Graciosa [Em Andamento♡]

By AlineNegosseki

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Graciosa é um romance épico em 2 tomos inspirado no conto clássico A Bela e a Fera e se passa no século XIX... More

Graciosa
Agradecimento, Dedicatória e Epígrafe
Primeira Parte - A Rosa Rebelde
Preâmbulo
Prólogo
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XIII
Capítulo XIV

Capítulo XII

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By AlineNegosseki


XII


Num disfarçar velado, entre picos de adrenalina e ardores, os dias que se seguiram foram de silenciosos preparativos.

Ao que tudo parecia o senhor Mascarenhas de nada desconfiava.

O vestido de noiva de Amélia foi encomendado por sua avó a uma costureira simplória, porém muito habilidosa, que vivia nos arrabaldes da cidade. Maria Laura não queria que ninguém especulasse nas ruas centrais do Rio de Janeiro porque se encomendava uma vestimenta de núpcias para sua filha. A própria D. Paulina Bernardes, numa obstinação louca passou a tecer a mantilha que a neta usaria. Delicada, de cor branca e esmerada trama que adornaria os cabelos enquanto cobrira o rosto, o elaborado frivolité ocultaria também as lágrimas provenientes da dor que estariam por sobrevir à inocente noiva.

Tenória desfez e arrumou todos os baús com o enxoval, roupas e demais pertences de Amélia. As alvas cortinas do quarto de donzela coavam o sol da tarde. Sentada numa cadeira de brocado d'um azul acetinado ela tentava compreender, com ansiedade, que seria de seus dias em breve.

Não estaria dando um passo em falso? Estaria mesmo fazendo o que era certo?

Sentia muitos afetos por Fabrício, mas temia que algo escapasse ao seu controle. Por exemplo, se o encanto desvanecesse. Mas, seria possível? Desde que era uma criança que carregava em si a fascinação por aquele homem que tão de repente surgiu para agitar a calmaria que era a felicidade de seus dias pueris.

Tinha tanta saudade e queria vê-lo a todo o momento. E quantos dias fazia que não tinha a alegria de ouvir seu modo tranquilo de falar, sempre com aquelas expressões tão única dele! Nenhuma missiva desde então.

Alguma preocupação estranha lhe atravessava o peito. Suspirando, ergueu os dois pés para a cadeira, até que pode abraçar ambas as esguias pernas que o robe de seda cobria. Faltavam apenas dois dias. Dois dias e sua vida estaria toda mudada. Ela sabia... Em sua nubência quase ignorante, a jovem já tinha ciência que todo e qualquer matrimônio é um passo sem retorno. Enquanto, porém, sentia esses receios, espreitava uns pensamentos cáusticos. Após a ideia tão romântica do casamento, sucederam-lhe, pois, expectações desconcertantes.

Quando fechava os olhos, todas as noites sem exceção, antes de conseguir conciliar o sono, ela via o sorriso quente de Fabrício, e podia imaginar suas mãos morenas a deslizarem pela pele de seu pescoço. Imaginava seus lábios se fechando em sua orelha com delicadeza medida e quase desfalecia de um prazer que se não a satisfazia, enchia-a de desejos que sequer poderia descrever. Afinal desconhecia por todo o que se passa com um homem e uma mulher quando estão sozinhos.

Exceto pelo que a avó lhe contara quando adolescente para preveni-la de possíveis vis investidas dos homens, nada sabia. "Nunca permita que um homem que ainda não é teu marido veja tua nudez ou, sobremaneira, toque em ti." A avó dissera que sinhazinhas como ela eram como joias raras e preciosas, que não faltavam nas esquinas dos dias, ignóbeis vis ansiando alguém como ela para tomar para si e fazer sofrer, pois nunca aprenderam lidar com tesouros assim. E não falava, como deixara bem claro, unicamente da beleza exterior da neta. Que sondasse com sabedoria e fé seus pretendentes, para que, por má ventura, não viesse um dia perder a alma. Quanto ao físico, dissera mais: "Existem momentos em que uma mulher deseja ser tocada. Ou que um homem a compele a tocá-lo. São de toques assim que surgem os filhos." Tudo fazia Amélia crer que fosse ele mesmo o único para ela. Ainda que soubesse apenas em parte tudo o que estava por vir. O que sentia por todo seu corpo quando pensava em Fabrício, todas as noites antes de dormir, era pura e simplesmente instintivo, posto que nem seus sonhos, que aconteciam pelas metades lhe contavam o que acontecia no íntimo de um casal.

