Graciosa [Em Andamento♡]

By AlineNegosseki

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Graciosa é um romance épico em 2 tomos inspirado no conto clássico A Bela e a Fera e se passa no século XIX... More

Graciosa
Agradecimento, Dedicatória e Epígrafe
Primeira Parte - A Rosa Rebelde
Preâmbulo
Prólogo
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capítulo V
Capítulo VI
Capítulo VII
Capítulo VIII
Capítulo IX
Capítulo XI
Capítulo XII
Capítulo XIII
Capítulo XIV

Capítulo X

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By AlineNegosseki



X



"O amor antigo tem raízes fundas,

feitas de sofrimento e de beleza."

Carlos Drummond de Andrade



Era insuportável o passar das horas. Amélia pensava em cada uma delas no beijo afetuoso que Fabrício deixara em seus lábios, com tanta delicadeza e afeto que lhe parecia um único e doce gole de néctar que gotejara inesperadamente sobre seus lábios, mas que fora, infelizmente, impedida de tomá-lo pelo fugaz da ação.

E tinha tanta sede de fazê-lo! Um desejo não cônscio de embriagar dessa sensação, derreando-se com gula no sabor que tais sensações suspeitadas prometiam.

Não raro, descia à sala, e se demorava a fitar o pai que lia e fumava. Olhava longamente a figura larga do homem elegantemente aprumado em sua poltrona favorita, os cabelos grisalhos e a farta barba roçando no papel. Tinha vontade de lhe gritar loucuras. Aquele olhar grave que ele lhe atirava ora ou vez refreava seus ímpetos insurgentes. Precisava fazê-lo enxergar que não se pode semear, alimentar e trazer à existência tamanha paixão e depois esperar que a mesma desaparecesse num súbito, como milagrosamente.

Já fazia semanas que não falava com Fabrício!

Que faria não fossem as cartas que a cara Ana lhe trazia secretamente?

As apaixonadas palavras que ele lhe enviava era todo seu alento, para amainar a aflição constante do passar dos dias. Porque a vida impôs-lhe algo assim? Um amor quase imposto veio a se tornar um amor totalmente proibido! Sentia aflições só de lembrar-se da outra noite em que, penalizada por assistir na entrelinha dos dias sua angústia, no jantar a mãe tentou entrar ao assunto com o esposo. Primeiro, impaciente, Crisóstomo repeliu. Maria Laura insistiu. Mathias, sem muitos ânimos, interveio.

— É meu amigo, meu pai. O que lhe aconteceu não o tornou menos digno, em contrário: creio que ele merece maior honra e ainda mais, a honra é para nós que lhe conceda a mão de Amélia.

Os irmãos se entreolharam. Amélia até inspirou, cheia de esperanças. Endereçou-lhe uma piscada grácil em gratidão. Não desviava o olhar de lavanda em que havia se acendido um fogo da face do pai. Quase chegou a achar ali uma condescendência. Ledo engano.

Tudo que Crisóstomo fez foi levantar num repelão e, entre agastado e iracundo, atirar o guardanapo de linho em cima da mesa e retirar-se demonstrando claro toda sua zanga.

— Meu marido está irreconhecível — Maria Laura murmurou inconsolável.

Em sua mente passavam, refrescadas pela memória que insistia em trazer à carga, imagens dos risos, das conversas e carinhos do homem com o qual se casara. Gostava, sim, de discutir, e quantas vezes não o faziam por pura diversão! Contudo, em relação à Amélia, e tudo o mais que vinha acontecendo, ele se mostrava sempre severo e carrancudo.

— Nunca o vi assim! — observou Mathias erguendo-se para se retirar.

Amélia, inconformada, também levantou e subiu para o quarto que, aliás, era seu único recanto ultimamente. Ficava pensando na proposta de seu amado e na fraqueza da mãe. Pesando as duas situações.

