A SIDE: SELENA // Under Your...

By Ella_Rocha

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"Quando ele se aproximou da cama, Selena acreditou estar sonhado ainda. E esse era um de seus sonhos escarlat... More

~ First things first ~
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By Ella_Rocha

Com um grito seco preso na boca, Selena acordou desnorteada. O corpo gelado, as unhas perfurando o colchão macio com tanta brutalidade.

Ao abrir os olhos, pensou que estivesse de volta no pesadelo. O mundo inteiro estava escuro e silencioso.

Os músculos estavam tão tensos que precisou testar o aperto em sua mão, movendo devagar cada dedo para liberar o colchão e os lençóis.

Agora, totalmente desperta, não conseguia capturar os contornos do pesadelo que fizera seu corpo gelar, o motivo do seu terror cru. Havia sido um daqueles sonhos em que o mundo inteiro parecia ser consumido pelo fogo? Ou um dos pesadelos em que era perseguida por cães do tamanho de árvores, brutais e persistentes?

Era bom que não se lembrasse, assim as imagens não poderiam assombrá-la durante as manhãs.

O sangue dela, contudo, permanecia gelado de pavor. Um diferente pavor.

Que horas eram?

Selena sentou-se na cama. Marcus continuava dormindo ao seu lado, com o rosto enterrado entre os travesseiros.

Ela sentiu-se como se fosse sorrir, mas sua barriga estava vazia, a garganta seca e os membros duros. Sequer havia planejado dormir outra noite na casa dele, muito menos se lembrava como havia caído no sono.

Em vez de sorrir, mordeu os lábios.

Ergueu-se depressa da cama e vasculhou o quarto em busca da sua mochila. Chutou sapatos para o lado e bateu numa cadeira, machucando a sua cintura. Xingou-se baixinho, esperando encontrar Marcus acordado com o mesmo mal humor que mordiscava seus braços e pernas. Mas ele sequer se moveu.

Sem paciência, ligou a luz do quarto.

Óbvio, ela havia deixado a sua mochila caída perto da porta.

Apagou a luz novamente. Não precisava de outra pessoa irritada agora.

Ela meteu a mão e revirou os objetos, retirou uma pequena necessaire e o seu celular. Tentou ligar o celular, mas a tela dele permaneceu escura. Deveria ter descarregado. Quanto tempo ela já havia passado nessa casa? Duas noites?

Sentia-se estúpida por ter ficado, por ter medo de algo que não se lembrava, por ter esquecido novamente de tomar os seus remédios. Debaixo da raiva vermelha, ela se lembrava bem demais do olhar reprovador de sua mãe e das palavras amargas dela. "Você vai morrer".

Não adiantava pensar em memórias amargas.

Puxou para fora da mochila o seu carregador. Junto veio o fone de ouvido todo enrolado nele.

Selena suspirou. Mesmo que houvesse tido uma longa noite de sono, sentia-se como se tivesse corrido uma maratona.

Após ter colocado o celular para carregar, pegou a sua necessaire e trancou-se no banheiro. Ligou todas as luzes, antes de jogar os itens da pequena bolsa sobre o balcão da pia. Tubos vazios caíras; em cima deles, uma caixa pequena e um pacote com dezenas de agulhas, um frasco com álcool em gel e lencinhos. Ela havia usado sua última porção de insulina no dia anterior.

Que horas eram?

Precisava de outra dose, mas não havia nenhuma.

Mentalmente, xingou-se de todo nome terrível que podia imaginar.

Já havia sido irresponsável e esquecido seus medicamentos outras vezes, vezes o bastante para saber quanto tempo seu corpo aguentaria antes de começar a ficar perigosamente doente. Ela sobreviveria algumas horas a mais. Não havia razão para pânico, tentou dizer a si mesma.

Retirou o glicossímetro da caixa. Limpou as mãos duas vezes antes de pegar uma das agulhas. Respirou fundo mais duas vezes, então pressionou a agulha no seu dedo até o sangue vazar. Derramou a gotícula numa parte do aparelho. Um momento depois, números apareceram. Ela os memorizou, organizou seus objetos e jogou a agulha ensaguentada no lixo.

