Tire tudo de dentro
e jogue fora.
Porque eu juro, pela última vez,
eu não vou confiar em mim mesmo com você
Linkin Park - From the Inside
Deitado em sua cama, cercado pela escuridão absoluta, ele reflete sobre os acontecimentos daquele dia.
A Audição teria ocorrido como qualquer outra, não fosse o fato de haver um cadáver lhe fazendo companhia. Que grande ironia, o único homem além dele que podia entrar no Templo, acabando morto e abandonado lá mesmo, sem ao mínimo uma cerimônia fúnebre, depois de ter dedicado sua vida para servir ao ser mais grandioso do Universo, e que supostamente poderia fazer tudo...
Assim que se aproximou das portas, o cheiro já podia ser percebido. Não forte o suficiente para que qualquer Auxiliador ou qualquer um do povo notasse, mas forte o suficiente para que em breve não pudesse mais ser escondido.
O horror que sentiu quando as portas se fecharam e finalmente se encontrou sozinho com o corpo do homem que ele mesmo matara, que costumava acreditar que fosse seu pai poucos dias antes, era insuportável.
Ele precisou se apoiar numa parede e respirar fundo para manter a calma, mas, com cada respiração, o cheiro se tornava mais pútrido. Teria que tirar aquele corpo de lá, antes que o odor asqueroso vazasse pelas portas, antes que ele próprio não suportasse mais a ideia sem vomitar sobre a túnica.
Felizmente, pôde se controlar, e discursou como de costume, incitando mais ainda a revolta na população ao solicitar uma nova oferenda, exigida pela Voz para perdoar os crimes cometidos contra a pessoa santa do antigo Sacerdote.
Chegava a ser engraçado e cruel, punir o povo pelo crime que ele havia cometido sozinho. Se Vero estivesse vivo para vê-lo, o que diria sobre isso? O que diria se soubesse que o filho de sua carne havia se tornado um monstro tirano?
Lúcio muda de posição na cama, incapaz de dormir.
A cada dia que se passa, sua situação se torna pior.
Varreduras eram realizadas pela cidade, deixando os Surdos e Dantálion em perigo. O corpo apodrecia, exigindo que fosse movido com urgência. E, para piorar, já não suportava mais a presença de Anton no Palácio depois de saber tudo que ele havia feito. A pressão em sua mente já atrapalhava a coerência de seus pensamentos.
Como mover o corpo? Impossível enquanto as investigações são realizadas. Qualquer lugar para onde o levasse seria descoberto imediatamente. Além do mais, não poderia ter contato com os Surdos, e sozinho não seria capaz de carregar o fardo pesado. Envolver outra pessoa, principalmente Dantálion, seria um risco alto demais. Mas que escolha lhe restava?
Fecha os olhos, tentando afastar as preocupações para dormir.
A garoa fina que cai lá fora começa a engrossar, os pingos constantes acelerando e abafando todo o som exterior. Talvez tenha um pouco de paz...
Mal havia adormecido, um movimento estranho o faz abrir os olhos novamente.
Com espanto, observa o feixe de luz que entra pela janela, movendo-se de um lado a outro do quarto. Sem entender, ele o encara por mais algum tempo, notando um padrão de movimento que se repete. A luz desenha círculos em sua parede, padrões familiares. O feixe então desaparece, e torna a voltar, piscando freneticamente.
Lúcio hesita por um momento, assustado. Aquela luz não era proveniente de nenhuma vela ou lamparina, era como mágica. Lembrava-o, na verdade...
Ele desperta num pulo, colocando o rosto para fora da janela, apertando os olhos para enxergar através da chuva e da escuridão enquanto as gotas geladas castigam sua pele.
A luz reacende, atingindo em cheio seus olhos.
Reprimindo um grito de dor, move o rosto para o lado, piscando para livrar-se da luminosidade excessiva até conseguir focalizar e seguir o feixe de luz, encontrando sua fonte num ponto próximo da floresta.
Vestido apenas em sua roupa de dormir, salta pela janela. Na pressa, nem mesmo coloca sapatos, arrependendo-se assim que pisa sobre as folhas molhadas e escorregadias que machucam seus pés e os enchem de lama. Ignorando o frio, corre na direção de onde vem a luz da lanterna.
Chega arfando ao ponto aproximado. Seu corpo treme, as roupas encharcadas, os pés sujos até as canelas de barro, pedaços de grama e galhos úmidos grudados por toda parte. No vazio da noite hostil, sua consciência finalmente alcança o ritmo do corpo.