Não tinha vontade de passear, não tinha vontade de comer, menos ainda de pintar. Apenas, vez por outra ia com Tenória ver o mar. Nada de pintá-lo. Apenas perder a vista na imensidão de seu azul, sedoso a vista na estiagem estabelecida, imaginando que ele chegava e lhe abraçava calorosamente, envolvendo-a com seus braços calorosos. Só tinha vontade de ficar repassando os momentos que dividira com Fabrício, ansiosa pelo dia que pudessem se encontrar outra vez. Quantas cartas iniciara e abandonara sem saber que lhe dizer. Quantos dias amanheceram, o sol saiu e ela pensava que o calor fluminense que descia sobre seu corpo, por através do cortinado vaporoso, era o calor do corpo dele a lhe abarcar numa carícia boa. Quantas noites anoiteceram e o coruscar das estrelas lhe doíam no espírito pela luz dos olhos escuros que lhe lembravam. Tantas vezes, na maioria do tempo, aliás, tinha muito medo que nunca ficassem juntos. Imaginava como seria se ele a consolasse. Se aqueles afetuosos olhos pretos garantissem que ficariam juntos, e aqueles braços sempre bem guardados dentro da casaca, que tão fortes ela imaginava, a embalassem, ritmadamente, qual o pêndulo do carrilhão antigo.

Todavia, não queria fugir... Isso era tão embaraçoso. Tão mesquinho e injusto!

"Amélia, eu enlouqueço e morro um pouco, a cada missiva que me entregam, e falas de tantos assuntos e, em tua querida grafia, não encontro minha resposta!"

Será que ele não compreendia o quanto ela amava também aos pais?

"Eu preciso ver-te!" — E ela podia sentir a ansiedade camuflada na grafia masculina.

Ainda bem que o pai viajara para a fazenda da família. Amélia aceitou encontrá-lo, sem receio que outra vez fossem fazer mexericos ao ciumento pai. Não lhe importava. Podia morrer por conta da cólera paterna, mas a saudade era tanta, era tamanha, que lhe punha a ponto de não conseguir pregar os olhos à noite. Seus sentimentos eram tantos, tão torturantes, que ela disse à Ana que era exatamente por isso que não queria amar. Não queria padecer os efeitos colaterais que amar causa! Não queria sofrer as ânsias que pode esse sentimento controverso da paixão desencadear.

Saiu uma manhã com Tenória para ir vê-lo no Passeio Público. Era arriscado vê-lo assim, diante dos olhos de todos. Fabrício, contudo, era cavalheiro demais para fazer diferente. O que Amélia não suspeitava era que ele a evitasse vê-la em reservado, pois não confiava no próprio controle, sempre mêmore da noite do baile, e receava desrespeitá-la.

Quando chegou lá, depois do encanto inicial do reencontro, no qual lutavam para não obedecerem aos ímpetos de atração mútua, Fabrício, entre embaraçado e impetuoso, persuadiu Amélia a acompanhá-lo até sua casa. Ela ficou demasiado surpreendida, mas ele garantia que sua avó queria muito vê-la.

— Ela tem muito carinho por ti, Amélia. Desde que nasceste. Quem pode compreender minha avó? E, agora, saber de nosso amor, dá à ela uma alegria que vosmecê não pode imaginar.

Ela lhe disse que só aceitava por ter a sempre amiga Ana por companhia. E escondeu muito bem a euforia que ir até à casa dele, desse modo sorrateiro, lhe causava.

Ana, dentro da carruagem dos Nogueiras, ficou a observar os laranjas furtivos do entardecer que tingiam o casal enamorado de um belíssimo tom antigo. Como era lindo ver o amor florescer!

Que olhares aqueles dois trocavam no trajeto até Botafogo! Ela sabia, em breve estaria a ponto de estourar tal paixão. Como a dela e de Filipe... Há tanto reprimida, depois interrompida, perdida no tempo, perdida no infortúnio. Ana, batalhando por não quedar-se chorosa, buscava olhar para fora. Como era difícil conter as lágrimas! Ela decidira não expressar mais sua dor em público. Ficaria apenas para alcova o derramar de sua saudade sem fim. Sua vida não tinha mais propósitos. Embora todos dissessem que o tempo curaria seu coração, que encontraria um bom homem, que se casaria, que teria muitos filhos, ela sabia, isso jamais aconteceria.

Só havia desejado filhos que viessem de Filipe.

Que dizer das tantas noites que Filipe, com seus marotos cabelos de mel esvoaçados pelo vento, e seu tom de voz sempre bem humorado, vinha lhe visitar, em sonhos que tanto a perturbavam depois que despertava?

Depois de fazer graça, como era de sua índole, de brincar com sua aparência desgrenhada do sono, de dizer que sentira sua falta, Filipe perguntava com ares temerosos:

— Vais me esquecer? Lembra-se da tua promessa? Nunca vais ser de outro, não é? Não me esqueça, Ana Gabriela...