O vestido de noiva não demorou a ficar pronto.

Quando ele chegou a casa, entregue pelo mensageiro como envio da costureira, Crisóstomo passava pelo salão da frente, e nem deu importância. Em breve haveria mais bailes e não eram incomum essas entregas por ali, afinal, não eram tão vaidosas sua filha e sua esposa? O que ele não suspeitava era que a rica indumentária era de núpcias. D. Maria Laura apanhou logo a caixa, abraçando-a com um instinto de proteção exacerbado. Lançou um olhar de esguelha para o marido que desarranhou a garganta fitando-a com um olhar oblíquo, enquanto ia tomar um cálice de xerez, e pôs-se a subir a escadaria.

Deixou o precioso embrulho dentro do armário de Amélia e tratou de mandar chamar a mãe, a prima, a irmã e, para a alegria de Amélia, Ana. Todas estariam ali, confabulando em risinhos, quando Amélia chegasse. O rosto de Amélia acendeu quando entrou no quarto, e surpreendeu aquela massa falada feminina. Todas foram até ela que a puxaram, arrancando-lhe o chapéu, medindo o vestido à sua frente. A ordenar que ela vestisse, Maria Laura foi sentar-se numa cadeira, e ficou ali, a expectar em seu sorriso luminoso. Amélia negava-se. Chegava do centro onde fora com Tenória comprar uns adereços e dizia-se cansada. E haveria modo de escapar-se? Todas, principalmente Ana, ordenavam "oh, agora mesmo" e "não sairemos daqui sem vê-la com ele" "talvez devamos pedir a teu pai que o vista em ti" ela provocava. Amélia se divertia com o modo que no passar dos dias havia se criado um mútuo zombar do Crisóstomo. "Como se ele decidisse alguma coisa aqui em casa!" — Exclamava Maria Laura a uma ou outra, em seu olhar pícaro de dominadora. Ao mesmo tempo sentia uma leve culpa, quando havia cordial diálogo entre os dois.

Amélia, enquanto tirava o chapéu todo de pequeninas flores, caminhou pelo quarto tentando livrar-se das mulheres que a agarravam, galhofeiras.

— Esta bem! Está bem! — exclamou rindo. — Acalmem-se.

Tenória seguia-a sempre. Aflita, tinha vontade de afastar a todas com vassouradas. Angustiava-a qualquer molesto à sua amada filha de leite. Não ousava, contudo, externar qualquer manifestação a respeito de suas aflições. No cômodo adjacente, tratou de desvesti-la e apenas seu olhar ardeu de infâmia quando vieram as três — Ana Gabriela, Paulina, Aurora, a mãe dela, e a tia Leocádia — e a arrebataram dali, levando-a assim, olhos arregalados de surpresa e graça, para o quarto, e se puseram a vesti-la.

— Cuidado! — pediu Maria Laura toda em graça, vendo o afã de todas elas. — Cuidado, ou não haverá tempo de mandar fazer outro!

— Ora, mas que é isso, mana?! — disse Leocádia. — Não queremos mais nada se não ver... oh... Vejam, uma princesa! — disse quando acharam Amélia já metida dentro dos delicados tecidos alvos. Apressando-se em abotoar os incontáveis botõezinhos das costas, continuou: — Sou a madrinha da Amélia! Não o sou? Minhas mãos não saberão então ter cuidado? Oh, mas que trabalho isso tudo! — disse a respeito dos botõezinhos cobertos de seda que não terminavam nunca. — Assim, quando termina, o menino Fabrício estará tão cansado, que acaba caindo em sonos!

Enquanto todas riam, Amélia experimentou um calor brotar em seu rosto que decerto devia tê-la colorido as faces. Nesse momento trocou algum olhar com Ana, que desviou-se depressa, indo até a caixa para procurar a grinalda.

— Vamos, querida, coloquemos a mantilha. Oh, como tua avó é habilidosa, Amélia!

