O Mais Belo Vermelho

By GabrielaPimenta

112K 10.9K 2.5K

Julien Dufour está enredado em um casamento arranjado com a filha mais velha do Duque de Northumberland, amig... More

Capítulo 01 - Os gêmeos
Capítulo 02 - Igualmente diferentes
Capítulo 03 - Excêntricos
Capítulo 04 - Fascínio
Capítulo 05 - Tormento
Capítulo 06 - Ímpetos
Capítulo 07 - Estranhezas
Capitulo 08 - Segredos e intenções
Capítulo 09 - Sentimentos desconhecidos?
Capítulo 10 - Confrontos
Capítulo 11 - Receios e verdades
Capítulo 12 - Visita
Capítulo 13 - Amigos
Capítulo 14 - Pedaço por pedaço
Capítulo 15 - Tentativas
Capítulo 16 - Convidado
Capítulo 17 - Baile de noivado
Capítulo 18 - Cúmplices
Capítulo 19 - Entre chances e brindes ao fracasso
Capítulo 20 - Afundando em um transe
Capítulo 21 - Um lugar que só nós conhecemos
Capítulo 22 - Pela primeira e última vez
Capítulo 24 - Vislumbres de quem sou
Capítulo 25 - E se eu ouvir?
Capítulo 26 - Rancores e feridas
Capítulo 27 - Entregando-se ao inevitável
Capítulo 28 - Talvez eu seja. Talvez sejamos
Capítulo 29 - Estes são meus temores
Capítulo 30 - Promessas indecente
Capítulo 31 - Confissões no armário
Capítulo 32 - Elo entre irmãos
Capítulo 33 - Inquietações
Capítulo 34 - Todas as imperfeitas coisas
Capítulo 35 - Novas cores e velhas angústias
Capítulo 36 - Fogo e água
Capítulo 37 - Nas entrelinhas
Capítulo 38 - Vínculos despedaçados
Capítulo 39 - Ao meu caro pai
Capítulo 40 - Enfrentando a realidade
Capítulo 41 - As marcas em minha pele
Capítulo 42 - Verdades através de mentiras
Capítulo 43 - Os sabores dos dias
Capítulo 44 - Sob a lápide
Capítulo 45 - Desalentos
Capítulo 46 - Uma linha sem volta
Capítulo 47 - Consequências
Capítulo 48 - Ecos no silêncio
Capítulo 49 - Contra tudo e contra todos
Capítulo 50 - Entre o passado e o futuro
Capítulo 51 - Ela se lembra
Capítulo 52 - Segredos que retornam
Capítulo 53 - Castelo de cartas
Capítulo 54 - Os ventos da mudança
Capítulo 55 - Batimentos pulsando em meus ouvidos
Capítulo 56 - Pequenos segredos sujos
Capítulo 57 - Plano encerrado. Planos que desmoronam
Capítulo 58 - Palavras que dão liberdade
Capítulo 59 - Perfeito em suas imperfeições
Capítulo 60 - Amores que iluminam o mundo
Epílogo

Capítulo 23 - Fantasmas do passado

1.7K 161 55
By GabrielaPimenta

Julien acordou sobressaltado.

A testa gotejando suor, os cabelos úmidos e o corpo formigando. Respirou fundo uma e outra vez para se recompor, e ergueu o lençol para confirmar se havia mesmo feito o que pensava. Bufou ao ver que sim. Tinha ejaculado com o sonho que o acordou tão abruptamente.

Deixou a cabeça cair para trás no travesseiro e esfregou as mãos no rosto, encarando o teto em seguida. Era a terceira vez desde que chegara a Londres, quase duas semanas atrás. Não conseguia acreditar que aquele incidente havia se repetido. Como iria esquecer Christinie se os seus próprios sonhos insistiam em fazê-lo lembrar do que ocorreu entre eles no bosque?

Na verdade, seus desejos inconscientes estavam levando-o a um patamar muito além do que apenas aquele acontecimento. Idealizava a ruivinha nua e arfante em seu colo, os seios arrebitados roçando provocativamente em seu rosto em um pedido mudo para abocanhá-los com ânsia, enquanto suas mãos acariciavam demoradamente cada centímetro daquela pele macia e cheirosa à medida que seu pênis afundava entre as carnes embebidas de prazer e sensíveis dela. Céus! Somente imaginar tal coisa já o fazia se agitar.