Então o vapor etéreo fugia, desaparecia de seu sonho bom, e ela despertava aflita, saudosa.

Filipe...

E ia ler sua última carta. Mais uma vez...

— Me espere que irei encontrar-te em breve — dissera antes de partir para a Guerra da Tríplice Aliança

"Não posso esquecê-lo! E, embora doa tanto, é meu maior regozijo esse amor imortal. Esse amor que jamais me tirará o luto. Amor que a morte abortou e que há de continuar na eternidade. Desejo isso, algo assim para minha querida amiga Amélia. Pois, embora triste quando o amor se dá por interrompido, nada existe de mais verdadeiro que um amor assim."

Ana Gabriela Linhaes — quase — Monfort olhou para a amiga que a tempo em tempo trocava ardentes olhares com o senhor Nogueira. Suspirou discretamente, tentando imaginar se seria impossível para a querida amiga reprimir suas sensações quando o amor de ambos chegasse a um estágio em que palavras e olhares não fossem mais suficientes para a expressão da atração.

Ana sabia que seu corpo jamais poderia outra vez arder por ninguém. Havia-o também, com apaixonado abandono, entregado a Filipe. Ele, quase sem controle, mas um tanto prudente amou-a sem deflorá-la. Fazia com que ela ardesse e ficasse satisfeita sem, no entanto, comprometê-la. O que não perceberam é que se marca uma jovem de tantas maneiras, que estão além da consumação física... Jamais poderiam prever que os planos que tinham seriam interrompidos. Não houve tempo de tornar pelos pais de ambos tal amor possível.

Ana sentia que tivera tudo com Filipe, embora o tudo fosse apenas um início. Dolorosas lembranças de um prenúncio de sonho, que agora nada mais era além de pesadelo.

Nada, além dos eventuais afetos da família, lhe restava, se não lembranças maravilhosas.

Assim, no que fosse necessário, a fazer disso seu presente sentido de vida, Ana se empenhava em ajudar a melhor amiga. E procurava não pensar que fosse temporário e que depois, que lhe sobraria para dar sentido aos dias?

D. Esterlina ouviu os rumores no átrio principal, sinal de que chegava gente. O neto não havia lhe dito uma palavra, embora sempre com sua delicadeza sutil o inquirisse, sobre como andava o namoro complicado dele com Amélia e quais os ânimos de Crisóstomo com seus rompantes inexplicáveis — aos demais — de segregação.

Porém, aquela apaixonada avó tinha uma visão rara. Um sentido apurado que aparentemente tudo podia adivinhar. "Ninguém cega meu olho da alma." Era seu pensamento favorito. Por isso mesmo que sabia que nesta tarde o neto traria Amélia à casa.

Tinha acordado muito cedo, como de costume, e saíra ao jardim para tomar sobre si os primeiros raios do alvor do dia, de modo a aprazer-se num calor bom e nada nocivo. Colocara um belo vestido primaveril e escondera um pouco sua terna velhice com pó de arroz, carmim e batom. Tudo com uma delicadeza elegante que deu vida e beleza à sua pele morena vincada de muitas histórias interessantes. Da poltrona onde estava fazendo sua renda e, como sempre, pensando mais que deveria, viu o vulto do neto na janela. Ele não era mais o rapaz que um dia fora. Já não ria como outrora. Contudo, uns prenúncios de sorrires que lhe curvavam os lábios, ela captava bem, de sempre em sempre em seus meditares longuíssimos, largos silêncios, punham em seus olhos negros uma beleza e ardentia formidáveis. Como em todas suas décadas de vida Esterlina nunca vira antes. Amélia... Ela sabia. Era nela que nesses momentos o neto pensava. Embora a feiura do lado esquerdo do rosto, nesses momentos homem nenhum sobre a face de toda a terra era mais belo que o neto. Quando Fabrício pensava em Amélia acendia nele uma aura luminosa, nada, ninguém podia ofuscar, suplantar, apagar.

Esterlina pressentiu tudo.

Era um amor tão profundo que fazia sua alma transcender os limites do corpo e ir alcançar a razão desse sentimento. Razão essa que possuía o poder de levá-lo, ao acaso a derrocada. Amélia era exclusiva nisso.

