalidade — retruco, soltando uma risada.

— Duvido que você queria chegar exatamente nesse penteado.

Não. Na verdade é melhor nem mostrar a foto que eu usei de referência no Pinterest ou isso vai estar um pouco mais zoado do que está agora.

Quando mamãe termina, poucos minutos depois, ela volta para a cozinha enquanto vou em direção ao quarto. Desço a saia pra fora do corpo e continuo de meias, me deitando na cama e sugando a sensação de casa que meu quarto dá, junto com todos os pôsteres de coisas que não gosto mais e rabiscos que fiz quando era criança — sentimental demais para passar uma tinta por cima de cavaleiros, princesas e tudo mais. As janelas do quarto ficaram abertas o tempo inteiro. Estou sentindo uma brisa confortável enquanto tento descansar um pouco antes de um banho.

Por que Pandora precisa tanto especificamente da minha ajuda? E por que me sinto quebrando nossa política silenciosa porque é algo importante pra ela? Quer dizer, será que eu vou medir em uma balança as coisas boas ou... merda. Mais tarde envio mensagem para Becca e pergunto se alguém pode ajudar Pandora. Nenhum nerd exibido. É minha ajuda pra ela. Eu tenho noção que seus pais biológicos são babacas e fazem de tudo para romper um laço fino entre ela e eles. Também tenho noção que ela precisa do dinheiro deles depois que Tia Jô morreu.

Merda.

Não é da minha conta.

E não é como se eu fosse sei lá a melhor pessoa para ajudá-la. Tenho alguma consideração por ela ainda, pelos oito anos de amizade que tivemos. Mas isso não significa que eu não guarde rancor e que, sim, eu talvez faça coisas por má vontade. Quer dizer, não é justo ela jogar isso pra cima de mim agora depois do que ela fez. É saber que tenho claramente uma ligação emocional gigantesca, a gente literalmente passou por muitas fases juntas. Muitas.

Muitas.

E acho que a gente tem um voto de silêncio sobre isso. Quer dizer, pelo menos eu nunca ouvi ninguém falar sobre algumas coisas. Tipo patos.

Céus. É esse o joguinho que ela está fazendo quando me pediu ajuda e tocou naquele ponto. Sabia que eu não ia conseguir parar de pensar nisso. Mas definitivamente não vou cair nessa.

Não vou.

Oi, gente! Só pra comemorar que a gente chegou em 2k. Espero que vocês estejam gostando e eu reli esse capítulo umas três vezes para fazer revisão (nada profissional, óbvio) e deixar o mais bonitinho pra vocês. Não se esqueçam que é importante comentários, votos e sua opinião! Muitíssimo importante. Eu vou atualizar no sábado com dois capítulos (!!) pra vocês já irem conhecendo as duas.

Uma coisa interessante pra vocês: as entrevistas não realmente aconteceram na história, são coisas selecionadas e tá cheio de easter eggs sobre o que vai rolar. E espero que dessa vez nenhuma ovelhinha saía do rebanho e shippe errado haha. Nesse capítulo a gente conheceu a Becca (que é uma personagem relevante), a Pandora e a mãe da Gen (Dona Helena!). No próximo capítulo teremos um gostinho da praia Principal e Jacques — nosso locutor favorito.

Eu fiz um post no Instagram já, aliás! Não se esqueçam de dar uma olhadinha. Além disso, mais tarde (não hoje) vou fazer uma enquete para o título exclusivo de Gênesis. É @genesisoato. 

A gente tem um grupo, no whatsapp! Para todas as histórias. Se quiser entrar, é só me contatar.

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