D. Paulina que se achava por ali, alojada numa cadeira perto da filha caçula, já cansada da função, fez expressão de orgulho e declarou:

— As Bernardes, filha, são as mais antigas prendas do sopé da Serra da Estrela, em Santa Maria. Além de as mais belas portuguesas daquelas paragens, são as que fazem os mais lindos e elaboradíssimos trabalhos de mão. Uma antepassada levou o frivolité para a aldeia e não paramos mais.

— Serra da Estrela? — indagou Aurora. — Frivolité?

— Amélia nunca te contou? — disse a velha com seu sotaque que trouxe do reino. — Viemos dum aprazível lugar que está escondido, isso mesmo, escondido entre os montes duma linda cadeia de montanhas no interior de Portugal. E minha rebenta-avó, que Deus a tenha, que era meio francesa levou para nossa família esse trabalho que as antepassadas dela já faziam. Não é lindo? Desde então nós fazemos!

Paulina Bernardes contemplou a neta que já estava toda arrumada, e todas faziam o mesmo. À sua volta, boquiabertas, admiravam Amélia, vestida de noiva, era qual uma aparição.

A seda muito branca, alvejada ainda mais pelo sol da tarde que entrava abundante pelos janelões, moldava seu tronco delicado. O peito estava todo bordado com pérolas, e a vira do decote tinha delicada renda. Abria-se dos ombros até abaixo uma manga bufante que ia se afunilar nos antebraços, até aderir-se como uma segunda pele, o que fazia se notar como eram delicados seus braços.

A cintura de anel, aderida ao nobre tecido, esparzia-se até a bacia, de onde se abriam muitas camadas de tecidos diáfanos, numa bela profusão de rodas, até tocar o chão, por onde se ia arrastar numa pequena e encantadora cauda. Completava o conjunto a esmerada mantilha, de dois tecidos, um à guisa de véu dos cabelos, que ia a cobrir até o meio das costas, e outro para cobrir o rosto. Estava esse atirado para trás e todas no quarto podiam contemplar o rosto de Amélia que denotava curiosidade. Ela olhava de uma para outra mulher e se perguntava a respeito do resultado que causava tanto espanto em todas elas. Tenória, enlevada pela beleza da menina que vira nascer, pegou em sua mão, sem preocupar-se em mais nada, e levou-a até o espelho de báscula e murmurou, com algum temor de levar reprimenda das senhoras mais velhas:

— Já se entende a relutância do Sinhô e entregar nossa menina. A Sinhazinha é preciosa... preciosa... como um anjo do céu!

Amélia, analisando sua imagem esplendorosa no espelho, mediu a si mesma e sentiu vergonha, em mesmo tempo que sentiu alegria. Pensava em Fabrício, vendo-a assim, toda perfeição. Era o que ele merecia, era o que gostaria de dar à ele, tamanha era a afeição que lhe despertava. Parecia, porém, que havia nela tanta vaidade que arderia o olhar. E não havia gesto natural que provasse que tantos proventos que a embeleciam, não a fizessem vaidosa.

Um dia especulara a avó a respeito da mãe. Paulina não queria falar. Erguendo o rosto com orgulho, advertiu-a:

— Tua mãe era linda, Amélia. Mais linda que ti. Era, contudo, vaidosa. E tamanha vaidade, se primeiro a ergueu às estrelas, logo, derrocou-a abaixo da linha da ralé.

Amélia não podia compreender o que aquilo verdadeiramente significava. Então, somando a tudo que já tinha vivido, a beleza lhe tomou conotação de maldição. Ainda mais porque lhe afastava as jovens de sua idade, intimidadas, ou ainda, invejosas. E lhe fazia orbitar os jovens, ansiosos por tocar inigualáveis atrativos, mesmo que a custa de sentimentos enganosos.

— Parece uma santa... — disse Tenória, embevecida.

— Pois que não quero, Bá. As santas são para os altares. As santas não estão ao alcance de ninguém — disse muito triste, como pressentisse que alguma coisa não estava certa consigo e como os fatos.



Tenória deu lugar a Ana, que chegou pelo lado para abraçar a amiga pelos ombros. E, assim, ninguém viu a expressão daquela mãe de leite de "o que não tem remédio, remediado está".