Não que seus pensamentos em algum momento tenham sido dos mais inocentes. Contudo, depois de experimentar daqueles fogosos beijos e a sensação do corpo menor em contato com o seu, de escutar os inebriantes gemidos dela, pareciam ter ficado ainda mais maliciosos.

Julien soltou um longo suspiro, querendo abrandar o calor que voltava a dominar seus sentidos. Continuar relembrando só pioraria aquele martírio e, além disso, tinha muitos compromissos ao longo do dia para se dar ao luxo de perder a concentração por conta disso.

Finalmente reunindo coragem para levantar, o rapaz abandonou a cama depois de vestir a ceroula e caminhou até a janela para abrir as cortinas a fim de observar o clima. A paisagem com a qual se deparou era completamente diferente daquela que estava acostumado, mesmo tentando se habituar a ela. As árvores e os extensos gramados verdejantes pareciam apenas uma imagem distante comparada as construções luxuosas e carruagens opulentas que percorriam as ruas de cascalhos. Mais um dos tantos cenários que Julien vira em suas viagens.

Porém, o que realmente fez com que ficasse cabisbaixo foi o fato de que, estando ali, ele não podia observar os gêmeos correndo animados pelo jardim e nem admirar o sorriso iluminado de Christinie, que, apesar dos pesares, alegrava seus dias. A separação pesou em seu peito.

— Basta! — disse a si mesmo ao perceber que seguia a escuridão de seu coitadismo.

Bateu com as mãos nas bochechas como forma de acordar, não apenas literalmente, como de seus devaneios também. E foi lavar o rosto. Teria que descer logo mais e deveria se aprontar.

Apanhou uma toalha limpa, jogando em cima do ombro, e se observou no espelho atrás de algum indício de que deveria se barbear; ele estava preparando o lavabo com água limpa no momento em que a porta foi aberta e um grito ecoou repentinamente dentro do quarto.

A jarra de porcelana quase escorregou da mão de Julien e foi ao chão tamanho o susto que tomou. Alarmado, o rapaz virou e defrontou-se com uma jovem criada, que o encarava tendo a face rubra igual a uma pimenta. Vislumbrou-a um instante. Não estava certo de já tê-la visto antes, mesmo conhecendo uma boa parte dos empregados do casarão.

Nenhum deles se pronunciou.

O Dufour percebeu como o olhar dela estudava-o minuciosamente e parecia carregar certa malícia, e só então se deu conta de que não usava camisa e vergonhosamente trajava somente a roupa de baixo que, ainda por cima, provavelmente evidenciava sua indecência.

Santo Deus, que vexame! Ele se desesperou e correu até a cama, apanhando o robe de caxemira e vestindo às pressas, cobrindo-se praticamente por inteiro. Houve um minuto de silêncio.

— Oh, céus. Mil perdões, Sir! — a jovem criada exclamou, completamente envergonhada — Eu pensei que o senhor estivesse dormindo e.... Deus, que vergonha! Perdoe-me, por favor.

Julien pigarreou, um tanto desconfortável, e tratou de responder com calma:

— Está tudo bem. Foi um apenas equívoco.

— Realmente, me desculpe! Não foi minha intenção. — tornou a se retratar — Eu só vim acordá-lo a pedido do duque, mas não fazia ideia de que já estivesse desperto.

— Acontece com qualquer um. Não estou irritado, só um pouco... Surpreso e envergonhado.

Ele esboçou um sorriso sem graça, que tranquilizou a empregada. Em seguida, disse:

— Avise ao duque que logo estarei na saleta de café da manhã. Não irei demorar.

— Como quiser, Sir.

A jovem fez uma reverência atrapalhada e se apressou para sair do quarto, porém, foi detida pela voz levemente rouca de Julien. O timbre lhe causou um arrepio incomum.

— Pois não? — indagou ela.

— Que mal lhe pergunte, mas qual é o seu nome?

— Mariana, senhor.

O rapaz tomou uns segundos para memorizar.

