Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental.
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— Deu tudo errado, Mylène... — A resposta de Theo veio enfim.
Na verdade, o resgate dos irmãos havia sido bem sucedido. Sem entrar em detalhes sobre como conseguiram entrar na prisão, Theo explicou que ele e parte do bando haviam conseguido entrar e sair com os gêmeos antes que o exército se desse conta, conforme o planejado, mas por uma infelicidade do destino, os guardas deram falta dos prisioneiros antes do previsto.
— Com o alerta, praticamente todos os soldados da prisão estavam atrás de Arturo e Ariana. Ainda assim, tentamos sair da forma que entramos, mas ficou impossível. Então fomos obrigados a usar o plano B: explodir uma das paredes e escapar em meio ao caos — Theo narrava desesperado quase sem parar para respirar, passando as mãos nos cabelos freneticamente. — Talvez a gente não tenha comprado o material correto, não sei! Não é como se soubéssemos como usar bombas!
Silêncio.
Enquanto o rapaz parecia reorganizar os detalhes na sua cabeça, Mylène tentava entender o que Theo acabara de falar. Eles já não tinham usado esse artifício na invasão à casa da moeda? Como o homem à sua frente agora afirmava que não tinham experiência com isso? Theo errara no desespero? Mylène se sentia confusa.
— Até aí, tudo bem. Mas quando a gente foi colocar os explosivos... — Theo voltou a falar, abraçando-se como se quisesse se proteger do que havia vivido. — A bomba simplesmente explodiu. Como eu estava vigiando no corredor, não fui atingido. Os outros do bando não tiveram a mesma sorte... E Havoc, ele...
A julgar pela expressão de pesar que Theo esboçava, Mylène concluiu que Havoc não havia escapado com vida. Com os olhos marejados, ele segurou o choro que nunca veio. Sem dizer mais nada, apenas se afastou e começou a vigiar a janela. Perder um membro da família era sempre algo difícil, ela sabia bem. Imagine não poder fazer nada por ele? Nem mesmo poder recuperar o corpo porque estavam no meio de uma fuga?
— Mylène — Henri a chamou. — Poderia vir aqui? Tenho uma paciente para você.
— Claro... — ela respondeu, apertando o passo até onde o líder rebelde se encontrava. — Theo me contou rapidamente o que houve. Eu... Eu sinto muito pela perda de vocês.
— Obrigado — Henri agradeceu e uma expressão de dor passou por seus olhos. — Quando tudo isso acabar, honraremos a memória do nosso companheiro da forma que ele merece... Mas para que isso aconteça, precisamos sair daqui o mais rápido possível. — Virou-se para a garota que abraçava e disse — Ariana, essa é a minha médica. Garanto que o tratamento vai ser de primeira.
"Sair o mais rápido possível...?"
Tudo estava acontecendo tão rápido que nem pensara em como as companheiras estavam lidando com a situação. Conhecendo Heloise e Tanya, as duas provavelmente estavam desesperadas não apenas pela possibilidade do Refúgio ser descoberto, como também de serem acusadas de cúmplices de criminosos. Ainda assim, nunca hesitariam em assistir pessoas feridas. O Refúgio os presenteou com esse tipo de poder, de não ter medo de ajudar quem precisava da gente. A prova estava ali.
— Ele está exagerando, mas com certeza darei o meu melhor para cuidar de você. — Mylène respondeu com um sorriso, na tentativa de acalmar Ariana. — Vamos?
Ariana apenas balançou a cabeça e Henri a guiou até a maca. Nesse momento, Mylène notou que ela mancava, percebendo uma queimadura do mesmo diâmetro que a do rebelde, só que no tornozelo direito. Felizmente, ao analisá-la com cuidado, concluiu que o ferimento era menos grave, ainda que precisasse passar pelo mesmo processo de limpeza, seguido pela aplicação do bálsamo.
— Como está a situação, Theo? — Henri, que não saíra do seu lado desde que iniciara o tratamento de Ariana, quis saber.
— Ainda nenhum sinal do exército.
— Ótimo. — Henry suspirou aliviado. — Talvez seja a hora a certa para você sair. Nós vamos logo atrás.
— Theophilus, nem pense em passar por essa porta! — Heloise interveio, sem tirar os olhos do gêmeo que estava tratando.
— Heloise, já conversamos sobre isso! Não podemos ficar aqui. É muito arriscado para vocês e para o Refúgio.
— Não interessa! As ruas estão cheias de soldados! Como pode ser mais seguro ir para o esconderijo de vocês do que ficar aqui neste momento? — ela estava irredutível. — Terminei com o Arturo!
Mesmo com o torso revestido de bálsamo, Arturo não demorou a se levantar e ir para perto de sua irmã gêmea. Como se fosse combinado, Heloise deixou o seu posto e foi à porta para brigar com Theo.
— A relação entre irmãos é algo incrível, não acha? — Henri falou brincando, de uma forma que apenas os dois pudessem ouvir.
A proximidade súbita remeteu ao que sentira quando o rebelde evitou que ela caísse. Imediatamente, um arrepio subiu pela sua espinha. Porém, não deu muita atenção para isso; precisava se concentrar no ferimento de Ariana.
— Vocês estão ouvindo esse barulho? Parecem passos e cascos de cavalo. — Theo se empertigou e levantou um dedo.
Todos no recinto seguraram a respiração, tentando identificar o som. Era inegável o fato de que eram os sons de cavalos e pessoas. E eles soavam mais alto do que esperavam.