Saiu do banheiro na ponta dos pés, esperando não fazer mais barulho. Guardou a necessaire na sua mochila e andou até o outro lado do quarto, onde deixara seu celular em cima de uma cadeira. Ela o pegou e sentou-se, exalando o ar nervosamente.

O celular levou todo um minuto para ligar, durante o qual Selena mordiscou suas unhas. Quando a tela finalmente iluminou-se, Selena xingou alto. Eram doze horas e trinta e seis minutos.

Como havia dormido tanto?

A primeira coisa que fez foi anotar o valor da glicose em seu sangue. Em seguida, ligou a internet do celular e começou a vasculhar suas mensagens.

Hannah havia escrito: A aula vai começar em dez minutos! Cadê você?

Até Hélio havia deixado mensagens: Você está bem? Encontrei Hannah hoje e ela contou que você perdeu a aula.

O mais surpreendente, contudo, foi encontrar mensagens de Lizandra.

O familiar nó em seu estômago ficou ainda mais apertado. Selena mordeu o lábio e encarou o nome da amiga por um longo minuto antes de abrir as suas mensagens.

L: VOCÊ NÃO PODE SIMPLESMENTE ME CONTAR QUE O SEU NAMORADO É UM VAMPIRO E DESAPARECER NA CASA DELE!!!!!!!!!

L: Devo ligar para a polícia? Merda. Eu sinceramente estou começando a acreditar no que você disse.

L: Você perdeu uma aula? Estou chocada.

L: Ainda está com o Marcus? Pelo amor de deus, acabem com essa lua de mel, você tem responsabilidades, garota!

Selena riu baixinho e escreveu:

S: Avise a todos que estou viva!

S: Marcus estava doente. Eu estive cuidado dele...

S: Ele não é meu namorado!

Lizandra respondeu mais rápido do que Selena esperava.

L: Eu estou em casa, 120% pronta para conversar.

L: Ele não é o seu namorado, tá -.- Mas ele é um vampiro?

S: Não.

L: Você estava me zoando esse tempo todo? Eu deveria saber!

S: Não, juro. Eu disse a verdade. Só que é mais complicado que isso.

S: Eu vou para casa já, depois que o Marcus acordar. Aí a gente conversa ;)

L: Você vem almoçar aqui? Eu deixo essa casa por alguns dias e tem um total de zero comidas.

S: Não seja exagerada. Deve ter algum iogurte vencido que eu pretendia comer depois.

L: Isso não é exatamente saudável, mocinha hehe

S: Me faça alguma comidinha gostosa então, sua gostosa hahaha

L: :P

Selena riu mais alto dessa vez.

Marcus agitou-se, virando-se na cama. Ela o assistiu piscar os olhos preguiçosamente e abrir a boca para bocejar.

S: Até logo!

L: Espera...

Selena desligou o celular

– Está se sentindo melhor?

Marcus sentou-se na cama e a olhou de lado.

– Você dormiu aí?

– É mais perto do meu celular – brincou ela.

Ela o observou erguer-se da cama. Ele deu dois passos pequenos até bater nos joelhos dela, apoiou-se com as mãos na cadeira e abaixou-se para o que Selena temia ser um beijo. Ela o afastou rapidamente.

As cortinas cobriam as janelas, de forma que o quarto inteiro estava imerso num eterno breu. Mas Marcus estava próximo o bastante para ela ver o fogo nos olhos dele.

– Nada de beijos até você lavar essa boca com água sanitária! Você vomitou coisas que eu prefiro nunca saber o que era – murmurou Selena.

Ela quase o viu revirar os olhos.

O homem virou-se, sem dizer outra palavra, e atravessou o quarto em rápidas passadas. Minutos depois, retornou com a boca cheia de pasta.

– Está feliz agora?

Selena continuou rindo quando ele virou-se para cuspir na pia.

Por um momento, ela sentia-se leve, leviana. Por isso, o chamou.