Fabrício era uma lâmpada e Amélia a energia que a alimentava. Ele precisava dela.

Paixões assim são perigosas, Esterlina meditava desejando abreviar o tempo, pular os infortúnios e dar aos dois queridos a felicidade que ela julgava que mereciam.

A extremosa avó rezou aflita que seu neto nunca fosse ferido pelo acaso do romance. Se Amélia magoasse seu único descendente, que lhe era tão querido, como poderia suportar? O que seria de Fabrício se ele se entristecesse mais do que o infortúnio da guerra o alquebrara?

"Cada um há de conhecer a própria força no ferir que as adversidades impõem!" — havia lido em um dos diários que a filha deixara.

Como sentia saudades de Eliodora!

A doçura quotidiana, seu modo sereno de enfrentar as tribulações e de não criar perspectivas para ter o gosto de se surpreender com o bem inesperado, eram características que enchiam os dias de viuvez de Esterlina de vida e satisfação.

Tinha um rio de luz, ternura, compaixão se derramando continuamente de dentro dos olhos da mãe de Fabrício. Não era apenas a pele fresca e o lindíssimo sorriso em Eliodora que encantava aos demais. Não era esse trejeito raro de seu porte que mais parecia um véu todo açucarado a cobrir os que a rodeavam. Era, sim, o olhar atento e sincero, sempre otimista que atraía para ela quem quer que fosse. A alma mais inocente, qual ingênuo vaga-lume, ou a mais atormentada, que se deixara ir ser mosca que no lixo vai encontrar ventura.

Afortunados daqueles que nos vinte e seis anos que ela esteve entre os vivos puderam gratuitamente contemplar tal olhar, sempre acompanhado d'um sorrir dotado da mais afável meiguice.

Então, a Eliodora dos luzidios cabelos dum negro puro, faltou, levada pela morte inesperada. Quem poderia esperar que uma mulher tão forte, que nunca caía em doenças, sempre altaneira, fazedeira de muitas coisas, interessada nos demais, curiosa e prudente, amante do lidar da terra, não suportaria ao parto?

Não é que Esterlina tivesse se recuperado da perda da filha. A incumbência óbvia que Emílio lhe delegara de cuidar de Fabrício amortizou um tanto a dor profunda de perder a filha que era tão próxima à da perda do querido marido.

Eliodora fora uma jovem mulher muito otimista. Herdara isso do pai e deixara isso de herança para Fabrício. Tinha umas filosofias esperançosas de vida, diferentes de Esterlina, fadista ao extremo. Ambas, contudo, dividiam uma personalidade mística. Além dos cinco sentidos do corpo, e por meio deles, havia outro que lhe contava coisas que seriam tidas por loucura pelos demais.

Foi o manto da morte que cobriu de respeito para Esterlina o aspecto de sabedorias íntimas da jovem filha. Ou não era uma esperança que se permitia ter, ainda com seus pessimismos, que cedo ou tarde o único depositário de suas energias de afeto, Fabrício, seria feliz, vivendo ele em plenitude, em favor da mãe e da avó, que tão altruistamente se contentariam demasiado assim?

— Veja, nagymama, quem eu trouxe para que a senh­ora veja!

Esterlina viu transpor o umbral de madeira as duas jovens de que mais gostava, dentre todas as jovens que conhecia. A luz de outro cômodo transpunha lhes os corpos e criava um halo brilhoso nos contornos e curvas que se iam abrir nas volumosas saias à moda da época. Abriu-lhes um sorriso franco que fez sumir algumas de suas rugas.

Fabrício havia se detido, e depois que Amélia e Ana entraram, ele as seguiu e, diligentemente, conduziu Amélia, sem tocá-la, todavia como um forte desejo de tomá-la pela cintura para atirá-la no colo da avó.

Não raro Fabrício tinha pensamentos que não contaria nem a si mesmo se possível. Quem pode controlar os pensamentos?

— Que bom é ter visitas! — Esterlina exclamou cordial. — Vamos, sentem-se, sentem-se pertinho de mim. Só não me façam levantar.

— Não reparem — ele dirigiu-se para as duas joviais visitantes, — há dias em que minha avó acorda com tamanha dor nos joelhos que não pode suportar — Fabrício contou-lhes.

