— Bom dia. Elena Tavares se encontra internada neste hospital? — Eu não saberia dizer o que me levou a dirigir em pleno sábado até o hospital onde a mãe de Nora se encontrava hospitalizada. Mas cá estava eu: “o presidente da Martinelli Corporation vestido com um jeans qualquer num hospital público, visitando a mãe de uma funcionária.” Meneei a cabeça, desaprovando minha própria conduta, enquanto analisava o local. “ Você só pode estar ficando louco, Gian”...
— Senhor? — ouvi a voz da recepcionista, despertando-me dos devaneios.
— Sim?
— A senhora Elena Tavares se encontra hospitalizada sim, o senhor deseja visitá-la?
— Na verdade, eu gostaria de falar com a filha dela. Acredito que ela esteja acompanhando a mãe.
— Têm três pessoas com ela no momento, senhor — informou, após analisar a tela do computador — seria qual delas?
— Nora Tavares.
— Não tem nenhuma Nora, senhor.
— Tente Eleonora Tavares — elucidei, ao que ela voltou a estudar a tela a sua frente. Porém, no momento em que a atendente abria a boca para me dar uma resposta aparentemente positiva, ouvi uma voz doce e um pouco rouca atrás de mim.
— Como sabe o meu nome?— virei-me para buscar a dona da voz e encontrei uma Nora abatida, com olheiras nos olhos e um rabo de cavalo que domava os belos cachos de forma improvisada. Ela segurava uma pequena mala nas mãos e uma bolsa tiracolo nos ombros. A calça jeans envelhecida e a blusa simples, denunciavam que mal teve tempo para pensar ao sair de casa.
— Nora…— dei dois passos em sua direção, alcançando seus ombros — como ela está?
— Estamos aguardando os resultados dos exames — respondeu com o olhar triste. As pálpebras mal conseguiam se sustentar em pé.
— Está indo para casa? — ela anuiu acenando com a cabeça — vamos, eu te levo — interpelei, puxando a mala de suas mãos, porém ela a deteve, hesitante.
— Giulio, não precisava se incomodar… eu ia chamar um Uber — içou as sobrancelhas em minha direção.
— Ia, não vai mais, okay? eu estou aqui, não estou? — ela relaxou os ombros cansados, soltando os dedos da alça da mala — isso. Me deixe te ajudar, está bem? — ela assentiu novamente, cansada demais para articular qualquer coisa coerente e eu a guiei até o meu carro, pousando uma mão em suas costas.
***
No caminho para a casa, Nora adormeceu no banco do carona. Não sem antes me relatar por alto a dor de cabeça insuportável que acometera a mãe, a ponto de fazê-la sair correndo da faculdade para casa. Depois de um desmaio súbito de dona Elena, Nora precisou ligar para a ambulância que correu às pressas com as duas para o hospital. Depois de uma noite insone, Elaza chegou para rendê-la, junto com a tia.
Parado no semáforo, virei-me para estudá-la um instante. Nora era, definitivamente uma princesa, por não render-se às minhas investidas e mostrar-se sempre respeitosa consigo mesma. Uma jóia rara de se encontrar, num mundo de sexo banalizado e mulheres vendidas por pouco ou nada. Todavia, naquele momento a princesa Nora havia perdido parte do seu encantamento, pois mantinha uma boca semiaberta e um leve ronronar, fazendo-me sorrir inconscientemente. Levei uma mão por sobre os seus olhos para tapar o sol, e só me dei conta do gesto de gentileza que se arrastava por segundos, concomitante ao meu olhar por sobre ela, quando levei algumas buzinadas por ficar parado com o semáforo aberto por um longo, longo tempo.
“Por que raios eu me importo?” Era a pergunta que martelava a minha cabeça durante todo o trajeto. “Acaso me importo, ou apenas estou sendo um cafajeste ao usar um momento de fragilidade da mulher ao meu lado para logo depois tê-la em minhas mãos? Ou em meus braços? Em que ponto termina o Gian canalha e começa o Giulio gentil e prestativo? Acaso ele existe em algum lugar dentro de mim?”
Parei em frente a sua residência e virei-me para Nora para fitá-la com mais calma.
“Estou sendo sincero ao dizer que gosto de você!”
