Ela bateu a porta com tanta força que sentiu tremer a parede, se apoiando contra ela assim que entrou. Ela segurou o quanto pôde, mas não conseguiu impedir que a primeira lágrima rolasse, seguida por dezenas de outras lágrimas. Logo ela estava soluçando e nem percebeu de onde aquele abraço tinha saído, mas naquele momento era só isso que ela queria.
─ Eu quero.... Eu quero.... – ela tentava dizer, sem êxito.
─ Shiiu, eu estou aqui, vai ficar tudo bem... – Dylan dizia, abraçando-a fortemente. ─ Era a guarda Luciferiana, não era?
─ Sim, era... Eles... – ela gaguejou ─ eles disseram que meu pai é...
─ Eu sei, eu sei. Me perdoe por não ter te dito antes... eu jamais te levaria naquela loja se soubesse que ela era dele...
─ Não tem problema, eu... – era muito difícil para ela colocar tudo isso em palavras – eu só não queria ser filha dele... Eu não quero ser má, Dylan... – entre lágrimas e soluços ela revelou.
─ Ei, ei, ei... – ele a puxou para a cama, fazendo-a sentar. ─ Escuta bem uma coisa: você não é e nunca será má. Você é a pessoa mais incrível desse mundo. Você nunca quer machucar ninguém e nunca pensa em tirar proveito de nada. Você se lembra quando eu te disse que não importa o seu sangue, importa quem você é!?
─ Ahan...
─ Então Miranda, você sabe quem você é?
─ Eu... eu não sei...
─ Você é a minha menina – ele a puxou para um abraço ─ e eu sou o seu "o que você quiser que eu seja" – ele disse sorrindo, fazendo-a sorrir também. ─ Isso é estranho? Sim! Mas não precisa ser necessariamente ruim...
─ O que você quer dizer com isso? Que eu devo aceitar ir embora com eles pra lá? E o que vai acontecer? Eu nem sei o que vão fazer comigo.
─ Não sei, de verdade. Não sei se os livros contam a verdade, se é tudo folclore, ou o que quer que seja. Mas acho que você tem que dar uma chance para o seu passado, e torcer pelo futuro. As coisas nem sempre são como contam pra nós. Tire suas próprias conclusões, mas enfrente. Não fuja, você é mais do que isso, mais do que um título, Miranda. Você é mais do que uma princesa... você é a mulher mais maravilhosa que eu já conheci na vida. Pra mim você poderia ser um anjo...
─ Dylan, para... – ela pediu, corada, abraçando-o. ─ Você me desculpa?
─ Pelo quê?
─ Por ter perdido o controle e gritado com você mais cedo?
─ Esquece isso. Eu nunca tinha te falado sobre minhas condições financeiras. Era normal você se assustar.
E então ele passou o resto da tarde falando sobre outras coisas. Aproveitou para dizer sobre as peripécias de um anjo safado, amante da música e dotado de um talento especial para cativar o público. Ele contou sobre os milhares de hits compostos para os mais diversos estilos e épocas, bem como sobre todo dinheiro recebido em troca do direito de tocá-los por ai. Falou sobre os amigos famosos dessa época e de outrora, da mesma forma que falou do sonho interrompido há alguns anos por conta de Benjamin e sua caçada maluca atrás de Miranda. Foi quando ela lhe perguntou:
─ Você já se apaixonou?
─ Eu estou apaixonado, Mi.
─ Quero dizer, após todo o tempo que você está na Terra como anjo caído... alguma vez, você já se apaixonou antes de mim?
─ Eu já tive muitas e muitas mulheres na minha vida, de todas as nacionalidades, cores, costumes, portes físicos, idades, enfim... não que me orgulhe, mas costumava me divertir com todas, às vezes, com várias delas ao mesmo tempo – ele maliciosamente riu. ─ Não to dizendo que tenha sido certo, nem errado, mas foi outra época. Teve uma época também em que as coisas eram, bem diferentes. Época em que costumávamos nos ajoelhar para a menina e pedir para conversar um pouco. Épocas em que apenas um olhar podia te deixar com mais calor do que ficar embaixo do sol... épocas em que as coisas eram mais simples.
