Olhos Vazios ✔ [EM REVISÃO]

Od Akane_nozomi

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🏆ROMANCE VENCEDOR DO PRÊMIO WATTYS 2020 NA CATEGORIA FANTASIA!🏆 ATENÇÃO: GATILHO DE SUICÍDIO! Li Ka Hua esc... Viac

AVISO (SÉRIO, LEIA ISSO)
Olhos Vazios
1. O mistério da garota nova
2. Mantendo-se à Margem
3. Pistas Confusas
4. O Garoto Insistente
5. O Guardião da Borboleta
6. Não queira morrer
7. Tentando Me Aproximar
8. Chénmò
9. Eu conheço Janet Morgan?
10. O Peso do Meu Fardo
11. Apoiado por Li Tong Dao
12. O Sabor Amargo da Traição
13. Culpado sem Crime
14. Não Posso Desistir de Você!
15. O Poema
16. Se hoje fosse seu último dia?
17. Reação Inesperada
18. O Triste Senhor Sojiru
19. Primeiro Encontro
20. É o meu fim, afinal?
21. Revelação
22. De volta aonde pertenço
23. A Bruxa do Destino
24. O Teste de Li Mei Lin
25. Eu queria te odiar, Li Ka Hua...
26. Eu preciso morrer
27. Incompleto
28. Destruída - I
28. Levada - II
Capítulo Especial
30. Cativa, mas não rendida
31. Um inimigo próximo
32. A Última Visão
33. Advertência Final
34. Prenúncio do Fim
Capítulo Especial
35. A Borboleta Branca
36. Amor Como Cerejeira
AVISO IMPORTANTE (OU NEM TANTO)
37. A vida segue...
38. A Descendente de Han Liang
39. Reencontro
Epílogo - Olhos Vazios
Uma Ressalva
Capítulo Extra: Palavras não ditas
Peça sua cena!
RETIRADA

29. Assombrado

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Od Akane_nozomi


"Caçando você

Posso sentir seu cheiro vivo

Seu coração pulsando na minha cabeça"

    —  Haunted, Evanescence  

Aidan

Pensei que me sentiria melhor depois de falar com ela e explicar meus sentimentos em relação ao seu dom e meu afastamento, mas a verdade é que me senti pior, como se tivesse cometido um crime. Apesar de Li Ka Hua ter se mantido firme seus olhos lhe traíam, me surpreendia o fato de ela não ter ficado nervosa ao ponto de começar a falar chinês e deixar-me perdido na conversa, talvez aquilo fosse a pior parte, sua impassibilidade, o silêncio, a calma. Poder-se-ia dizer que ela era elegante em todas as formas, pois mesmo quando a situação era de estresse extremo sua postura não se alterava, ela mantinha uma calma inabalável digna de inveja para qualquer um.

Alguns minutos depois que ela saiu correndo quando fiz menção em me aproximar, fui atrás dela, mas não consegui alcança-la. Era até um pouco vergonhoso admitir que uma garota era mais rápida que eu, mas era verdade, vi quando ela atravessou o hall e saiu do instituto. Aproximei-me da guarita montada no portão principal na esperança que o porteiro me dissesse que ela havia pego um táxi e estava em segurança.

— A garota que saiu agora, viu se ela foi em algum veículo para casa?

— Não, ela apenas me mandou abrir o portão e saiu correndo pela estrada. — Explicou ele. — Pensei em impedi-la, mas a senhorita Thames havia me informado previamente a permitir a saída e entrada dela a qualquer momento.

— Ela saiu correndo pela estrada sozinha? — Repeti o que ele disse como um idiota sentindo-me culpado por aquilo.

— Ahn... Sim... — Respondeu o pobre homem, hesitante.

— O visitante que veio mais cedo esta manhã já saiu do prédio?

— Não. Além dela ninguém mais saiu, senhor Berkshire.

— Obrigado.