Marcus virou o rosto de lado, o suficiente para indicar que estava a escutando.

Algo a dizia que ele poderia escutá-lo mesmo através de um grande salão abarrotado com intermináveis conversações.

Ela pensou, então, o que deveria o contar? A verdade: incapaz de guardar um segredo incompreensível, ela compartilhou com Lizandra a realidade da natureza de Marcus e de sua família?

Não entendia como as coisas no mundo dele funcionavam, mas nos livros em que havia lido, nunca era permitido revelar tais verdades. Seria um crime? Selena teria colocado sua família em perigo? Marcus ficaria chateado? Irado?

Ele havia a confiado o suficiente.

Ela deveria o contar que Lizandra faria parte do segredo deles também. Contudo, não conseguiu encontrar a coragem para fazê-lo.

Marcus virou-se, enxugando o rosto numa toalha. Ele a encarou, esperando.

Havia outra urgência que Selena precisa o contar, uma verdade inteira com implicações para a relação deles.

– Você sabe que eu terei que voltar para o Brasil eventualmente – murmurou ela, com os olhos virados para onde havia deixado o celular cair entre as pernas. – Quando as aulas desse semestre terminarem, na verdade. Talvez eu consiga permissão para ficar um mês a mais... Em outubro, no máximo, eu terei que voltar.

Marcus inclinou-se na parede, de braços cruzados, com um pequeno sorriso de lado.

– Vai me convidar para conhecer sua casa?

Em outra circunstância, Selena teria rido. Contudo, ela havia acordado de um péssimo sonho com o sabor ácido de medo na boca.

Casa... Havia anos desde que ela saíra de casa e nunca mais voltara. O contato que mantinha com os seus pais eram curtas e breves mensagens trocadas em datas comemorativas.

Ela não sabia quando voltaria para casa, e o pensamento de retornar a fazia querer coçar sua pele até arrancá-la.

Marcus deve ter percebido que havia algo de errado quando o silêncio dela se arrastou.

– Selena? – Ele caminhou até onde ela estava encolhida na cadeira e abaixou-se, sentando-se nos joelhos. – Eu estava brincando.

Ele tocou o joelho dela, e ela quase pulou para fora da cadeira.

Não era culpa dele. O silêncio dela, a sensação de falta de ar que esmagava os pulmões dela.

Ela se sentiu irritada novamente, por se sentir pequena e insignificante e esquecida.

A sua terapeuta sempre a motivava a falar sobre o seu passado, sobre o tempo em que passara com a mãe numa cidade grande o bastante para que ela se perdesse em meio a outros prazeres.

Selena não queria falar agora.

Ela beijou Marcus com uma fúria escaldante, mas ele se afastou do aperto dela em seus ombros e continuou a encarando como se ela fosse um quebra-cabeças que ele não sabia se queria resolver.

– Você me acusa por não ser capaz de compartilhar do meu passado contigo, mas você também se esconde como uma covarde, Selena.

Ela soltou o ar, com raiva. Como ele se atrevia! Ele não sabia nada sobre ela! Sobre o que ela tivera que encarar! Todos os anos... Mendigando por pequenas demonstrações de afeto...

Ela decidiu que poderia jogar todas as suas palavras venenosas (e ela crescera cheia de veneno) para ele ou poderia respirar fundo e tentar ser aberta... Compreensiva... Sua terapeuta chamava de comunicação não violenta quando pedia para que ela imaginasse que contava ao pai tudo o que não conseguira dizer antes.

– Família é sempre um assunto complicado – murmurou ela, de braços cruzados, respirando pesado.

– Não é apenas sua família – Marcus tentou capturar os olhos dela, mas Selena se ergueu da cadeira para abrir as janelas. Ela queria luz para aquecer seus ossos gelados, mas o céu de Berlim estava cinza, o sol escondido atrás de densas nuvens. Ela tremeu. – Você nunca fala sobre a sua vida antes de vir parar aqui. Não de amigos, não de amantes.

– Por que eu deveria? – Deu de ombros. – É passado.