As outras mulheres tinham ficado no quarto, conversando e fazendo planos secretos para o dia do acontecimento! O casamento escondido de Amélia e Fabrício. Ana murmurou para a amiga, enquanto ambas a fitavam pelo espelho.

— Te assemelhas a um anjo, sim, minha amiga. Mas, não te preocupa. O que Fabrício vê em ti com o corpo de um homem não é essa figura cândida que lhe atrai para mãe de seus filhos. Ele vê, com o corpo de um homem, os teus olhos.

Os olhares de ambas procuraram as gemas lilases no espelho e aquilo fez tanto sentido para Amélia que ela deixou o ar que prendia dentro dos pulmões, como num grande alívio.

— Isso eu só saberei por certo quando eu conhecê-lo como é sozinho com uma mulher — observou, mordendo delicadamente o lábio inferior.

— Sim. Não te apavore! Aqui está quem sabe que o carinho desses momentos solitários entre dois que se amam, é muito maior e mais íntimo, mais preferível, que qualquer outro tipo de intercurso.

Amélia se esqueceu de si mesma e tornou o rosto e foi dar com os profundos olhos castanhos de Ana. Havia interrogação na expressão de Amélia. No que Ana assentiu como a reafirmar aquilo que dizia.

— Será... Será impróprio falarmos a respeito?

— Impróprio? — Ana sorriu. — Não! Mas... Será que compreendes? Falar sobre o que Filipe e eu vivemos, quando conseguíamos estar a sós... — ela soluçou, chicoteada pelas centenas de imagens e lembranças que a atingiram — Seria doloroso.

— Ah, eu compreendo! — Amélia seguiu murmurando. — Se houver algo que possa me advertir, me evitaria constrangimentos, sábado, depois do casamento... Compreendes? Algo além do que esses ensinamentos que mães e avós dão.

— Elas já falaram contigo? — Ana sorriu com ternura.

— A vó Paulina, há alguns anos. Quanto à mamãe, imagino que vá fazê-lo. Entretanto, não creio que seja aquilo que eu gostaria de saber.

— Amélia, aquilo que gostarias de saber, só saberás quando acontecer. A única recomendação que te dou, é que sejas natural. Quando estiverem sozinhos, expresse aquilo que verdadeiramente estiver sentindo, pois fora disso, mora o ridículo. Fabrício, por certo, saberá bem como agir. E se houver algo que não gostes não te iniba em revelá-lo.

— Então é assim? — Amélia sorriu esperançosa.

— Não há melhor!

— Como é sábia minha amiga! — ela lhe abraçou grata.

— Qual! Eu sempre fui uma medrosa. Esses ensinamentos foi Filipe quem me legou.

Depois que todas finalmente deixaram Amélia em paz, e os risos prazenteiros foram se distanciando até se desvanecerem por todo, já vestida prosaicamente, foi sentar-se em sua cadeira predileta e se deixou ali, a fitar a tarde desmaiar no horizonte. O casario distante, os morros verdes que iam azulando conforme mais distantes iam ficando, as aves gritando ali pelos lados que ficava o mar, as flores pendendo duns muros de sua rua. Tudo ia dando saudade em Amélia. Uma saudade antecipada e dolorida. O fim da semana deixaria essa cidade na qual passou a maior parte da vida para sabe-se quando um dia retornar. Quem sabe se um dia retornaria, pensou. Como seria Morretes? Fabrício lhe havia contado sobre a pequena cidade no caminho do litoral paranaense. Era nessa cidade que ficava a fazenda Guarumby. Ali, a contornar as curvas da Serra da Graciosa, se ia chegar. Disse que não conhecia o lugar em que nascera, senão pelas histórias da avó. Que ia ser da vida ali? Naquele distante desconhecido?

A noite surpreendeu Amélia enquanto ela se permitia ansiar pela lua-de-mel na Europa... Tão poucos dias a separavam duma curva do destino. Como ela poderia ter imaginado tudo isso?