Olhei para estrada através das barras de ferro do portão, mas não havia qualquer sinal dela. Inquieto, corri de volta para o prédio do instituto em busca de Li Tong Dao, naquele momento ele era a única pessoa a quem eu poderia recorrer, ainda que soubesse não ter coragem de me acusar como o causador da fuga de sua filha. A reunião ainda estava acontecendo na sala da senhorita Thames, a secretária dela vetou completamente minha entrada e o desespero começou a me assolar.



Desde o início eu sabia as implicações, quando abrisse aquelas portas e aparecesse diante de todo mundo estaria quebrando as regras da escola, mas não me importava com nada daquilo, seria incapaz de me perdoar se algo acontecesse com Li Ka Hua, mesmo sabendo que ela era capaz de cuidar bem de si mesma, não era invencível. A secretária ergueu-se ao me ver indo em direção à porta, mas fui mais rápido e empurrei as pesadas portas de madeira ganhando a atenção dos vinte alunos em volta da mesa de reuniões da senhorita Thames, as luzes apagadas e um grande telão compartilhava os rostos de pessoas distintas do conselho estudantil do Haimei, todos se voltaram para mim.

— Senhor Li... — Comecei. — Li Ka Hua...

Não precisei dizer mais que isso. Rapidamente ele se pôs de pé e caminhou na minha direção, a expressão séria e contorcida de preocupação ao ouvir a menção da filha. As mãos firmes seguraram meus ombros.

— O que aconteceu, onde ela está? — Inquiriu.

— O porteiro disse que ela saiu correndo sozinha pela estrada... — Balbuciei.

— Quanto tempo faz isso?

Tentei calcular mesmo apesar da pressão absurda sobre mim.

— Uns dez minutos, quinze no máximo.

Ele saiu em disparada da sala sem dar satisfações para ninguém, eu o segui através do corredor, atravessando o hall e entrei no carro mesmo sem pedir permissão. Ele, porém, não protestou tão absorto que estava com a segurança da própria filha, apesar da aparência inabalável podia imaginar que por dentro Li Tong Dao estava em caos. Ele acelerou em direção aos portões que já estavam abertos quando alcançou a metade do caminho, percorremos a estrada em velocidade média olhando para todos os lados a procura dela, mas não havia qualquer sinal de Li Ka Hua, usei o telefone dele para tentar entrar em contato com ela, mas era inútil, ela não estava atendendo.

— Isso não é típico dela. — Refletiu ele. — Alguma coisa aconteceu.

Permaneci em silêncio, não me atrevia a dizer que provavelmente fora eu o culpado daquela atitude impensada. Por dentro rezava que ela estivesse bem, tentando me convencer de que não havia qualquer perigo que ela não pudesse enfrentar. Um ponto a nosso favor é que a estrada era retilínea, a menos que Li Ka Hua tivesse entrado no bosque que ladeava a pista não havia bifurcações para onde ela poderia ter ido. Quando nos afastamos consideravelmente do Haimei sem qualquer pista do paradeiro dela, Li Tong Dao parou o carro e bateu no volante, frustrado. Saí do carro após um tempo e olhei em volta, o rastro de poeira deixado pelo carro ia abaixando lentamente, não havia nada em volta a não ser as árvores parcialmente desfolhadas pelo frio inconstante e as ervas daninhas que cresciam perto delas.

Caminhei um pouco tentando ligar para ela novamente, entenderia se ela não quisesse me atender — por isso pegara o telefone do pai dela sob a desculpa de ter esquecido o meu na escola —, mas o fato de não estar atendendo a ligação do pai me deixava mais inquieto, pois sabia o quanto ela era apegada a ele. Tentei ligar novamente quando um som me chamou atenção enquanto a chamada era realizada, uma música. Tirei o aparelho da orelha e comecei a me guiar pela melodia agitada quando, alguns metros dali, no chão, o aparelho de Li Ka Hua vibrava.