– Eu gostaria de saber de onde uma mulher como você saiu.

Selena riu sem humor. As costas permaneciam viradas para o homem.

Marcus colocou-se sobre os pés, mas não fez movimento para segui-la em sua reclusão.

– E que tipo de mulher sou eu? – Havia uma sutil nota de humor na voz dela. Ela desejava que ele fisgasse a isca e a deixasse em paz com os seus fantasmas.

– Uma mulher que não tem medo de sangrar pelo que deseja. – Selena virou-se de lado, subitamente interessada. – Uma mulher que dorme com um demônio e que se pergunta que tipo de magia ainda resta no mundo. Eu a disse uma vez, e direi novamente, você não é gentil, Selena. Mas você gosta de fingir que poderia ser.

– Você anda deduzindo isso tudo de mim há quanto tempo? – Selena sorriu, sem armaduras, sem segredos.

– Eu pensei que poderia deduzir você. Mas você continuou mudando e se tornando mais... Complicada.

– É isso o que o mantém interessado em mim?

– Quando você desvelar todos os meus segredos, você também se cansará, e eu não serei mais do que uma pacata lembrança.

– Você nunca será uma pacata lembrança. – Selena tinha os olhos virados para outros tempos, para outro lugar que ele não podia ver. Uma longa faixa de terra molhada, árvores altas que escondiam o sol, o cheiro de chuva, o capim pinicando seus pés descalços.

Marcus sentou-se na cama e a encarou por um longo minuto, durante o qual Selena desejou que ele a beijasse somente para não precisar mais falar. Toda aquela conversa estava a deixando cansada.

O barulho do silêncio cresceu, até tornar-se intolerável. Selena puxou o ar com força.

– De onde uma mulher como eu vem, você se pergunta... – Selena puxou os cabelos para longe do rosto e virou-se para encarar a cidade cinzenta. – Não é óbvio? – Suspirou. – Meu pai nunca passou tempo o suficiente em casa, e minha mãe nunca tentou preencher a sua ausência. "Ele precisa trabalhar", era o que ela dizia. Ou "Ele tem assuntos mais importantes para lidar" – Assuntos mais importantes do que a sua filha, era o que ela não dizia, mas as palavras permaneciam na ausência dele. – E quando ele estava em casa... Meus pais nunca foram afetuosos, não do tipo que abraça seus filhos ou brinca com eles. Meu pai apenas se importava com minha mãe e seu irmão. E eu os odiava por ter tanto poder sobre ele. – Selena pausou, ao sentir o gosto metálico de sangue na boca. Ela havia mordido a pele da bochecha sem perceber. – Eu tentei ser a filha perfeita para que ele se orgulhasse de mim... Eu estudava por horas e horas para ter as melhores notas, eu ganhei medalhas para ele. Mas o único interesse que ele parecia ter em mim era quando me assistia lutando... Então eu fiz todas essas aulas, de judô, de muay thai, até mesmo jiu jitsu. Eu odiava cada minuto, mas ele ia me assistir lutar às vezes... Eu nunca conquistei a faixa roxa em judô... Naquele dia, eu estava chorando, e ele veio falar comigo, e eu pensei... – Selena podia sentir o gosto de suas lágrimas azedadas. – Ele apenas disse "Se fosse uma luta de verdade, você estaria morta. Uma filha minha nunca falharia".

Selena podia ver o seu reflexo borrado no vidro, ela parecia como uma menina prestes a explodir em lágrimas.

– Minha mãe era mais gentil, do jeito dela. Mas ela queria controlar cada aspecto da minha vida, cada hora do meu dia era preenchido com tarefas que ela esperava que eu dominasse... Ela sempre me ligava se eu passasse um minuto do horário em que eu deveria voltar para casa e fazia todo um questionário sobre onde eu estava, com quem eu estava, o que estava fazendo. Ela sempre me fazia garantir que eu faria o mesmo caminho de volta para casa. Ela pagava um cara para me deixar e me pegar em todos os lugares. E ela sempre estava lá, na mesma hora, me acordando para me fazer tomar os remédios para diabetes. Eu sei que ela se preocupava comigo... Mas eu me sentia sempre presa na minha própria pele.