— Obrigado, Mariana. Pode se retirar.

Após outra mensura, a criada enfim saiu do quarto.

Logo que a porta fechou atrás de si, ela deixou um suspiro escapar e se abanou com as mãos para amenizar a quentura em suas bochechas. Que Deus tivesse piedade de sua alma, pois, aquele homem com certeza não teria. Nem de sua sanidade – se houvesse lhe sobrado alguma.

O senhor Dufour era muito bonito, com o corpo atlético e bastante viril, especialmente pelo o que pôde espiar do instrumento dele marcado na ceroula. Aparentava ser grande, mesmo não estando em todo o seu vigor. E, como se já não fosse o bastante, era extremamente gentil.

Lady Suzanne tinha sorte em estar noiva de um homem como ele. Na verdade, qualquer mulher teria sorte de estar ao lado dele, quiçá então em seus lençóis. Afinal, quem não desejaria passar uma noite com alguém que demonstrava ser um amante intenso e afetuoso?

Oh, sim. Lady Suzanne tinha muita sorte. E Mariana a invejou momentaneamente por isso, ambicionando ter a mesma chance que a nobre, nem que fosse uma única vez na vida.

Minutos mais tarde, Julien encaminhou-se através das escadas de madeira caprichosamente entalhadas para a saleta de café da manhã no andar de baixo. O casarão, embora menor, ostentava tanta riqueza quanto o palácio no campo. Quadros renascentistas e afrescos decoravam a maioria dos cômodos, tal como outras peças de arte bastante valiosas. Porém, entre tantos artefatos, o que mais chamava atenção era a enorme pintura no hall de entrada da casa: um enorme retrato do duque posando com os sete filhos. A imagem de uma família abastada.

Foi por meio desse quadro que, pela primeira vez, Julien pôde ver os rostos de Joseph e Augustus. O primeiro, sendo primogênito, era a face de Hugh. O segundo, entretanto, tinha traços semelhantes apesar de ter herdado a fisionomia – do que acreditava – ser da duquesa.

— Bom dia. — cumprimentou o rapaz ao entrar na saleta.

— Bom dia. — respondeu Eloïs partindo um pedaço de scone.

Ele era o único presente ali.

— Onde está o duque?

— Ainda não desceu.

O mais velho assentiu e sentou.

A criada veio rapidamente para lhe servir o chá e Julien espantou-se ao ver que era Mariana, a mesma que o flagrara mais cedo. Ela deu um sorrisinho encabulado e se afastou ao terminar.

— O que aconteceu? — perguntou Eloïs ao notar o desconforto no rosto do irmão.

— Sabe a criada que acabou de sair? — indicou com os olhos e o mais novo consentiu — Antes de eu descer, ela entrou no quarto onde estou e me flagrou só com a roupa de baixo.

Eloïs tossiu o pedaço de scone que tinha acabado de colocar na boca e deu risada. Julien desaprovou o deboche dando um peteleco sem força na têmpora do irmão.

A interação entre eles vinha melhorando naquele curto espaço de tempo em Londres, assim como o humor de ambos. Os segredos ainda permeavam em meio aos dois, mas possivelmente o afastamento dos causadores de suas inquietações estivesse ajudando de alguma forma.

— Não ria. — censurou Julien, contendo um risinho — Não seria engraçado se fosse contigo.

— Por isso que estou rindo. Porque foi com você.

O riso de Eloïs ficou mais forte com a expressão desgostosa que o irmão fez.

No entanto, vacilou no instante em que lembrara do dia em que escorregou da janela e tombou no gramado do jardim. Christian, que na época pensava ser a irmã, foi socorrê-lo e caiu na gargalhada, fazendo-o rir também. O som suave e contagiante da risada dele era maravilhoso.

A lembrança aqueceu e ao mesmo tempo afligiu seu coração.

Os irmãos continuaram comentando sobre o ocorrido com o mais velho quando o duque entrou na saleta de café da manhã, este que lançou um sorriso contido e sentou em sua cadeira. Era possível notar que o ânimo dele também havia melhorado. Nenhum dos Dufour conhecia a verdadeira história de Hugh Bamborough, mas algo dizia que o palácio de Northumberland também trazia recordações dolorosas a ele.