— S-Senhor Li... — Disse, incialmente em um tom baixo demais para que ele ouvisse e, quando percebi, gritei em seguida. — Senhor Li!

Li Tong Dao saiu do carro as pressas e correu na minha direção parando quando viu o celular da filha no chão, enquanto a chamada era recebida uma foto dele abraçando-a aparecia no visor. Lentamente, ele abaixou-se diante do aparelho e uma lágrima pingou sobre a foto, a mão trêmula de Li Tong Dao segurou o aparelho que parou de chamar quando consegui reagir e desligar, aquela era a assustadora prova de que algo ruim havia acontecido com Li Ka Hua.



— Isso não pode estar acontecendo!

Li Tong Dao passou as mãos pelos cabelos, frustrado. Na sala, dois detetives e vários policiais aguardavam ansiosos por um telefone. Me perguntava como Li Ka Hua, a garota que derrubara cinco homens com o dobro do seu tamanho, fora sequestrada. Não fazia sentido. Mas o pior de imaginar é que fora eu o responsável por aquilo, se não a tivesse procurado, se não tivesse dito nada, ela não teria saído correndo da escola.

Só naquele momento tive consciência de que minhas palavras a feriram mais do que qualquer outro comportamento. Janet estava certa, eu só me dava conta dos meus erros quando era tarde demais para consertar.

— Não temos qualquer pista que possa nos ajudar a chegar a ela, senhor Li. — Disse um dos detetives. — Tudo que podemos fazer agora é ter a esperança de que eles entrem em contato para que possamos rastrear a ligação.

— O senhor tem alguma ideia de possíveis suspeitos que possam estar por trás disso? — O outro questionou. — Sua filha já sofreu algum atentado de sequestro antes? Isso não me parece algo aleatório.

— Penso do mesmo modo... — Respondeu Li Tong Dao. — Ka Hua não é uma garota comum, ela sabe se defender muito bem... venha comigo, vou passar alguns nomes que talvez levem a algum lugar.

Os dois saíram da sala e desapareceram por um corredor deixando-me sozinho com a mãe de Li Ka Hua. Amélie Li era uma mulher muito bonita e dela a filha herdara pouco, sendo mais parecida com o pai. Naquele momento ela parecia cansada, a expressão abatida e os olhos inchados pelas lágrimas, as mãos trêmulas seguravam um lenço azul de linho e o celular da filha.

— Senhora Li... — arrisquei, um pouco sem jeito — eu sinto muito.

— Isso não é culpa sua, querido. — Respondeu ela, delicadamente. Senti-me ainda pior. — Só não entendo como isso foi acontecer, por que ela agiu de modo tão imprudente? Eu queria entender...

— Tenho certeza que ela voltará segura para casa. — Disse desejando desesperadamente que fosse verdade.

— Eu quero acreditar nisso também, Aidan... — ela fez uma pausa. — Apesar da sua posição isso nunca havia acontecido antes. Nós sempre tivemos o cuidado de mantê-la longe das lentes, Tong Dao processou vários jornais, usou de muita influência da sua família para que fotos dela nunca fossem publicadas justamente para evitar esse tipo de coisa... e agora... — Ela se interrompeu. — Acho melhor você voltar para o Instituto, Aidan. Amanhã tem aula.

— Pedirei uma dispensa das aulas vespertinas e virei ver se tem novidades. Colocarei todos os meus recursos à disposição, senhora Li.

— Agradeço muito, querido. Pedirei ao nosso motorista que leve você.

No caminho para o Haimei me pus a pensar no que Amélie Li dissera sobre a filha, não tive coragem de dizer que fora eu o causador da sua ação imprudente, mas chegaria o momento que a verdade viria a tona e sabia que era melhor se fosse pelas minhas próprias palavras, de modo que decidi contar a verdade a Li Tong Dao no dia seguinte. Ponderei sobre o sequestro de Li Ka Hua durante longo tempo mesmo depois que o motorista me deixou dentro do instituto e partiu, era fato que os pais dela eram meticulosos quanto a isso, em todas as matérias especulativas que havia lido sobre a herdeira do império chinês não havia fotos nítidas de Li Ka Hua, agora sabia porque.