─ Simples?
─ Sim. Não havia tanta malícia. Era simples: você queria uma mulher, você chegava perto, se ela te olhasse sabia que ela te queria também. Simples. Mas nunca pude viver isso.
─ Por quê?
─ Porque eu não envelheceria, mas ela sim. Como daria certo?
─ Ah... – ela disse, entristecida. ─ Você já sofreu por amor?
Ele parou por um momento, repensando os momentos da vida dele.
─ Não sei se é exatamente isso. Há um bom tempo conheci uma menina, de olhos claros e pele alva como a neve. Era em algum lugar da América do Sul, não sei ao certo. Quando a encontrei pela primeira e última vez ela estava passeando pela praia. Naquela época, uma mulher não podia andar de biquíni. Os trajes de banho eram como os vestidinhos de hoje, e ela estava sentada junto ao mar, com os pés na água. Eu me lembro de me aproximar e ela me olhar, sem virar o rosto, me lembro da brisa do mar batendo no cabelo dela... Me lembro de querer. pela primeira e única vez na vida até então, só me sentar ao seu lado e ficar lá, olhando o mar... assim como...
─ Como...
─ Como faço com você todas as manhãs...
Miranda sorriu, mesmo sentindo ciúmes desse amor de tanto tempo atrás.
─ E o que aconteceu? – ela quis saber.
─ Não deu certo – ele voltou a olhar a janela. ─ Quando voltei no outro dia, soube que ela tinha morrido.
─ Ai credo, Dylan.
─ Sim. Ela tinha sido picada por uma cobra. O que era estranho, já que lá não tinha cobras lá. Mas toda a vila estava em luto – ele deu um tempo, depois continuou. ─ É por isso Miranda, que quando eu te vi, eu sabia que não podia esperar, que não podia deixar pra amanhã o beijo que eu queria naquele momento. Foi por isso que te procurei todos aqueles dias depois da festa. Porque eu não havia sentido aquilo que senti na praia com aquela menina nunca mais, até aquele dia, quando você me confundiu com Benjamin. Eu não poderia suportar deixar outra chance de ser feliz de verdade ir embora.
Miranda sorriu, deixando o ciúme de lado. Ela acariciou o rosto dele, se aproximando para sentir o seu cheiro. Nesse momento, ela se sentiu amada.
Às oito horas da noite os dois já estavam prontos. Ela estava simplesmente deslumbrante naquele vestido, e lógico, desfilaria com o colar que Dylan havia lhe dado. Enquanto ela se olhava no espelho, terminando a maquiagem improvisada, ele apareceu por trás com uma caixa de presentes para ela.
─ O que é isso?
─ Abra.
Um par de brincos de Turmalina e diamantes maravilhosos foram colocados gentilmente na orelha de Miranda, que não conseguia fechar a boca, encantada.
─ Você é louco! – ela disse, se admirando.
─ Por você... Você sabe!
O telefone tocou, avisando que o carro estava pronto. Dylan deu o braço para que Miranda segurasse, a acompanhando até o hall de entrada. Matahun estava esperando por Miranda junto a porta principal do hotel. Ela tinha explicado a Dylan quem ele era, e ele não se importou que o feiticeiro fosse até lá, mas com o próprio carro. O que ninguém tinha percebido até então era que os limites do império Luciferiano ficavam uma quadra antes do endereço da festa. Nem Miranda nem Matahun estariam seguros fora dos limites. Ainda assim, ela foi.
O feiticeiro não conseguiu, obviamente, adentrar a residência onde a festa aconteceria, mas ficou esperando próximo ao carro. Dylan e Miranda entraram pela porta principal de um casarão de mais de 30 quartos, cheio de gente tão bem-vestidas quanto eles. Um lustre de cristal gigante decorava a entrada da casa, e vários empregados se dividiam entre servir as comidas e bebidas, guardar casacos e chapéus e orientar onde poderiam encontrar diversão.