— Oh, imagine, senhora — Amélia adiantou-se para beijar sua mão. — Estamos aqui para ver como andam tuas pinturas e a saúde. Deve fazer bem um ano que não a vejo, não faz?

De fato. A ida de Fabrício para a guerra tirara Esterlina dos lugares que costumava frequentar para mantê-la em casa a rezar e esperar. E agora, ele estava de volta, mas ela não animava em recuperar a rotina de dois anos antes. Os anos acumulavam sobre si, e as dores físicas e da alma lhe eram mais que desculpa para se encarapitar feito caruncho de cortiça dentro do solitário sobrado da Corte.

Orgulhosa do interesse de Amélia, com algum esforço, ela foi-lhe mostrar, numa das salas adjacentes, as peças que resultavam de sua atividade preferida: finíssimas porcelanas que decorava meticulosamente com sua arte que enchia os olhos, fazendo arder o coração em vontades de possuí-las qualquer pessoa que as visse. De pronto Amélia revelou esse desejo. Esterlina, esboçando um risinho malicioso, disse:

— No dia em que eu tiver a graça de trazer meu bisneto ao mundo, com estas mãos, vou te dar isso:

E mostrou dentro de uma suntuosa cristaleira de ébano que estava ostentada um pouco além delas um aparelho completo de chá e jantar. Os olhos de Amélia examinavam através do vidro.

— Vamos! Abra. Pode mexer... Se quebrar alguma coisa aqui está quem poderá fazer outra vez...

— Ora, Dona Esterlina, eu não ousaria...

— E porque não? — Esterlina fingiu muitas surpresas. — Sempre se pode mexer naquilo de que se é dono e eu tenho para mim que a gente vê, sim, com as mãos. Agora... — ela abriu ambas as portas do belíssimo móvel. — Vamos pegue!

Amélia procurou os olhos escuros de Esterlina e numa troca cúmplice de olhares, obedeceu-a. Esterlina não podia compreender como pudera criar a natureza olhos tão lindos como os de Amélia. Assim, cor de lavanda, davam a quem os vissem prenúncios de inocência e, em contraditório, ardente paixão. Entendeu porque estava isso na profecia. Procurar por Amélia... que teriam impossíveis olhos lilases. Conhecendo bem a alma concentrada e cálida do neto, não poderia haver combinação diferente que o cativasse.

De longe, no outro ambiente daquele salão de estudo e leituras, Fabrício observava a amada e sua avó. Era-lhe um quadro perfeito! Estava sentado numa poltrona império, tendo a sempre calada Ana, que estava a brincar com as franjas de sua bolsa, por companhia. Depois de embevecer-se demasiado da cena que contemplava, deu acordo de si e decidiu, em sua elegância de cavalheiro do tempo, propor com gentileza assunto com sua visitante.

— A delicadeza que tens nos prestado, D. Ana, não dimensiona o bem que nos fazes!

— Ah, mas eu posso imaginar. Faço qualquer coisa por Amélia. Que mais me restou para me dar motivos a sorrir?

Fabrício demorou um pouco para responder. Quando abriu a boca, disse cauteloso:

— Eu poderia dizer que ainda há toda uma vida diante de ti, a se descortinar. Porém, eu compreendo. Não é o que queres ouvir! Eu somente gostaria de lembrá-la, o quanto Filipe a amava e sonhava com um porvir de felicidade para vós. Enquanto for necessário, não te envergonhes de sorrir das boas memórias que ficaram. Um dia haverá a superação, naturalmente.

— Oh, eu não me envergonho! Em contrário! Eu busco ardorosamente fragmentos não vividos de Filipe para guardar junto dos meus. — E dizendo isso ambos imaginavam em suas mentes o rosto sempre sorridente daquele herói. — Eu os inquiro a qualquer que o conhecesse. E para ti que era seu melhor amigo eu posso confessar: eu não quero superar. Quando se dá o coração a alguém, não se toma de volta. E se... se esse alguém parte... — a voz dela embargou — leva com ele esse coração, que, afinal, é todo dele.

As palavras de Ana marcaram a alma de Fabrício. Pensava amar — e muito — Amélia. Teria, contudo, deveras entregado lhe o coração, nesse modo que Ana tinha por convicção? Isso lhe parecia perigoso. Entregar, porém, o coração não é atitude refletida. Poder algum tem a livre escolha nesse gesto. Quantos e quantos não poderão testemunhá-lo? A entrega do coração, quando se dá em verdadeiro, simplesmente acontece.