Então como ela foi levada? Não fazia sentido. Era preciso que os sequestradores a conhecessem para poder leva-la e isso só tornava tudo mais assustador. Comecei a me sentir ainda mais responsável por aquilo, cada segundo só piorava se alguma coisa acontecesse com ela nunca estaria livre da culpa enquanto vivesse. Peguei o telefone e disquei alguns números rapidamente.

— Kirk?

Sim, senhor Berkshire, algo que precise? — A voz rouca soou do outro lado da linha.

— Há sim, Li Ka Hua, a garota que lhe falei meses antes, ela desapareceu. Quero que, discretamente, contrate quantos agentes forem necessários para localizá-la. Comece fazendo uma investigação com as pessoas menos obvias. — Ordenei.

Quem seriam, senhor?

— A família dela na China.

Era uma hipótese absurda, eu sabia, mas pelo que Amélie Li me contara, provavelmente Li Tong Dao estava esquecendo que sua família também poderia ser uma inimiga uma vez que sua filha era a principal sucessora da enorme rede de hotéis. Ela me dissera uma vez sobre a rejeição da avó por ser filha de uma estrangeira, não me surpreenderia que uma pessoa capaz de rejeitar uma neta por algo tão ridículo como esse fosse capaz de sequestra-la para benefício próprio como obrigar o filho a tomar a frente dos negócios da família, coisa que — como ela também me contara — Li Tong Dao não estava interessado em fazer.

Entendido, senhor, entrarei em contato o mais breve possível.

— Obrigado, Kirk.

Coloquei o telefone de lado e fui para a pequena sala de estudos do apartamento, não ia conseguir dormir de todo modo então aproveitei para fazer uma pesquisa sobre a família de Li Ka Hua mesmo sabendo que não encontraria nada de muito substancial, razão pela qual mandara Kirk fazer o trabalho, precisaria de dados privados, coisas que poucas pessoas ou ninguém sabia. Segundo informava nos sites a respeito da família Li sua descendência iniciou-se no final da dinastia Qing sendo Li Fei — nome de casada, nascida Li Shuxian — a matriarca e esposa de Xuantong¹, o último imperador da China imperial.

Não havia nada muito aprofundado sobre ela além de que morrera jovem (aos 26 anos) após dar a luz a seu filho Li Yi Qiu. Foi uma das famílias de maior influência na instituição da República da China mantendo-se como uma dos maiores clãs tradicionais do país. Com o passar do tempo, mais ou menos no início dos anos 80, a família largou as relações estreitas com a política e passou a se dedicar à aplicação de capital no ramo de turismo e hotelaria fundando o hotel cinco estrelas mais conceituado do país e, anos depois, da Ásia. Li Tong Dao era o mais velho de quatro irmãos e, portanto, o herdeiro direto de sucessão do império dos seus ancestrais.

Mesmo sendo filho único, cresci no meio de famílias de alto nível e conhecia de perto o que era a briga por poder, quando seu próprio sangue se virava contra você e até mesmo seu pai poderia se tornar seu inimigo em nome da presidência de uma empresa ou da herança de um parente falecido. Apesar de todos os benefícios, dinheiro ainda era um dos maiores males da humanidade.



Meu pescoço doía muito e quando abri os olhos percebi que havia dormido debruçado sobre a mesa. Minhas costas deram um estalo quando me estiquei sentindo os músculos dormentes. Do lado de fora o despertador gritava anunciando a hora de levantar para os preparativos da prova que eu teria logo mais e para qual não tinha estudado nada absorto, para variar, em Li Ka Hua e sua família cheia de segredos. Era certo que eu falharia na prova e seria posto de volta na sala 2.