— Pelo o que vejo, acordaram animados. — comentou o duque — A propósito, bom dia.

— Bom dia, senhor. — responderam uníssono.

Hugh ajeitou o guardanapo no colo e esperou a criada servir o chá. Em seguida, perguntou:

— Posso saber sobre o que falavam tão alegremente?

— Apenas trivialidades. — respondeu Julien, procurando abafar o assunto — O que faremos hoje, senhor?

— Tenho que visitar a Câmara dos Lordes antes de irmos resolver a contabilidade das mineradoras. Ah, e também fomos convidados para um almoço em um prestigiado restaurante aqui de Mayfair. — olhou então para Eloïs — Conversei com o filho de um conhecido que também é musicista e ele se ofereceu para levá-lo ao conservatório em que estudou.

— Isso é ótimo, senhor. — comentou o mais novo.

— Combinamos de que ele virá amanhã para acompanhá-lo. Será uma boa oportunidade de conversar com alguém que partilha da mesma paixão que você, não é mesmo?

Eloïs concordou. De fato, seria interessante discutir sobre música com alguém que frequentou uma instituição tão renomada, embora pressentisse que tal conversa não o satisfaria como as que tinha com Christian na sala escondida enquanto compartilhavam o piano.

O café da manhã ocorreu tranquilamente e os homens se encaminharam para seus afazeres.

A primeira parada do dia, como Hugh dissera, foi a famosa Câmara dos Lordes, no Palácio de Westminster. Uma das mais imponentes e características construções de Londres, situada na margem norte do Rio Tâmisa, e a morada do Big Ben. De acordo com o que diziam, foi o primeiro palácio real da Inglaterra, mas que teve mudança de feições devido a um incêndio.

Autorizados a entrar juntamente com o duque, Julien e Eloïs aguardaram enquanto observavam atentamente a suntuosidade do lugar: no extremo superior do Lesser Hall estava o Trono da Rainha Charlotte, uma cadeira dourada e esculpida elevada por um dossel. Em frente ao trono, estava o saco de lã, um símbolo muito importante da riqueza do país; no centro, estava a Mesa da Casa, sobre a qual repousavam a Maça Cerimonial e o Grande Selo; e as paredes eram decoradas com magníficas tapeçarias representando a armada espanhola.

— Agora eu entendo de onde vem a ostentação britânica. — cochichou Eloïs — Não me admira o duque gostar tanto de esbanjar riquezas estando em um parlamento que faz o mesmo.

Julien manteve-se quieto. O que poderia dizer se era a verdade?

— Eu duvido muito que a Câmara dos Comuns tenha metade dessa opulência.

— Não podemos julgar. Nosso país não está muito longe disso.

— Convenhamos que é um reflexo do que vemos aqui. — rebateu o mais novo.

— Eu não discordo de você, El. — suspirou — Mas o que podemos fazer a respeito?

Foi Eloïs quem ficou quieto. Não havia muito o que se fazer além de expressar sua opinião acerca do assunto. Ao menos, não enquanto as pessoas erradas estivessem no poder.

A rápida visita ao parlamento terminou em pouco mais de vinte minutos. Dali, os três foram direto para o escritório do contador responsável pelos registros das mineradoras em Durham, onde permaneceram imersos em papéis e discussões de negócios até a hora do almoço.

— Ao que parece, todos já chegaram. — disse Hugh ao espiar pela abertura da carruagem — Bem, é a típica pontualidade britânica. Logo vocês estarão acostumados com isso.

Eles foram recepcionados pelo maître do restaurante e direcionados a mesa correspondente ao Duque de Northumberland. O salão estava cheio de nobres vestidos impecavelmente, desfrutando de copos de brandy e charutos exóticos. Alguns dos rostos eram conhecidos para os Dufour, já que Hugh fez questão de apresentá-los a vários de seus colegas na cidade.

Apesar de ser um ambiente comum em sua vida desde que passara a aprender o ofício administrativo com o pai e fora reforçado pelo fato de serem nobres, isso não significava que Julien gostava de estar naquele meio, envolto por figuras esnobes e ambiciosas. Ter de apertar as mãos daqueles homens com quem mal falava e socializar não era um problema a maior parte do tempo, mas, às vezes, tornava-se estafante e obrigatório demais.