— Filipe foi um homem de sorte, por ser amado assim — ele observou, tentando dimensionar o impossível, ao menos naquele momento: o amor de Amélia por ele.

— Durou pouco, mas a intensidade com que vivemos nosso amor valeu até o reencontro na eternidade — Ana revelou com ares de sonhadora.

Fabrício não tinha mais que lhe dizer, tamanha era a comoção penosa daquele lindo amor assim abortado em prematuro. Apenas lamentou pela falta que era o formar da bela tela de um homem de cabelos claros feito trigo, rendendo para baixo o olhar apaixonado a essa moça tão gentil que estava a sua frente. Agora, apenas uma sombra do que um dia fora.

— Conte-me, senhor Fabrício, conte-me sobre a noite em que o Filipe te salvou?

Ele olhou para Amélia que junto de sua avó ouvia-a falar enquanto seguravam algo que ele não podia adivinhar e, paciente, contou para Ana, talvez pela oitava vez, com riqueza de detalhes, sobre a noite do incêndio.

Mais tarde, estava tudo pronto para que Amélia e Ana fossem, na carruagem dos Nogueiras, levadas até o Passeio Público, onde tomariam a carruagem dos Mascarenhas de volta para casa.

Na frente do grande sobrado, Amélia se despediu de D. Esterlina, respondendo carinhosa às afetuosidades da boa senhora, sentindo com alegria o presente que ela lhe dera bem aninhado em seu seio esquerdo. Foi a vez de despedir-se de Fabrício que, com um olhar profundo, disse baixinho:

— Espere um pouco.

Ele despediu-se de Ana, que entrou na carruagem. Amélia esperou. Fabrício quis segurar sua mão, mas não era adequado, ainda mais que estivesse em lugar pouco abrigado de curiosos olhares.

A avó retirou-se para dentro da casa, cansada de tanta atividade, mas satisfeita.

Ela acenou para a futura "neta" e sumiu-se.

— Amélia...

Os ouvidos dela embeberam-se da voz que se enchia de carinho para dizer seu nome.

Como sentia necessidade de tocá-la! Se ao menos pudesse deixar em sua face a mais leve das carícias, a noite próxima seria menos tortuosa.

Ela tinha a indagação no olhar. E ele retardava o que queria inquirir-lhe apenas para aproveitar por mais tempo o seu delicioso perfume que a brisa lhe vinha alagar as ventas.

— Tens... Tens algo para me dizer, senhor?

— Quem te pergunta sou eu: o que tem para me dizer, querida? Sabe bem que não penso em outra coisa, senão na sentença de minha senhora.

Amélia baixou o olhar e brincou com o laço de seu leque.

Captor de cada um dos diferentes sorrisos que ela tinha, ele valeu-se da timidez desse pequeno curvar de lábios que ela esboçou, para lhe pressionar:

— Porque me condenas a não pensar em outra coisa? Eu poderia estar aplicando minha mente nos planos que quero fazer para nós dois. E conheces agora com teus próprios olhos... Minha avó ansiosa com...

— Eu sei! — ela interrompeu-o. — Eu sei... — Então esparramou o que lhe ia ao íntimo dum só golpe: — Quero ser tua!

Fabrício sorriu grande enquanto ela desviava o olhar.

— Contudo, não é tão simples! Vou abandonar a todos, assim? Pelo papai, que muito me tem decepcionado eu não falo que seja tanto. Porém, mamãe... ah, a mamãe... Ela está muito doente. O senhor sabe como é fraca. Como todos, o senhor sabe como é miraculoso que ainda viva e com essa disposição. Eu poderia deixá-la para trás, assim? — ela indagou, olhando para ele com olhos cheios de sofrimento.

Fabrício agora estava sério. Envolvido no afã da paixão, não havia refletido nesta questão.

— Ela poderia vir conosco para a fazenda Guarumby!

— Apesar das altercações frequentes de meus pais, eles se amam, senhor. Mamãe nunca o deixaria!

Fabrício tinha uma triste expressão quando disse:

— Estamos num impasse. E quem há de resolver tal impasse... É a senhora! Sinto muito... Existe uma escolha a ser feita e a escolha é tua!

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Tradução em Andamento! Sinopse dentro da tradução!