Tomei banho com a esperança de que a água quente relaxasse meu corpo e me deixasse mais desperto, tentaria ler alguma coisa no caminho até a sala, embora soubesse que era praticamente impossível conseguir a média, principalmente depois de ter apagado na cadeira e cochilado menos de três horas. Tudo que tinha na cabeça eram os últimos anos da dinastia Qing que não ia cair na prova. Todavia, a prova era uma das minhas últimas preocupações, naquele dia contaria a verdade sobre a fuga de Li Ka Hua a seu pai e, obviamente, receberia sua fúria. Para isso certamente eu não estava pronto.

A escola não foi responsabilizada pelo sequestro dela, uma vez que acontecera fora das dependências do instituto e que Li Ka Hua tinha passe livre para fora ao contrário dos demais alunos que precisavam de permissão. Sabia que, se Li Tong Dao quisesse alguém a quem culpar essa pessoa era eu e em breve sua vontade seria satisfeita. Como não recebi nenhuma espécie de mensagem, imaginei que dentro daquelas 48 horas não havia tido qualquer sinal dela e de seus raptores.

— Aidan! — A voz de Tony me fez parar no meio do caminho entre os dormitórios e o prédio principal. Ele se aproximou carregando um fichário e com uma expressão levemente séria.

— Olá, Tony. — Cumprimentei-o.

— Eu soube de Li Ka Hua, sinto muito. — A sinceridade dele me fazia perceber que talvez Tony tivesse evoluído mais do que eu.

— Não mais do que eu sinto, cara... — Suspirei. — Em parte a culpa disso é minha.

— O que quer dizer? — Ele lançou-me um olhar confuso.

Contei por alto o que aconteceu.

— Qual é, Aidan, não é como se você tivesse dito a garota pra sair como uma louca pela estrada.

— Você não entenderia. — Meneei a cabeça. — Não sabe como ela estava se sentindo, não sabe as coisas que eu disse. De todo modo, os pais dela estão arrasados e não há qualquer notícia dela ou pedido de resgate.

Isso sim é estranho. — Refletiu ele. — Normalmente as negociações acontecem nas primeiras vinte e quatro horas.

Como eu, Tony já havia sido sequestrado algumas vezes. Vezes o suficiente para poder fazer um esquema de como tudo funcionava.

— Não parece ser coisa de bandidos comuns. — Observei voltando a andar. — E não é para menos, nada envolvendo aquela garota é comum.

— Se eu puder ajudar de algum modo não deixe de me dizer, está bem? — Ofereceu.

— Agradeço de coração, Tony. — Anuí sinceramente agradecido. — Tudo que podemos fazer agora é esperar um milagre.

Nos separamos para nossas respectivas salas e me sentia como um zumbi, completamente alheio à qualquer vontade, seguindo mecanicamente como que movido por uma energia involuntária do meu corpo. Em minha mente, questionava qual seria a próxima desgraça que se abateria sobre nossas cabeças, tudo parecia estar acontecendo simultaneamente para nos pôr loucos e mesmo que tentasse ser o mais forte possível sentia-me enfraquecer lentamente.

Enquanto os alunos da classe faziam a prova compenetrados eu só conseguia me pegar olhando a carteira vazia de Li Ka Hua, visualizar seu rosto ovalado e olhos redondos de um cinza perfeito e hipnotizante, o sorriso meigo em seus lábios e o nariz atrevido. O modo como sua voz ficava levemente mais grave quando ela falava Chinês e o toque suave das suas mãos longas e macias que passavam toda a aula transcrevendo o mesmo poema desenfreadamente.

— Notei que você passa a aula toda escrevendo. — Comentei em um dos nossos encontros no terraço. — Posso perguntar o que é?

— Um poema. — Explicou ela. — Chama-se Adeus à Meng Haoran, de um poeta chinês chamado Li Bai. Quando o escrevo me sinto um pouco melhor, me acalma.