Selena respirou várias vezes, depressa, então com mais calma. Suas unhas estavam fincadas em seus braços, num abraço apertado.

– É por isso que eu nunca falo sobre o passado... Ele é uma merda!

– Você ainda fala com seus pais?

– Quando eu preciso.

Quando Selena finalmente virou-se para encará-lo, Marcus não tinha o olhar de pena que ela imaginava. Ele sequer a estava olhando diretamente, ele tinha os olhos virados para a paisagem de pedra e cimento lá fora.

– Quando eu era mais jovem... Dez anos ou algo assim – Selena começou. – Eu gostava de imaginar que eles havia me adotado... Não, que eles haviam me roubado da minha real família. E os meus pais de verdades eram reis, fadas, seres com grande magia e riqueza. Um dia, eles voltariam para me salvar, ou eu descobriria grandes poderes e fugiria. Eu acho que é por isso que eu gosto de química... O meu único superpoder é ser boa em estudar.

Marcus permaneceu em silêncio. Ele parecia perdido em pensamentos.

E Selena estava fervendo de impaciência.

– É isso, eu lhe contei meu infeliz passado! Você não vai dizer nada?

Ele encontrou os olhos dela, enfim.

– O que você quer que eu lhe diga?

– Eu não sei, Marcus. – Ela não estava chorando, mas sentia como se cada célula no seu corpo estivesse tremendo com soluços incontidos. – Eu estou cansada e irritada, e eu preciso ir embora. Eu esqueci meus remédios, minha insulina acabou e Lizandra está esperando por mim.

Selena virou-se para pegar sua mochila e correr para fora daquele quarto abafado. A fuga teria sido triunfante, caso não estivesse vestida numa blusa longa o bastante para bater em seus joelhos e um calção frouxo que balançava entre suas pernas. Ela bufou irritada. Havia lavado suas roupas e deixado-as dentro da máquina, provavelmente úmidas e amassadas.

Estava tão irritada consigo, com seus esquecimentos, com suas insuficiências, que nem percebeu a aproximação do homem.

Marcus enlaçou os braços na cintura dela e a trouxe para o seu peite.

– Você não precisa ir embora agora – sussurrou ele no canto do ouvido dela.

– Eu preciso tomar uns comprimidos. E a insulina que mantenho na bolsa acabou.

– Nós podemos comprar. Se você estiver com preguiça, eu ligo para a farmácia e mando entregar aqui.

Selena girou no aperto dele e escondeu o seu rosto na curva do pescoço de Marcus. Respirou o cheiro dele, esperando que a agitação no seu corpo apaziguasse.

– Não, eu não posso. Eu tomo os mesmos medicamentos desde pequena, minha mãe até os envia para cá.

Marcus afastou-se, confuso.

– Diabetes não é uma dessas coisas que outras milhares de pessoas têm?

– Dessas coisas? – Selena sorriu de lado. – Eu sei que eu posso entrar numa farmácia e comprar o que preciso, ok?! Mas... Minha mãe dizia que eu sempre tinha que tomar os mesmos, que eles são feitos especialmente para mim – deu de ombros. – É só um hábito.

Marcus não parecia ter acreditado. Ele tinha aquela expressão de quem pretendia dizer algo, mas engolia as palavras com raiva.

– Você pode me deixar lá em casa? Minhas roupas ainda estão molhadas.

Ele assentiu, calado.

– Pegue um dos meus casacos.


//

Selena subiu as escadas do prédio, porque ainda estava agitada demais para esperar pelo elevador.

Deveria ter dito a Marcus sobre Lizandra... Sobre tudo o que pretendia contar para a amiga. Quanto mais adiasse esse momento, mais nervosa ficaria.