Mas, bem, era assim que a sociedade vivia desde que se entendia por gente: de aparências.

Os três rodaram pelo enorme e decorado salão, cumprimentando quem ali se encontrava para o tal almoço. As conversas não destoaram muito do âmbito de trabalho e variedade de opções de entretenimento que a cidade oferecia durante a temporada. Ainda que, vez ou outra, alguém tocasse no assunto sobre os conflitos das ilhas britânicas contra a França e a ascensão de Napoleão Bonaparte, que, segundo os jornais, tentava invadir novamente outros países.

Eloïs havia engatado uma discussão deveras interessante com o filho de um conde enquanto Julien e o duque comentavam com outros lordes a respeito do Bloqueio Continental, e em como essa atitude de Bonaparte vinha se mostrando um "tiro pela culatra" desde sua imposição.

O almoço, que até então aparentava ser agradável, sofreu uma reviravolta no instante em que um homem de casaca azul marinho se aproximou do grupo e soltou com escárnio:

— Mas vejam só quem eu acabo de encontrar.

Todos viraram na direção da voz e Hugh arregalou os olhos ao reconhecê-lo.

— A quanto tempo, não é, Hugh Bamborough?

— Harold Fernsby. — murmurou pasmo — O que faz aqui?

— Voltei há algum tempo dos Estados Unidos.

Julien e Eloïs observaram a cena, e ficou claro para os dois que não havia uma aura amistosa envolvendo o duque e aquele homem. Muito pelo contrário. Seriam rivais nos negócios?

A frase seguinte quebrou totalmente essa possibilidade.

— Não irá cumprimentar um antigo membro da família?

Os Dufour trocaram olhares sorrateiramente. Membro da família? Outro?

Obviamente, não parecia ter algum parentesco com os gêmeos ou Lean. Os traços aristocráticos e notoriamente ingleses só podiam indicar que ele era da família de outra pessoa.

— Da antiga duquesa, será? — insinuou Eloïs ao irmão mais velho.

Julien franziu o cenho, ponderando a possibilidade. Tinha um fundo de lógica.

Hugh, tendo a atenção dos homens do círculo em que conversava, ignorou o desconforto da circunstância e estendeu a mão para cumprimentar Harold. Mas é claro que o primo de Ellen não tinha pretensões de ser tão gentil quanto estava demonstrando até então.

— Você não tem o mínimo de vergonha na cara, não é mesmo, Hugh? — lançou o outro.

O duque retesou diante da afronta. Seus dedos contraíram no que levou o braço para o lado do corpo, ciente de que não haveria qualquer cumprimento. Pigarreou e disse:

— De qualquer forma, é um prazer revê-lo.

— Honestamente, eu não posso dizer o mesmo.

Fez-se uma pausa constrangedora. Vários olhares pairavam sobre eles, visto que Harold não fizera nenhuma questão de ser discreto, falando alto o suficiente para quem quisesse ouvir.

Os irmãos Dufour seguiram observando, sem saber se deveriam tomar parte ou não, do que aparentava o início de um desentendimento.

Hugh tentava à todo custo não causar um escândalo em frente àquelas pessoas, mas tinha consciência de que Harold não facilitaria, principalmente porque este não parava de lançar farpas e elevava cada vez mais a voz, tanto que, em dado momento, todos assistiam à cena.

Murmurinhos encheram o restaurante.

— Harold, se você tem algo para resolver comigo, peço que espere até que estejamos em um lugar reservado para conversarmos. Este não é o local e nem a hora para isso. — explicou o duque, querendo acabar logo com aquilo e no limite de sua paciência.

— Eu não preciso resolver mais nada com você, Hugh, o destino já se encarregou de puni-lo. — deu um passo à frente e murmurou em um tom cruel — Ela ter morrido naquele acidente foi seu castigo por tudo o que fez e a vergonha que causou a Ellen. Isso basta para mim.

Hugh tencionou. Seu semblante contorcido em agonia como se tivesse acabado de levar um soco no estômago. Como aquele homem tinha a ousadia de falar sobre ela? Maldito seja!