Lembrei-me da frase que disse a ela na praia, recordando-me de que ela não fazia parte do meu “script”, o que me deixou ainda mais confuso e eu sorri de mim mesmo, porém sem humor. “Não pode ter se apaixonado em tão pouco tempo, Gian. Só está confuso porque ela é difícil. Tornou-se uma espécie de desafio para você.”
E lá estava novamente o Gian, empurrando para as profundezas qualquer resquício do Giulio bom e fajuto que construí por puro Ego.
— Nora…— chamei num tom baixo, para não assustá-la, porém ela sequer pestanejou. Soltei o cinto de segurança e me inclinei um pouco mais perto, enquanto tentava chamá-la outra vez — Nora — meus dedos circundaram o pequeno queixo, puxando-o para mim, o meu rosto a centímetros do dela e novamente eu senti meus batimentos cardíacos acelerarem como o pistão de um carro em alta velocidade — certo, pelo menos isto eu não posso fingir — murmurei a mim mesmo — Nora, vamos! Acorde e pare de me enlouquecer! — atalhei um pouco mais alto, mas ela estava praticamente em transe. Os longos e espessos cílios negros tocando gentilmente as maçãs escuras do rosto, como um anjo adormecido — suspirei, frustrado e abri a porta do carro, saltando imediatamente, num esforço descomunal para manter meus lábios longe dos dela. Tirei a mala do porta-malas e abri a porta do carona, num supetão, percebendo-a ainda imóvel. — Nora! — Atalhei, sacolejando seu ombro freneticamente, ao que ela despertou assustada. Eu até poderia levá-la no colo para dentro de sua casa se assim quisesse, caso ela não despertasse ao se dar conta que estava suspensa. No entanto, não estávamos em um conto de fadas e eu estava muito longe ser um príncipe. Estava mais para o lobo e eu tinha ciência de que ela era a minha presa. — Desculpe eu te assustei? Tem meia hora que estou te chamando — brinquei, ao passo que ela saiu, um pouco atordoada pelo susto e visivelmente exausta.
— Obrigada — sussurrou, após um bocejo. Os olhos lacrimejando de sono — você… quer entrar? — içou os olhos para mim, após tomar as alças da mala em suas mãos. A gratidão e o cansaço brigavam por ocupar o seu rosto.
— Não — respondi, reiterando com um meneio de cabeça — você precisa dormir — dei um passo a frente e levei minhas mãos ao seu rosto e os meus lábios até sua testa, num toque suave e rápido. Ao voltar meus olhar para ela, suas sobrancelhas estavam içadas em tom de agradecimento e melancolia — descanse e não se preocupe. Sua mãe vai ficar bem, okay? — ela assentiu com olhos marejados.
***
Depois de ter deixado Nora em casa, decidi voltar ao hospital. Eu precisava de respostas e se Nora era o objeto da minha conquista, eu precisava saber tudo o que se passava ao seu redor.
Passei pela recepção depois de ter me identificado e entrei no quarto de dona Elena. Elaza estava sentada ao lado da mãe com um cotovelo sobre o leito e uma mão sob o queixo. Parecia também estar com sono, pois a cabeça pendia para o lado, o que me fez intervir antes que ela desse de cara no chão. Dei três toques na porta aberta e os olhos dela se abriram imediatamente em minha direção.
— Giulio! — constatou animada e o brilho no rosto infantil, em detrimento de sua mãe acamada me fez sentir uma pontada de dor no peito.
— Oi…— Sussurrei — como ela está?
— Eu estou bem. Não sei pra quê tanto drama. — ouvi a voz da senhora que julguei estar moribunda, enquanto ela abria devagar os olhos cansados.
— Mamãe! Achei que estivesse dormindo! — alegrou-se Elaza, saltando da cadeira enquanto examinava a mãe.
— Não aguento abrir os olhos e ver olhares de pena sobre mim, prefiro me fingir de morta.
— Mamãe! — atalhou Elaza, enquanto eu sorria — a senhora diz isso, mas quase morreu de verdade!
— Que? Quase morri? pois vou acabar morrendo antes da hora se ficarem me tratando como doente! Agora, faça um favor — deu duas batidinhas na mão de Elaza — vá procurar a sua tia, querida. Preciso falar com ela.
— A tia foi almoçar, mamãe…
— Então vá almoçar também! Eu que estou internada e você que está com cara de morta viva.
— Mas e a senhora…
— Giulio vai ficar comigo, fique tranquila. Não é Giulio?
Eu?