Mas ele também deveria ter dito algo... Talvez, fosse pior se ele tivesse dito que sentia pena da forma como ela crescera, numa família cheia de vazios. Ela não queria a culpa dele nem o seu ressentimento – já tinha o bastante para os dois. O que ela queria dele, contudo, não sabia. Queria que ele a abraçasse? Não, era idiota. Não precisava de um abraço de consolo por todos os abraços que não ganhara do pai. Também não precisava de palavras que a incentivassem a olhar para a situação de uma forma mais brilhante.

Não sabia o que precisava dele, mas era algo que fazia suas veias latejarem, o sangue correr depressa, o coração sufocar no peito.

Ela queria chorar e queria gritar.

Lizandra estava cantarolando na cozinha, quando chegou em casa.

Era estranho que chamasse aquele pequeno apartamento que dividiam há pouco mais de um ano de casa.

– Oi – murmurou Selena. Não sabia o que mais deveria falar. Talvez um abraço de desculpas? Não!

Lizandra virou-se com um pano jogado sobre o ombro e uma espátula na mão.

– Oi. Eu estava terminando de cozinhar o frango.

– Eu vou tomar um banho rapidinho.

Selena começou a andar, mas Lizandra riu atrás dela.

– Eu pensei que você tinha dito que estava cuidando – fez aspas no ar com a mão livre – do seu namorado.

– Ele vomitou em mim.

Lizandra franziu o cenho.

– Nem me diga o que ele vomitou.

– Eu duvido que conseguirei comer almôndegas com molho de tomate novamente.

– Ok, eu não precisava dessa imagem... Vá tomar um banho.

Selena fechou a porta do banheiro atrás de si.

A sua imagem no espelho perdeu o sorriso e murchou. A mulher que lhe encarava parecia cansada e tristonha.

Respirou devagar, com as mãos apoiadas na pia. Sentia-se fria, com o peso do corpo ameaçando desmoroná-la. Os cantos da visão estavam se apagando.

A última vez em que esquecera de tomar seus remédios havia demorado quase dois dias inteiros para que começasse a sentir os prenúncios da doença.

Qual foi a última em que injetara insulina?

Os últimos dias eram um embaralhado de eventos em suas lembranças: ali ela estava dobrando-se sobre um vômito escarlate, ali ela estava correndo através da cidade, e ali ela estava encarando uma paisagem sem cor.

Ela estivera tão investida em se preocupar com a saúde de Marcus que esquecera a sua própria.

Você vai morrer. Podia escutar sua mãe dizendo de novo e de novo e de novo.

Ela dobrou-se no chão, escancarou a tampa da privada e tossiu até vomitar.

Lizandra bateu na porta.

– Está bem?

– Pegue os meus remédios – murmurou rouca.

– Precisa de insulina?

– Também... E os remédios, está dentro de um estojo do lado da minha cama.

Quando Lizandra retornou, abriu a porta sem cerimônia e adentrou ao cômodo.

Selena estava sentada com as costas coladas na parede, suando frio.

– Você quer que eu a leve para o hospital?

– Não precisa... Mas preciso de ajuda.

Lizandra acenou, séria.

– Me diga o que fazer.

Trinta minutos depois, Selena ainda estava sentada no chão, respirando forte, lutando para não vomitar o resto dos seus intestinos.

– Tem certeza de que vai ficar bem?

Selena apenas balançou a cabeça numa curta afirmação.

Lizandra continuava a encará-la com a mesma ansiedade, esperando por qualquer sinal de perigo.

– Ele bebeu do seu sangue? – Lizandra falou subitamente.

Selena tentou rir, mas terminou tossindo e engolindo o ácido da sua bile.

– Não. Só esqueci de tomar os meus remédios na hora certa.

– Tem certeza?

– Sim, Liz.

– Certo... Quer ajuda para se levantar? Você quer descansar agora ou comer?

– Comer.

– Ok, vamos.

Lizandra a ajudou a se erguer. Enquanto Selena andava, a mulher estava logo atrás acompanhando os seus passos com olhos atentos.

– Eu a sirvo, sente aí. – Lizandra começou a puxar os pratos e talheres do balcão.

Selena a observou colocando mais arroz do que seria humanamente comer no seu prato.

– Coma. Você ainda está pálida.