Apertando as mãos trêmulas em punhos, ele estava prestes a cometer uma loucura quando dois funcionários, enfim, apareceram "convidando" Fernsby a se retirar. Sem expressar resistência, uma vez que havia conseguido o que queria, e com um sorriso cínico direcionado ao Duque de Northumberland, o homem deixou o restaurante sob olhares repreensivos.

— Desculpe, Hugh. Eu não pensei que Harold viria mesmo ao almoço. Chamei-o por pura formalidade, já que a família Fernsby tem seu prestígio em meio a sociedade. — explicou Richard, o Marquês de Winterbourne e organizador do evento.

Hugh vislumbrou de relance os irmãos Dufour, que pareciam estar tão desconcertados quanto os demais, e disse em um suspiro:

— Fique tranquilo. Infelizmente, eu sei como aquele homem é e que o fato de ser um Fernsby implica em suportá-lo.

— Espero que esse triste incidente não estrague o seu ânimo e nem o dos rapazes para o almoço que logo será servido.

O duque pensou em dizer que aquilo não afetou o seu humor, mas estaria mentindo descaradamente. Sem contar que não queria lidar com os comentários a respeito do ocorrido. Porém, sabia que o falatório seria ainda maior caso fosse embora, pois, confirmaria que as injúrias de Harold deram certo. E ele não se rebaixaria a isso. Agiria como o homem inatingível que sempre fora, mesmo que seu coração estivesse sangrando como há muito não acontecia.

— Venham, rapazes. Vamos nos sentar.

De cabeça erguida, o duque caminhou imponente e elegantemente ao lado do marquês, tendo Julien e Eloïs em seu encalço. Sentaram em uma mesa reservada especialmente para eles.

Durante longos minutos, nada foi dito, isso até o duque se ver na obrigação de dizer:

— Desculpem por aquela cena. — soltou um profundo suspiro — Harold Fernsby é o primo de minha falecida esposa, Ellen. Tivemos alguns desentendimentos não resolvidos no passado.

— Não tem porque se desculpar, senhor. — respondeu Eloïs — Foi apenas um inconveniente.

— Meu irmão está certo, senhor. — concordou Julien — Vamos aproveitar o almoço, sim?!

Apesar do que disse, o próprio rapaz teve de se empenhar muito para conseguir comer rodeado de tantos burburinhos e olhares sorrateiros. Mesmo sem entender a história por detrás daquele inesperado embate entre Hugh e o primo de sua finada esposa, era desconfortável ser o centro das atenções de pessoas que, provavelmente, fariam aquele incidente circular pela cidade.

Bando de hipócritas!

Assim que retornaram ao casarão, envolvidos por um silêncio profundo, o duque foi direto para o escritório e lá ficou trancado pelo restante do dia. Não compareceu ao jantar e não deu qualquer sinal de vida até a hora em que Julien e Eloïs resolveram ir para os quartos.

O mais velho dos Dufour, um tanto preocupado, buscou distrair os pensamentos com um livro que pegara emprestado na biblioteca. Exatamente o mesmo que Christinie lia no dia em que foram juntos ao bosque: "As Aventuras De Gulliver", de Jonathan Swift. Pegara por impulso.

Ficou mergulhado na leitura durante algum tempo. Porém, ainda com fome por não ter sido capaz de comer direito nem no almoço e nem no jantar, Julien largou o livro em cima da cama e vestiu o robe para não correr o risco de ser pego em uma situação comprometedora outra vez.

Felizmente, a iluminação do casarão era feita a gás, tendo algumas lamparinas de mesa espalhadas pelos corredores. Então, o rapaz não precisou levar consigo a candeia que utilizava minutos atrás para ler; desceu as escadas rumo a cozinha a procura de algo para mastigar.

No entanto, uma luz vinda da sala de estar o fez deter o passo, e olhar na direção da porta.

Quem estaria acordado àquela hora da noite? Bem, ele tinha certa suspeita.

Aproximou-se e então encontrou o duque adormecido no sofá, completamente desalinhado, o oposto de como costumava vê-lo no dia a dia. A imagem do homem abastado e de alto título hierárquico dera lugar a de um homem imerso em sua banalidade como ser humano.