Fabrício e Amélia se viram contando as horas para o morrer do dia na véspera do casamento. Sexta-feira foi vivida por ambos com um nervosismo suspenso entre anseios e ternuras. Enquanto Amélia acariciava a última carta que ele lhe enviou antes que se tornasse sua esposa, ela preocupava-se com a presença do pai em casa. Era para ele ter viajado ao interior, como de seu costume, para delegar as últimas ordenanças aos empregados e servos antes da grande viagem marcada para a segunda-feira, mas não foi assim. Maria Laura, tendo perguntado o porquê de ele não ir, ouviu do marido que já o fizera por escrito.

Amélia afligiu-se. Como seriam as coisas, dessa maneira?

Dr. Fabrício Nogueira


Dr. Martín

Fabrício, sem saber de nada disso, já tinha tudo pronto para a partida deles para a fazenda Guarumby, no dia seguinte ao casamento. Esterlina havia providenciado que todas suas coisas, inclusive as que estavam em Beira Linda fossem colocadas em baús. De lá, depois de uma semana de descanso, partiriam do porto de Paranaguá para a lua-de-mel que prometeu à Amélia. Ele sentia um pouco de preguiça ao pensar nisso. Tinha ânsia de começar logo com Amélia a nova vida nas terras que herdara da mãe. Porém, como prometera e queria lhe ver a alegria... Não externaria sob qualquer hipótese a pequena chateação que sentia. Ademais, além de tudo que andara a ver recentemente no Uruguai sobre novos negócios, poderia acrescer em conhecimento de vendas em Paris e Londres. Lisboa ficaria para outra ocasião ou modo, pois não queria arriscar um encontro com o pai de Amélia. Já nos portos poderia ir aos contatos de café de seu pai para saber se o que andava a planejar tinha força para se sustentar.

De noite ele andava ansioso pelo átrio principal do casarão. Esperava uma visita com angústia. Não adiantou a avó ordenar que ele parasse, alegando que ia gastar todo o chão. Ficou de cá para lá até que ouvisse som de cavalos em frente ao jardim.

Abriu a porta depressa e esperou até que, transpondo o portão que um escravo foi abrir, Martín entrasse. O amigo atravessou o átrio e tirou o chapéu depois de um cumprimento ligeiro.

— Acalma-te, masmulote! — ele riu-se, chamando-o pelo apelido de infância. — Está tudo pronto.

Fabrício liberou um profundo suspiro e olhou com simpatia para o amigo.

— Obrigado!

— E precisa agradecer? Se bem que... Se tiver algo que eu possa pedir...

— Fale!

— Podias alforriar àquele que me foi abrir a entrada!

Fabrício sorriu.

— Sabes que se dependesse de mim, estava por feito! Todavia, nem essa casa, e nada do que há nela pertence a outro que não meu pai, e o velho, tu já conheces bem!

Martín soltou uma imprecação suja e declarou:

— Ainda entro para a política só para confrontar teu pai, Fabrício.

Emílio era um aristocrata do café, um dos sustentáculos da aristocracia rural. Muito conservador e costumava dizer que só haveria querer de ouvir falar de abolição caso a coroa garantisse pelo tempo que necessitasse a se estabelecer para manter os lucros como iam à mão de obra de seus cafezais.

— Faça o que quiseres! — Fabrício disse impaciente, conduzindo o amigo até o escritório do pai. — Primeiro me conta: está mesmo tudo certo e arranjado para amanhã? A barca, o sacerdote, as horas... — O outro ia consentindo, no que se sentou na poltrona de couro que o amigo lhe mostrou. — E a casa? Está tudo certo?

— Tudo, Fabrício. Não é o palácio das mil e uma noites, mas acho que se pode ter uma noite de núpcias inesquecível em qualquer lugar, não? — e motejou como era de seu feitio.

A seguir, Martín disfarçou ante a expressão de advertência do melhor amigo, e aceitou o cálice que ele lhe oferecia. Fabrício não admitia mesmo qualquer brincadeira que envolvesse Amélia. O uísque desceu ardendo sua garganta, no que voltou a falar:

— Aluguei de uma velha conhecida de minha mãe. Sei que apenas passarão a noite, mas estará a disposição por três dias. Nunca se sabe... imprevistos, sempre acontecem.

— Muito bem refletido! Obrigado, meu amigo.