Várias saletas de convivência podiam ser vistas, cada uma aparentemente abrigava determinado tipo de entretenimento. Uma, em especial, chamou a atenção de Dylan: era quase como um pub inglês, mas extremamente bem decorado, iluminado e ventilado. Havia um palco e alguns músicos tocando canções sem letra, mas com a batida bem conhecida. Miranda nunca havia visto o namorado tão feliz e empolgado por algo que não tivesse nada a ver com ela. Isso a deixou feliz também.
─ Nossa, seus olhos nem piscam – ela disse para Dylan.
─ Desculpa. É que fazia muito tempo que não ouvia uma banda ao vivo. Esses caras tocam bem! – ele voltou a olhar, imaginando se não haveria vocalista compondo aquele grupo. ─ Você quer beber alguma coisa?
─ Não sei... o que tem aqui? – Miranda perguntou, tentando se mostrar à vontade.
─ Amigos e amigas! É um prazer recebê-los todos hoje, em minha casa, nesse dia tão especial – uma voz gutural, mas acolhedora, pôde ser ouvida vindo do centro da casa, embaixo das escadas.
De repente um homem, aparentando seus 50 anos humanos, foi notado. Ele vestia calças jeans pretas, uma camiseta branca de algodão e jaquetas de couro. Correntes e anéis de ouro encrustados de alguma pedra, aparentemente rara, de cor vermelha concluíam o visual do demônio. Demônio não, anjo. Mais precisamente, Abbadon.
Abbadon podia ser muita coisa: um monstro maligno, o líder de legiões de demônios, mentor das almas daqueles que cometeram crimes de ódio, aliado de Leviatã na guerra de clãs do Inferno, anjo caído destruidor e anjo obscuro da morte, mas uma coisa que ninguém poderia negar era que ele sempre se lembrava de algum rosto conhecido.
─ Hoje, daremos início a uma nova Era. Hoje, nosso plano de Ascensão será iniciado. Chega de esperarmos o lado de lá comandar nossos atos. Nós o faremos, com todo sangue e ódio que temos dentro de nós – todos os presentes na festa se reuniram no anfiteatro, ficando abaixo dele, que descia lentamente as escadas, e urravam a cada palavra proferida pelo anfitrião ─ e seremos vitoriosos! Hoje a festa é de vocês. Comam o que quiserem, aproveitem com nossas meretricis, bebam até passarem mal. A orgia é cortesia da casa. ─ Ele dizia, enquanto levantava uma taca de vinho, brindando a todos. Ao final, saudou – "Abbadonica tamen dictatura poten"! ─ Ele bradou, sendo seguido por todos os presentes. Dylan e Miranda estavam bem ao fundo, só observando. Ela estava assustada demais com todo o acontecido para se mexer.
Após uma salva de palmas, todos começaram a se dissipar. Abaddon cumprimentou poucos ao seu redor, e em um em especial deu orientações ao pé da orelha. Depois disso, entrou em uma sala fechada com uma porta de aço.
Essa pessoa que recebeu orientações do anjo veio na direção de Dylan e Miranda, e aparentemente, Dylan o conhecia.
─ Caramba! Dylan você veio mesmo, seu filho da puta safado! ─ Ele o puxou para um abraço, sorrindo.
─ Sim, cara. Faz tempo pra caralho desde a última vez que a gente fez um som, não é? O quê? Trezentos anos?
─ Isso só depende do ponto de vista. Mas você mudou. O que foi? Recebeu uma chave de boceta bem dada, foi? ─ Eles conversavam como se Miranda não estivesse presente, sendo então que o anjo a abraçou, apresentando-a.
─ Não, cara. O que aconteceu foi ela.
Ela apenas sorriu. Nem compreendia tantas palavras estranhas que os dois falavam.
─ Amduscias, essa é Miranda Smiths, o amor da minha vida – e ele deu um beijo na testa dela ─ Miranda, esse é Amduscias, o filho da puta que esteve comigo durante a fase musical que lhe falei mais cedo.