Isso o surpreendeu.

Um copo meio cheio pendia em uma das mãos enquanto a outra estava aberta como se, em algum momento, tivera segurado alguma coisa. O rapaz analisou rapidamente ao redor e percebeu que, caído entre as várias garrafas vazias de brandy no carpete, havia o que parecia ser um tipo de colar relicário aberto. Daqueles que as pessoas colocavam pinturas no interior.

Ele ficou em dúvida, mas a curiosidade de ver e a cisma que o atingiu lhe impulsionaram a chegar mais perto e apanhar o objeto abandonado no chão. O retrato de uma linda mulher estava guardado ali. Com cabelos longos e vermelhos descendo em cascatas pelos ombros, porém, a imagem estava desbotada pelo tempo e as tantas vezes em que aparentemente fora acariciada.

Julien não precisou refletir muito para compreender que se tratava da mãe dos gêmeos.

Tal como imaginara, considerando como os filhos eram bonitos, a mãe era tão linda quanto. Muitos dos traços escoceses vieram dela, em especial as sardas e os fios acobreados.

— Essa pintura nunca fará jus a verdadeira beleza dela.

O rapaz levantou a cabeça, assustado, e viu que o duque estava acordado. Ou algo perto disso a julgar pelo tom carregado com o qual falara e os olhos injetados pela excessiva bebedeira.

— Senhor...?

— Ela tinha os cabelos tão vermelhos quanto as flores que mando plantar no jardim em sua memória. Se eu fechar os olhos, ainda... — ergueu a mão no ar, tentando alcançar o que lhe era inalcançável — Posso vê-los e senti-los entre os meus dedos... Como se fosse a primeira vez.

O Dufour engoliu em seco.

Ver-se refletido nas palavras do duque lhe causou uma sensação desagradável.

Hugh, de repente, soltou uma risada amargurada e olhou para o nada, talvez enxergando ali todos os fantasmas do passado. A presença dela e da dor que sempre o acompanhava.

— Talvez tenha sido mesmo um castigo por eu ter ambicionado demais... Amado demais...

As pálpebras, pesadas pela embriaguez, se fecharam com certo custo e ele sussurrou choroso:

— Minha Abigail... Minha linda flor...

Abigail. Então esse era o nome dela.

Ao observar novamente o rapaz, Hugh tocou os cabelos dele com um pai faria, e disse:

— Nunca se apaixone, meu rapaz. Isso vai destruir a sua vida.

Julien tomou o sofrimento do homem diante de si e, antes que percebesse, uma lágrima deslizava em sua bochecha. Ele entendia, mais do que ninguém, o que era nutrir um amor proibido. E, para sua infelicidade, já havia se apaixonado e justamente pela filha da mulher que o duque amara com tanto fervor.

Sua vida caminhava para a ruína que Hugh tardiamente quisera o alertar.

O rapaz afugentou aquela única lágrima e colocou o colar de volta na mão do duque, que caíra outra vez adormecido. Logo depois, pegou o copo e as garrafas, ajeitando tudo sobre o aparador. Apagou velas que estavam acesas e, novamente sem fome, deixou-o sozinho. 


-------------------------------


*Scone: um bolinho britânico assado, geralmente feito de trigo ou aveia com fermento em pó.

Continue Reading

You'll Also Like

841K 90.3K 42
A Selvagem e aventureira Breanne Munrou é uma das filhas do Rei dos Lobisomens. Uma Princesa que prefere passar o seu tempo livre treinando com os ex...
1.2M 143K 36
Essa obra é de minha autoria, ou seja, DIREITOS AUTORAIS. É sempre bom lembrar, plágio é CRIME! Victória D'Evill sempre foi uma mulher com prioridade...
382K 27.6K 85
ISADORA BENNETT uma brasileira que desde criança amava assistir aos jogos do Barcelona com seu pai e que cresceu ouvindo que quando fosse maior de id...
37.7K 3.1K 53
Sempre vivi sozinha,vaguei por todos os cantos do mundo,nunca precisei de alguém. Sempre me disseram que um dia eu teria que encontrar meu companheir...