Um silêncio se estabeleceu, no que, um pouco intranquilo, Martín interrompeu:

— É... E lá se vai o primeiro de nós. Aliás, sempre pensei que seria Filipe. Mas, afinal, depois de tudo...

Fabrício tinha uma expressão de profundo pesar.

— Era nele mesmo que eu também pensava. Como me amarga lembrar de tudo que houve.

— Vosmecê e o Filipe sempre foram unidos. Ninguém sonharia que culminaria em ele dando a vida por ti, não é?...

— Ele teria feito isso por qualquer um de nós. Mas o azar levou a mim e a ele estarem juntos naquela noite maldita.

Martín viu a dor no rosto do amigo e sentiu culpa por seu ciúme. Era mesquinho isso. Sempre desejara ter com um ou com outro a afinidade que assistia os dois dividirem. Sempre desejara ter no sangue o fervor que os dois tinham, o que lhes dera coragem para irem lutar na Guerra do Paraguai. Entretanto, sua índole pacífica freava tudo isso. Ah... Se qualquer coisa estivesse ao seu alcance para trazer Filipe de volta e devolver a fisionomia em perfeição a Fabrício, ele o faria.

— Bem, resta a todos o agora. Espero que a D. Amélia e ti sejam muito felizes! Como te sentes?

— Ao que depender de mim, só haverá risos! — ele disse a sorrir. — Me sinto ansioso.

— Quem não estaria? Prestes a roubar a filha do Mascarenhas!

— Vai nos visitar na Guarumby, não vai?

— E eu perderia por te incomodar lá também? De algum modo tem que perdurar. Mais um que se vai... — ele lastimou. — Bem, até mesmo Mathias parte para uma temporada na Europa. A verdade é que só restarei eu mesmo no Rio de Janeiro.

— Ah! Acalma-te. Logo te aparece um propósito! Quem sabe achas uma boa dona para casar, bota um escritório... — Ante a expressão de bonachão do amigo, acrescentou sardônico: — Ou não! Continuas a incomodar as moças, e levar essa tua vida de poeta, sombra e águas frescas até que te tornes um solteirão desavergonhado!

Martín sorriu.

— Não me parece mal! Mas, me diga: que há de fazeres se o Dr. Mascarenhas reclama a filha? Isso pode dar em guerra, Fabrício!

— Ele não o fará! Eu duvido. Além de Amélia ser maior de idade, com a influência de meu pai os proclamas "correram" em silêncio. Ademais, ele se exporia assim? Seria vergonhoso.

— Bem! Pensamos que conhecemos as pessoas. A verdade é que elas sempre nos surpreendem. De qualquer modo vosmecê está certo. Não há outro jeito se não roubar a moça, não é? Isso me soa tão...

Ambos sorriram. Todos sabiam a paixão que Martín tinha por literatura e teatro.

— Shakespeare, eu sei. Mas, não me venha com tuas histórias, por que aqui não haverá desditas de venenos e desencontros...

Martín sorriu e, erguendo-se falou qualquer coisa sobre já ser tarde, que todos teriam de levantar muito cedo no dia seguinte e isso era definitivamente algo que ele não era acostumado, por isso havia de ir pra casa dormir logo.

Fabrício deu um abraço de gratidão no velho amigo, fingindo que acreditava. Sabia que ele ia parar em alguma taverna mal afamada para se divertir. Apenas surpreendeu-se pelos amigos não terem tramado para ele uma festa de despedida tanto a seu estado de solteiro como para sua literal partida do Rio de Janeiro.

Na manhã seguinte Amélia despertou com uma sensação de irrealidade. Não podia ser verdade que era o dia de seu casamento! A mãe a estava chamando, contando que já dera solução no marido.

— E o que fizeram com ele? — Amélia perguntou preocupada. Ficara até tarde lembrando-se do modo sempre carinhoso dele tratá-la, nas brincadeiras que faziam juntos quando ela era uma menina, e no modo rude e incabível que ele agira a respeito de Fabrício.

— Que isso! Não fiz nada! — Maria Laura riu. Parecia tão empolgada com a função e a travessura de enganar o marido que suas faces até mesmo tinham cor outra vez.

— Então...