─ Muito prazer, senhorita – ele lhe cedeu a mão e Miranda o cumprimentou, ainda que sem graça.
─ Podemos conversar, Dylan? Abaddon gostaria de lhe falar algumas coisas...
─ Claro. Vamos, Miranda.
─ Olha, eu acho melhor vocês irem conversar tranquilos. Eu fico aqui, sem problemas ─ o demônio que ela havia conhecido já parecia assustador demais, ela nem queria saber o que sentiria conversado com aquele anjo maluco que tanto ódio pregou minutos atrás. ─ O som está agradável aqui e eu estou com um pouco de fome. O garçom já deve estar trazendo algo. Vai lá, Dylan.
─ Tudo bem – ele lhe deu um beijo molhado – se cuida, tudo bem? Não saia daqui ─ ela assentiu, e o viu seguir atrás do demônio rumo àquela porta de aço.
Decidiu buscar algo para beber e percebeu que havia uma mesa de lanches posta ao lado do balcão de sucos. Achou melhor ir até lá do que esperar algum garçom chegar. Algumas pessoas estavam conversando junto à mesa, mas foram duas que chamaram a atenção de Miranda.
Duas mulheres lindas, mas cada uma de um jeito diferente: uma parecia aquelas meninas patricinhas, com suas roupas caras e maquiagem feita por profissionais, seu cabelo era loiro platinado e extremamente longo, com as pontas avermelhadas e o corpo proporcional. A segunda já era típica vadia pornográfica. Morena, olhos claros e lábios fartos. Seus seios saltavam pelo decote do vestido mínimo que vestia. Certamente não usava calcinha, pois tudo estava a mostra pra quem se abaixasse um pouco. Ela quase conseguia ver a cor dos mamilos da outra e o quadril correspondia a dois dos de Miranda, ela calculou, além da cintura ampulheta, o que evidenciava ainda mais o tamanho dos seios e da bunda.
Ela se aproximou timidamente junto ao balcão de suco e, mesmo sem querer, não pôde deixar de ouvir a conversa das duas.
─ Você conseguiu vê-lo, Blitsy – a morena dizia, tentando enxergar alguém por cima da multidão.
─ Não, Katy – a loira respondeu ─ mas eu sei que ele veio. Ele deve estar na sala de aço agora. Parece que Abaddon queria falar com ele.
─ Então come logo... sabe como ele é insaciável. Certamente vai correndo pro salão das meretricis assim que se livrar da burocracia ─ ela disse, rindo.
─ Como sempre, não é? – a outra completou, e as duas gargalharam juntas.
Miranda estava a uns três metros, e apesar do barulho que a festa produzia, conseguiu canalizar toda sua atenção para as duas meninas, ouvindo-as perfeitamente.
─ Fiquei sabendo que ele está acompanhado – a loira revelou.
─ O quê? Dylan Wooth acompanhado? Por quem?
Ao ouvir o nome dele, Miranda sentiu um ódio subir do ventre para seu peito, ela pensou que ia explodir.
─ Sim, acredita? Só falta descobrir de que classe pertence a nossa queridinha do DW. ─ a loira completou, rindo.
─ Sim, a classe das vadias pervertidas ou... – a morena falou, com a unha em forma de garra na boca.
─ A das trouxas iludidas. ─ E riram mais uma vez, o que fez Miranda explodir em um acesso de ódio silencioso.
Sem pensar nas consequências, as quais ela nem tinha ideia de que aconteceriam, Miranda apenas imaginou todas aquelas garrafas de cristal postas na mesa estourando. Ela simplesmente imaginou e, com toda raiva que tinha naquele momento, fez tudo explodir, lançando vinho tinto diretamente nas duas meninas, que gritaram.
Logo um empregado da casa apareceu e mandou que as duas voltassem para o salão de entretenimento de onde, segundo ele, elas não deviam ter saído. Miranda apenas se dirigiu rumo ao salão musical, onde a banda tocava, e sentou em uma poltrona esperando Dylan voltar.