— Você se sente nervosa na sala? — Quis saber, curioso.

— Apesar de estar relativamente acostumada com a atenção das pessoas nas escolas que já frequentei, não deixa de ser desconfortável. — Respondeu ela. — Aqui chega a ser um pouco pior.

— Então, você escreve esse poema para se acalmar.

— Quando era criança, na China, meu pai costumava ler poesias para mim antes de dormir. Algumas crianças crescem ouvindo contos de fadas, eu cresci ouvindo poemas, a musicalidade dos versos me ajudava a não ter pesadelos, me dava um plano de fundo com que sonhar. — Contou ela, o olhar fixado no céu. — Sempre que me entristecia por alguma razão ou acordava assustada com um pesadelo, ele lia esse poema para mim como uma maneira de me lembrar de tristeza, mas, sobretudo de esperança. Esse era um dos seus favoritos e, sempre que o ouvia na voz dele era como ouvir uma canção muito antiga, me enchia de uma paz melancólica e me ajudava a encarar as coisas de maneira mais otimista.

— Senhor Berkshire?

A voz do coordenador de prova me trouxe de volta à realidade, nenhum dos demais alunos olhou em minha direção, porém não ajudava a me sentir menos exposto.

— Algum problema? — Questionou ele. — Notei que o senhor está há um tempo olhando para o nada. Já se passaram sete minutos de prova o que lhe deixa com o tempo reduzido para responder as 100 questões.

— Desculpe. — Respondi, envergonhado, voltando minha atenção para a prova.

Tendo em vista as circunstâncias não tive problema em conseguir a dispensa das aulas vespertinas com a senhorita Thames, claro, sob a promessa de que cumpriria com o prazo dos trabalhos extras e ainda estudaria para as provas do dia seguinte. Fiquei ainda cerca de vinte minutos no meu quarto andando de um lado para outro na tentativa frustrada de conseguir coragem para o que faria a seguir, outra coisa que havia aprendido com Li Ka Hua e no instante que me lembrei disso ri de mim mesmo, aquela garota estava me assombrando, não importava o momento que eu estivesse passando, sua imagem sempre estava lá para me lembrar que eu era um grande idiota.

— Sabe como é frustrante o fato de parecer que você nunca erra? — Ri baixinho voltando a morder meu sanduíche de pasta de amendoim.

— Quem disse que eu não erro? — Questionou ela, calmamente, colocando uma nova porção de arroz na boca com a ajuda dos pauzinhos. — Sou uma pessoa como qualquer outra, Aidan Berkshire, cometo erros e aprendo com eles. O problema não é cometer os erros, o problema é não saber aceita-los. Cometi muitos ao longo da vida, para alguns deles paguei um preço mais caro do que podia arcar, contudo, no momento que os aceitei, que aprendi com eles, que os assumi, fui capaz de me tornar mais consciente, de entender que há consequências para atos impensados e que eu teria que arcar com elas. Não é que o sábio não cometa erros, mas ele os encara de frente.

— Quando você fala toda filosófica desse jeito parece uma mulher de 60 anos. — Fiz uma careta. Ela não riu. — Qual seu maior erro até então?

— Deixar você se aproximar de mim. — Fez uma pausa. — Não sei se vou conseguir suportar as consequências disso...

Uma lágrima solitária percorreu meu rosto, pensar que ela tentara tantas vezes me avisar, silenciosamente, sobre o que estava acontecendo. Por que simplesmente não lhe dei ouvidos? Por que não li nas entrelinhas? Era culpa minha de fato tudo ter chegado até ali. Não fui capaz de assumir os meus erros. Convicto disso, deixei o quarto e segui para o portão principal depois de ligar para um táxi, eu devia aquilo a Li Ka Hua, pagar o preço pela minha estupidez era a última coisa que podia fazer por ela.