//

Lizandra estava lavando a louça particularmente devagar, quando começou a falar.

– Então, seu namorado bebe... Sangue... Humano?

Selena tomou o último gole do seu suco.

– Sim.

– Apenas de humanos?

– Que eu saiba, sim. Eu não consigo imaginar Marcus caçando lebres para saciar a sua fome – Selena riu ao pensar na cena. Definitivamente não!

Finalmente, os remédios tinham começado a fazer efeito, e ela sentia-se quase satisfeita consigo.

– Nem eu. Ele não é um vampiro?

– Ele diz que é de uma... Espécie? Raça? Eu preciso avaliar qual o nome mais adequado – murmurou. – Enfim, ele diz que descende de Caim, de alguma forma. Aqueles como ele são chamados de Filhos de Caim, pelo que entendi.

Lizandra soltou uma exclamação.

– Pomposo.

– Eu diria arrogante – pontuou Selena. – Como Caim, ele aparentemente é imortal. E se alimenta de sangue.

– Ok... Anjos e demônios são reais?

– Bem... Marcus diz que não acredita em anjos, pode acreditar? Ele gosta demais de ler romances alemães do século XIX e Dostoiévski. Mas eu apostaria que eles existem, anjos e demônios e deuses... Você pode imaginar?!

– Na verdade, não. – Lizandra enxugou as mãos num pano e virou-se, confusa e intrigada. – Você acha que eu queimarei no inferno para sempre por ser lésbica?

– Com certeza não. O amor nunca será errado, amiga.

Lizandra acenou, mas seu olhar estava longe.

– Se estamos considerando que existem demônios, precisamos considerar que existe um inferno.

– Um inferno para pessoas realmente cruéis como aquelas que querem impor os seus modos de vida a outras pessoas. E para pessoas que torturam e matam outras só por elas serem diferentes.

– Você acha que é como eles dizem? Chamas eternas? Sofrimento e corpos desfigurados?

– Eu não acredito no inferno. É só um conceito inventado para assustar pessoas e impedi-las de fazer o que querem.

– Eu sei, eu sei. – Lizandra agitou as mãos no ar, como se demandasse calma da sua amiga. – Mas estamos fazendo um exercício filosófico aqui. Se existem demônios, eles são de algum lugar terrível, não é?

– Não necessariamente. Talvez anjos e demônios sejam um mesmo... – Que palavra poderia usar para o impossível? – Povo – decidiu-se. – E como nós, eles são capazes de bondade e de maldade, e são repletos de contradições e camadas e complexidades. E nós damos nomes diferentes porque, sinceramente, vivemos dominados por séculos de uma religião extremamente polarizante. Ou algo é extremamente bom ou é extremamente malévolo. Talvez anjos são povos de outros mundos, alienígenas que decidimos chamar por esse nome porque foi o modo que encontramos de compreender o nosso contato com eles. Quem sabe?

Lizandra abraçou-se e espremeu os lábios.

Selena a esperou, com as mãos ainda enroladas no seu copo vazio.

– Quão velho é ele?

– Marcus? Quando foi a revolução francesa? Mil setecentos e setenta e nove?

– Oitenta e nove.

– Então ele deve ter mais de duzentos e quarenta anos, algo assim.

– E ele nunca viu um anjo?

– Segundo ele, não. Mas novamente, talvez anjos não sejam nada como nós pensamos. Nada de asas, nada de beleza celestial, nada de cegar aqueles que ousam encará-los.

– E bruxas?

– Oh! Elas são reais! Ele disse que há bruxas aqui em Berlim. Não é legal? – Talvez tivesse tomado uma dose grande demais de insulina, porque sentia-se agitada e sorridente. – Coloque mais suco para mim, por favor.

Lizandra fez uma careta, mas derramou o resto do suco no copo da amiga. Selena despejou quatro colheres cheias de açúcar dentro. Precisava daquilo para equilibrar seu organismo.

– Você deveria estar ingerindo tanto açúcar assim? – Lizandra a olhou desconfiada, pronta para agir a qualquer sinal de alerta.