Foi uma ideia estúpida ter saído assim, sem precaução alguma, sem a adaga em mãos, para entrar sozinho numa floresta escura e chuvosa, seguindo uma luz qualquer que nem sabia se era real ou apenas fruto de sua imaginação.
E se aquela luz não fosse de Dantálion, mas sim de outra pessoa? Alguém da guarda o enganando? Ou ainda algum Surdo, armando uma emboscada para pegá-lo desprevenido? A esta altura, qualquer coisa de terrível poderia acontecer, e já havia passado da hora de deixar de ser ingênuo.
Sua visão periférica capta uma figura se movendo entre as árvores.
Seu coração dispara com adrenalina, buscando automaticamente a adaga em sua cintura. Nada. Por que é que tinha que esquecer a maldita adaga?
Seus olhos se arregalam ao reconhecer à sua frente Dantálion, também vestido de maneira precária, com o rosto baixo.
Ele também está encharcado e sujo, mas algo em sua fisionomia não está certo, tornando-o quase irreconhecível.
Ele parece uma assombração, com os cabelos molhados caindo sobre o rosto, evitando seu olhar.
Ainda à distância, o garoto ergue timidamente o rosto, revelando dois olhos vermelhos.
Lágrimas escorrem deles, confundindo-se com as gotas de chuva.
- O que aconteceu? – sussurra Lúcio, o mais baixo que pode, mal sendo ouvido sob o som da tempestade.
Dantálion não responde, caminhando vagarosamente em sua direção, suas pernas se arrastando insensivelmente, como se não mais as controlasse.
Lúcio hesita, considerando virar as costas e voltar ao Palácio.
Numa explosão súbita de movimento, Dantálion dispara sobre ele, jogando-se de joelhos à sua frente, espirrando lama quando atinge o chão com força.
Soluçando incontrolavelmente, ele prende os braços ao redor das canelas de Lúcio, afundando o rosto entre seus pés, sem se importar com o barro e a sujeira.
- Me perdoe! – grita, sem erguer o rosto do chão – Por favor, me perdoe pelo que vou te obrigar a fazer!
Mais apavorado ainda, Lúcio tenta erguê-lo, inutilmente. Dantálion continua ajoelhado, seu corpo dobrando em convulsões violentas.
- Me diga o que aconteceu! Agora!
O rosto do garoto se ergue em sua direção.
Seus olhos estão inchados, a face suja de lama e restos de plantas, uma expressão de terror e desespero contorcendo seus lábios em um sorriso pavoroso.
- Eu não posso te dizer! – grita, sua voz estilhaçando no ar.
- Por que não?!
- Porque não posso te deixar pensar! – seu corpo se contrai em um novo espasmo – Se eu te deixar pensar, você vai tomar a decisão errada!
- Dantálion, pare com isto! Saia do chão!
O garoto obedece, colocando-se de pé e controlando as emoções.
Ele está tão abatido que Lúcio tem a impressão de olhar para o fundo de um abismo.
- Me perdoe por ter te acordado, eu não deveria. Eu só... Precisava te ver mais uma vez. Por favor, Lúcio, fique comigo esta noite!
Os dois trocam um longo olhar.
- Está chovendo... E está muito frio aqui fora, Dantálion...
- Por favor! – suplica o garoto – Eu nunca te pedi nada! Faça isso por mim!
Lúcio não consegue negar o pedido, o estado deplorável do outro o enche de pena e tristeza.
Afinal, ele é seu melhor amigo, ou qualquer coisa do tipo. Como poderia abandoná-lo no único momento em que pedia sua ajuda, seu amparo? Teria que ser um monstro sem coração para voltar ao quarto e dormir enquanto Dantálion vaga sozinho pela floresta, castigado pela chuva e pelo frio, e aflito por algum sentimento realmente intenso.
Como se a Voz resolvesse existir e ajudá-los, o céu relaxa sua ira, transformando a tempestade violenta em uma leve garoa mais uma vez.
- Tudo bem, - suspira Lúcio – Não podemos ir até sua casa por causa das revistas, vamos ao ponto de encontro, então. Você precisa se lavar e se aquecer. Vai acabar ficando doente.
Dantálion sorri, um dos primeiros sorrisos sinceros que Lúcio vê em seus lábios.
- Obrigado, você não tem ideia de como isso é importante para mim.