Fui recebido por Amélie Li com um sorriso fraco que não escondia sua tez opaca pelo pouco descanso e a aparência abatida. Ainda sem notícias de Li Ka Hua ou pedidos de resgate, um detetive ainda estava na sala ao lado de Li Tong Dao avaliando alguns papéis, a tensão na casa era evidente e quase palpável. Fiquei sentado imóvel por um longo tempo rejeitando, vez ou outra, as ofertas de Amélie Li em me fazer comer alguma coisa. A verdade é que estava reunindo forças para conversar com o pai de Li Ka Hua, quando ele estava sério daquela forma, o corpo másculo e imponente rígido pela tensão, se tornava muito intimidador como se, com um único movimento, pudesse me partir ao meio.

— Senhor Li... poderia falar com o senhor por um momento? — Pedi quase inaudível.

— Claro, Aidan. — Sua expressão suavizou quando ele me olhou. Poderia parecer impossível, mas apesar do nítido cansaço, Li Tong Dao ainda conseguia parecer jovem. — Vamos para o meu escritório.

Eu o segui pela sala até um corredor que ficava ao lado da porta de entrada. A casa de Li Ka Hua era muito espaçosa e projetada mais ou menos no que eu imaginava ser o estilo de casa asiática. Na entrada havia uma área para colocar os sapatos, com um degrau que levava a casa, nessa parte, com a cerâmica em um tom diferente de madeira, havia um enorme armário onde vários pares de sapato ficavam expostos. Uma jovem — imagino eu que fosse empregada — quando chegava alguém certificava-se de deixar os pares alinhados e com as pontas voltadas para o lado oposto do degrau ou seja, voltados para a saída.

A sala era ampla e com um jogo de sofás cor creme, um carpete combinando, o lustre do que eu imagino ser cristal era a coisa mais ostensiva ali, ao que parecia os Li prezavam pela simplicidade, havia uma enorme estante de livros com tantos títulos quanto possíveis, alguns, reparei, em Japonês/Chinês (eu realmente sou incapaz de diferenciar). Outro móvel, abaixo da televisão fixada na parede, tinha um aparelho de Blu-ray e um aparelho de som. No meio do jogo de sofás uma mesa de centro toda de vidro ostentava um singelo vasinho de flores artificiais e dois quadros pendurados de autores anônimos fechavam a decoração da sala. Havia também duas janelas nesse cômodo, uma do lado direito dava vista para a cidade (a casa dela ficava na cobertura de um prédio) a outra para um bairro nobre no lado leste da cidade.

Uma porta dupla levava à cozinha, mas nunca cheguei a entrar nesse cômodo, portanto não sei descrevê-lo. O corredor pelo qual passei seguindo Li Tong Dao tinha algumas fotos de uma Li Ka Hua pequena e sorridente em diferentes lugares que não reconheci, com exceção de um bairro inglês que visitara com meus pais em uma viagem de "férias". Havia apenas duas portas nesse corredor, a mais afastada levava ao escritório do pai de Ka Hua, era um ambiente amplo, mas não enorme. Uma mesa de mogno preta ficava na frente de um janelão com vista para a cidade, ao lado esquerdo da mesa, uma estante era ocupada por diversos livros, a maioria escrita em desenhos da língua deles, um conjunto de sofás em couro preto ficava no lado oposto dessa estante com uma pequena mesa de centro, havia também quadros minimalistas pendurados nas paredes e, nos fundos, um pequeno aparelho de som sobre um raque repleto de CDs cujos títulos fui incapaz de ver. Ele sentou no sofá me convidando para acompanha-lo, estava muito desconfortável com tudo aquilo, decidi que a melhor escolha seria ir direto ao ponto antes que perdesse toda a coragem.

— Não sei como dizer isso, senhor Li... — Fiz uma pausa breve. — A razão de Li Ka Hua ter saído dessa forma sou eu.

— O quê? — Ele me lançou um olhar confuso, sua expressão tornando-se tensa. — O que quer dizer com isso?