– Um refrigerante seria mais ideal, na verdade. – Selena tomou um grande gole, o açúcar desceu raspando na sua garganta. Ela fez uma careta, estava tão horrivelmente doce. – Eu estou me sentindo um pouco eufórica. Isso costuma acontecer quando há pouco "açúcar" – frisou – no sangue. Quando isso aconteceu, o corpo libera uma alta "carga" de adrenalina. Às vezes, eu me sinto agitada. Às vezes, eu sinto como se fosse ter um ataque de pânico de tão ansiosa que fico.

– Você vai ficar bem? Tem certeza que não quer ir no médico?

– Eu ficarei bem, Liz.

– Eu li uma vez que uma pessoa pode ter overdose de insulina.

– Pode acontecer... – A voz da sua mãe, cruel e ansiosa, estava repercutindo na sua mente. Você vai... – Quando isso estiver para acontecer, nós saberemos. Overdose não é algo pela qual uma pessoa passa de forma silenciosa. Há convulsões, desmaio, desorientação, vômito.

– Você acabou de vomitar!

– Aquilo foi diferente. Não se preocupe, ok, eu cresci lidando com isso, eu sei como cuidar de mim. – Lizandra parecia querer continuar a discussão. Por isso, Selena voltou para o assunto que discutiam minutos antes. – Então, sobre bruxas. Marcus disse que elas podem ler meu futuro, mas quando pedi para que me levasse a uma, ele disse que não era uma boa ideia. Algo como bruxas serem perigosas ou algo assim. Tudo o que eu queria, na verdade, era achar alguma magia para que o meu tcc aparecesse magicamente pronto na minha mesa.

Lizandra suspirou, descruzou os braços e sentou-se na cadeira à frente da amiga.

– Você acha que elas são bonitas? Eu sempre imaginei belas bruxas lésbicas com uma família de gatos.

Selena voltou a rir.

– Eu aposto que elas odeiam homens.

– Este é o espírito, uma irmandade de mulheres que correm peladas e adoram o sagrado feminino. Eu gostaria delas. O que mais você tem para me contar?

– Você está aceitando tudo isso rápido demais.

– Eu tive um bom tempo para julgar se você estava louca e decidi dar o benefício da dúvida. Você acha que Hogwarts é real?

– Não.

– Hm... Eu não gostaria das minhas bruxas lésbicas lá mesmo. Parece demasiadamente limpo e inofensivo.

– Inofensivo?

– Com certeza. Mas, me diga, como é ser mordida?

– Bom – Selena riu. Ainda estava eufórica. Esperava que Liz não notasse a sua respiração ligeira, a oscilação constante do peite e o tremor nas mãos.

– Eu sei, mas eu estou falando de quando ele arranca o sangue de você.

– Ele não arranca o sangue de mim.

– Como são as presas dele? E onde ele as esconde? Eu não lembro de ter visto... Você acha que é como as presas dos vampiros em Entrevista com um Vampiro?

– Eu não lembro desse filme...

Lizandra tirou o celular do bolso.

– Eu vou pegar fotos.

Enquanto Lizandra revirava a internet em busca de referências, Selena tentava se lembrar se alguma já estivera sã o bastante para assistir ao processo de Marcus perfurar a sua pele para beber do seu sangue. Quando ele o fizera, ela sempre estivera perdida no sexo com ele para se importar com tais detalhes triviais. E ela nunca antes tivera a curiosidade de analisar suas presas de perto – se é que ele de fato as tinha. Esse era um assunto que ela teria que debater com ele depois. Agora, ela precisava desesperadamente de uma bebida com quantidades absurdas de açúcar.


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Eu estou nesse processo de reescrever e modificar os próximos capítulos, para manter a consistência da história. Então, eu vou soltar os novos capítulos uma vez a cada duas semanas. Não quero me apressar para soltar tudo logo, porque pode ser que eu queira mudar algo nos últimos capítulos, de forme que eu precise introduzir alguns elementos nos capítulos anteriores. Para não ter bagunça, vamos com calma.

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