— Sim…— respondi hesitante, enquanto ela abanava as mãos literalmente expulsando a filha.
Depois que Elaza saiu, ela me pediu para erguer sua cama, para que ela ficasse meio sentada e eu o fiz. Vê-la daquele jeito trazia inevitavelmente más lembranças da minha mãe, na época em que ficou acamada pela doença.
— Giulio, querido — tocou o dorso da minha mão de leve — sente-se, preciso falar com você — obedeci um pouco hesitante, atento ao seu rosto pálido. Seus olhos tomaram uma melancolia que me incomodou de certa forma — preciso te pedir um grande favor. Sei que mal nos conhecemos, porém tenho fé de que é um bom rapaz. — Bom rapaz? Engolir em seco. Estava longe de ser bom. — lembra que eu disse que quando me for desta terra, não quero deixar minhas meninas sozinhas?
— Senhora Elena, a senhora não vai…
— Shhhh — levou um dedo em riste aos lábios ressequidos — eu estou morrendo — segredou num sorriso amargo, que me fez entreabrir os lábios em surpresa — ora, não me faça essa cara — ralhou, franzindo o cenho — é por causa disso que quero que ninguém saiba.
— Mas… como… eu não entendo.
— Irá entender em breve. Só peço que prometa para mim que não deixará as meninas descobrirem.
— Mas, senhora, se for verdade o que me diz, elas têm o direito e o dever de saberem.— argumentei em baixo tom, vendo-a menear a cabeça em negativa, enquanto engolia saliva com dificuldade.
— Não, você não entende. Eu não tenho medo de morrer. Todo mundo irá morrer um dia e eu creio na vida eterna ao lado do meu Deus. — ela respirou fundo e continuou com a voz embargada e olhos marejados — mas não sei se suportaria encarar a dor nos olhos das minhas filhas. Giulio — envolveu minha mão nas suas — não negue um favor à uma moribunda, hm? Eu não quero que os meus últimos dias nesta terra sejam de melancolia, tristeza e dor. Não quero ter que encarar olhares de pena, tampouco ficar presa em uma cama de hospital. Quero voltar pra casa, regar minhas plantinhas e terminar o meu livro de receitas. Por favor, me prometa que não as deixará saber. — As palavras me fugiram os lábios e eu fui inevitavelmente levado aos últimos dias da minha mãe, que padecia pouco a pouco num leito de hospital, sob sessões intermináveis de quimioterapia. O que eu poderia dizer? Estava encurralado por uma senhora acamada de meia idade. “Onde foi se meter, Gian”
Antes que eu abrisse a boca para proferir alguma palavra sem nexo, o médico adentrou a sala, com o que constatei ser um falso sorriso e um bom humor envolto num olhar de compaixão.
— Como vai, senhora Elena?
— Melhor do que nunca, doutor. Quando posso ir para casa?
— Calma, a senhora anda muito apressadinha, não acha? — brincou, fitando a mim em seguida — e este é seu filho?
— Não, meu genro. — respondeu dona Elena, deixando um olhar orgulhoso transparecer. Atônito, senti o sangue fugir do rosto, enquanto o médico se aproximava com uma mão erguida e eu me levantava para cumprimentá-lo.
— Muito prazer! Podemos conversar um instante? — pediu o médico, arrastando-me segundos depois para sua sala no final do corredor.
***
— Analisando os exames da senhora Elena, descobrimos um tumor alojado no cérebro. A boa notícia é que não é maligno. A má é que ele está crescendo e se instalando entre a massa cefálica, num local de difícil acesso, o que impossibilita uma cirurgia que não deixe sequelas desastrosas na paciente. Outra alternativa, seria a quimioterapia, porém esta apenas adiaria o inevitável e… — sabe aquele momento em que uma bomba explode bem perto do soldado nos filmes de guerra? O som doloroso do zumbido nos ouvidos, a surdez, a sensação de que o coração parou de realizar sua função e o formigamento nas mãos gélidas? Foi nesse momento que percebi que havia sido atingido por um gatilho, não de arma, mas de algo muito pior. O trauma.
— Quanto tempo? — A minha experiência questionou ao médico, num tom baixo, quase inaudível.
— Dias. Semanas talvez. — Ouvir isso me fez entender que brincar com Nora, escondendo minha verdadeira identidade, já havia perdido a graça. Isso tinha que parar.