— Ela me contou a verdade antes de viajar para China, por uma carta... — Expliquei, um nervosismo estúpido formando lágrimas nos meus olhos, a culpa corroendo meu peito. — Eu só... não soube lidar com isso e hoje pedi para conversar com ela, explicar as razões pelas quais eu não podia ficar ao lado dela... eu só...

— Você fez o quê? — Ele se pôs de pé, deu a volta no sofá e se pôs atrás da mesa como se ela fosse impedi-lo de me matar. — REPRODUZA A MALDITA CONVERSA!

Sobressaltei-me pondo-me de pé também e dando um passo para trás na direção da porta, meu corpo inteiro tremia, havia imaginado diversas vezes a fúria daquele homem, mas nenhum pensamento podia se comparar com aquilo. Ele fechou os olhos por um instante como que recobrando a calma e rapidamente pus-me a balbuciar as malditas palavras que eu disse a filha dele.

Eu queria saber tudo sobre você... pensei que estava pronto para aceita-la não importando o que descobrisse. Durante esse tempo tive tantos pensamentos hipotéticos do que poderia estar acontecendo com você, mas eu acreditava que quando você estivesse pronta para me contar eu estaria pronto para apoiá-la... — Fiz uma pausa, agora, repetindo aquilo tudo mecanicamente, me dava conta de que fora cruel com ela enquanto pensava que estava sendo sincero — mas no fim não é como se você pretendesse me dizer a verdade, dizer que tem o dom de tirar a vida das pessoas que são importantes pra mim. Eu estava errado, Li Ka Hua... o que você pode fazer... o que você é... eu simplesmente não posso lidar com isso, sinto muito.

Ele não disse nada enquanto me ouvia falar, os olhos permaneceram fechados todo o tempo.

— Ela... ela não deu qualquer sinal de que estivesse magoada ou surpresa... parecia tão forte que...

— Forte? — Cortou-me ele, um riso sem humor escapando de seus lábios. — Faz alguma ideia de como você a feriu?! Você nem a conhece, garoto! Tem alguma noção do quanto ela acreditou em você? Do quanto todos nós acreditamos?!

— Eu sinto muito, senhor... — Foi o que consegui dizer mantendo a cabeça baixa.

— Sentir muito não vai trazê-la de volta! — Gritou ele me fazendo ter outro sobressalto. — não vai fazê-la passar sã e salva por aquela maldita porta!

Ele deu um soco na mesa, tão forte que fez com que as coisas que estavam mais próximas da beirada caíssem no chão com um baque surdo. Amélie Li irrompeu no escritório olhando a cena por um momento e pondo-se ao lado do marido, gentilmente tentando acalmá-lo.

— Tong Dao... — Sua voz baixa e suave evocou o nome dele como uma súplica.

— Percebe a gravidade disso?! — Ele olhava para mim, furioso. — Percebe o que você fez, Aidan?!

— Tong Dao, por favor...

Ele pareceu se acalmar quando a esposa segurou-lhe o braço carinhosamente. Lágrimas começaram a cair na mesa, ele deixou o corpo cair na cadeira e me senti ainda mais responsável por aquilo.

— Fique longe dela, entendeu?! — Advertiu ele. — Nunca mais se aproxime da minha filha! Saia daqui!

Virei-me rapidamente e atravessei o corredor, parei na entrada e calcei meus sapatos rapidamente saindo pela porta com o corpo trêmulo e as lágrimas ardendo nos olhos. Eu entendia a gravidade da situação, percebia o que havia feito. A partir daquele momento não era certo que Li Ka Hua voltasse pra casa. Viva.


¹Apesar de ser uma figura real na história da dinastia chinesa, o contexto histórico desse imperador foi livremente modificado para encaixar-se com a história. Na realidade ele não deixou descendentes, tampouco morou na cidade proibida.

Pokračovať v čítaní

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