— Tua avó... Mandou recado que quer vê-lo depois do almoço, para conversa séria. Vai dar um chá para ele que vai deixar ele num sono...

— Como assim, mamãe? — Amélia parecia muito preocupada.

— Acalma-te! Sabes bem o sono pesado que ele tem na sesta. Ela apenas vai intensificar isso com um chá de alface, que só ela teria o dom de obrigá-lo. — Ao revelar o plano, Maria Laura riu. — Então poderemos partir para Paquetá sem receios. Quando ele acordar e voltar para casa, não vai entender nada... Porque não terá ninguém em casa!

Amélia riu, embora ainda continuasse nervosa.

— Quando der por si... Já foi! — ela disse enfática.

— Obrigada, mamãe — Amélia suspirou. Estava aliviada. — Só tenho a agradecer a todos! Que têm se empenhado em me ajudar...

— Que isso! Agradeça sendo feliz! Apenas isso!

— Eu nunca poderia sozinha... Porém... Ah, não consigo não ficar nervosa com esses engodos, minha mãe.

— Não é apenas isso, filha, que te põe nervosa. É o dia do casamento! É o teu casamento! É normal. Vai passar. Apenas, tente aproveitar muito a tudo, pois passa muito rápido, isso eu garanto. Bem, agora... — Maria Laura ergueu-se e foi arreganhar as cortinas.

O sol deslumbrou o aposento cobrindo o leito de Amélia com as lindas luzes da manhã e, de um pulo, a donzela saiu da cama. Tinha de se arrumar. Abriu a porta do quarto e chamou Tenória. Antes, porém, tinha algo a fazer. Lavou o rosto rapidamente na água que atirou do jarro para a fina bacia de porcelana e enfiou-se num robe e, tendo descido a escadaria e chegado ao térreo da habitação, foi até a mesa da sala de banquete, onde o pai tomava seu café e lia jornal. Pediu para abraçá-lo.

— Ora, minha filha... — ele levantou-se e atendeu de pronto seu pedido. — Que é que eu te nego? Se tiver alguma coisa, só o faço pela tua felicidade.

Crisóstomo ficou muito emocionado. Estreitou o talhe delicado de Amélia entre seus braços forçudos com gentileza afetuosa e pensou que estava certo quando julgou que mais dia ou menos dia ela superaria a tal paixão. E esse dia enfim tinha chegado. Como era bom voltar às boas com ela. Era sempre assim... Não foi com ele mesmo, um dia? O futuro prometia brilhantes perspectivas para ela. Era uma Bernardes Mascarenhas, afinal. E suas aspirações brasileiras a respeito de partidos matrimoniais haviam se tornado pequenas demais. O melhor partido do império era pouco para merecer a joia que tão acuradamente lapidou. Queria ir às circunvizinhanças de el-Rey achar casamento para ela. E era isso que faria. Amélia se tornaria a estrela da sociedade lisboeta na próxima primavera.

— Te amo, meu pai! — ouviu-a dizer.

— Eu também, meu anjo! E é por isso que cuido de ti. Ainda vais ser muito feliz, pode acreditar.

Amélia sabia que ambos pensavam em coisas diferentes, mas que era bem assim que seria apesar de tudo.

— Amém, meu pai. Amém...

E dito isso, foi para o quarto, no que encontrou Tenória no caminho, que lhe fitou maliciosa pelo que estava prestes a acontecer.

— Vamos, Bázinha. Preciso muito de tuas ajudas para me vestir!

Fabrício, por sua vez, apressava a avó.

— Até parece que a senhora é a noiva, nagymama!

— Menino exagerado! — ela bradou por detrás da porta do quarto. — Que te adianta estar, três horas antes, pronto? Vão todos se encontrar na estação das barcas a uma em ponto. E ainda não bateu as dez! Ah, veja lá se não me amofina que quero aprumar tudo com tranquilidade!

E assim começava o dia para ambos, Fabrício e Amélia, embora estivessem mesmo secretamente interessados em saber era como haveria de terminar.


***

Momentos emocionantes estão prestes a chegar.

Que surpresas o casamento de Amélia e Fabrício guardam?

Leia em breve no próximo capítulo de Graciosa. <3 


bjos Graciosos, Aline NT

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