— Merde! — Theo xingou e se virou para a irmã. — Entendeu agora por que tínhamos que ir embora rápido?
— Janice... Cheque a porta dos fundos, por favor! — Henri interveio antes que mais uma discussão surgisse.
Janice, com curativos na testa e no pescoço, obedeceu às ordens. Não era possível sair por ali, pois aquela porta estava emperrada há anos, mas havia uma pequena janela que permitiria ver a movimentação da ruela que passava por trás do quarteirão. Cerca de dois minutos depois, ela voltou com a boca fina, os movimentos tensos e disse:
— Os soldados entraram por todas as portas do prédio de trás.
— Conseguiu ver se Orléans estava entre eles? — Henri perguntou, fazendo com que Mylène quase deixasse o pano que segurava cair no chão.
Não que não fosse lógico, Gaspard era o líder do grupo de busca de Henri e seu bando, mas tudo que ela menos esperava naquele momento era ouvir o nome do noivo. Seu cérebro entrou em pane e seu coração deu um salto. Em alguns segundos imaginou mil cenários, inclusive um em que Gaspard abria a porta do Refúgio e a acusava de traição.
Em resposta, Janice balançou a cabeça, negando.
— Não se preocupem com isso — Arturo tomou a palavra. — Eu e Ariana fomos interrogados por ele e reforçamos a pista falsa da base perto de Sálaga. Talvez ele nem esteja na capital.
Nesse momento Mylène voltou a respirar, lembrando-se de que Gaspard de fato não estava na cidade. Conhecendo-o, provavelmente até tivesse usado essa pista falsa como pretexto para se afastar do exército e ir atrás de Marianne.
— Finalmente uma notícia boa em meio a esse caos! — o rebelde respondeu, com um meio sorriso e bagunçando o cabelo de Arturo. — O plano de vocês de terem ficado para trás para despistar o exército foi um sucesso.
— Precisamos sair logo daqui... — Theo comentou, olhando através da janela mais uma vez. — Não é o ideal que saiamos juntos, mas sempre tem a opção de nos escondermos nos esgotos.
— Por que não fizeram isso antes?
— Você acha que não tentamos, Heloise? Mas não poderíamos deixar que o exército desconfiasse do nosso esconderijo...
— Mas ir para lá agora também seria arriscado!
— Você está certa, Heloise — o líder rebelde resolveu intervir: aquela discussão não os levaria a lugar algum. — Porém entre ficar aqui, ser pego e expor vocês e o Refúgio, ainda prefiro o plano do esgoto. Mesmo se nos pegarem, acredito que temos uma chance grande de escapar — disse num tom misterioso. — Quem mais está comigo?
Sem pestanejar, todos os membros do De la Source levantam as mãos, até Ariana, que ainda estava deitada. Heloise, então, aceitou a derrota.
— Pronto! — Mylène exclamou ao concluir os cuidados com a gêmea. — Levem um frasco de bálsamo para que os feridos possam aplicar quando todos estiverem seguros.
— Ótimo! — Henri disse. — Ariana consegue andar?
— Farei o possível e o impossível... — ela respondeu numa voz fraca, mas já se esforçando para levantar.
— Janice, veja se a revista na rua de trás terminou. Vamos tentar sair por lá. Theo, cheque novamente a porta dianteira.
— Certo! — os dois falaram em uníssono.
— Como vão sair por trás se a porta está emperrada? — Mylène quis saber.
— Nós temos os nossos métodos — Henri respondeu, finalmente soltando um de seus olhares enigmáticos.
— A revista está terminando. — Janice voltou a se manifestar.
— Não, não, não! — Theo começou a exclamar de repente, apavorando a todos.
Imediatamente, Heloise se aproximou da janela para ver o que estava assustando o irmão. Não precisou muito para que ela entendesse a situação: uma equipe de busca já estava passando pela rua do Refúgio e logo bateria à porta.
— Não tem como sair, há soldados dos dois lados... — Heloise se virou para os demais da sala e declarou sem esconder o desespero.
— A culpa é minha... Vocês deveriam ter me deixado para trás — Ariana soltou, antes de começar a chorar. Arturo a abraçou para consolá-la.
— Não diga isso nem brincando! Nós nunca deixamos ninguém para trás! — Henri replicou firmemente, sem levantar a voz. — E também não vamos desistir, vamos continuar monitorando para ver se conseguimos uma chance de escapar.
Janice e Theo menearam a cabeça em concordância e voltaram a espiar a rua. Henri, claramente nervoso, mas sem querer demonstrar, sentou-se na maca antes ocupada por Arturo e fechou os olhos. Tanya, Heloise e Mylène se encararam em silêncio, sabendo que a probabilidade de perderem seu lugar secreto para estudar o que amavam era bem alta. Principalmente Mylène que, além do Refúgio, tinha o noivado e a vida da mãe em jogo. Ela precisava encontrar uma solução, e rápido, como todas as vezes que precisou para sobreviver ao cárcere de Hugo Dupain ao longo dos anos.
Não queria desistir. Não tinha esse direito.
Sem saber o que fazer, ela começou a vasculhar sem se focar realmente em nada. Seus olhos perdidos acabaram repousando em alguns livros no chão, provavelmente que Heloise trouxera para Henri se livrar do tédio. E aí que a ideia brilhou em sua mente.
Mais uma vez, ela precisaria fingir. Era boa naquilo, Hugo Dupain a forçara a ser, e à sua volta tinha os apetrechos necessários para tanto. Apenas precisariam correr para esconder as macas e atuar bem o suficiente para que os soldados que entrassem ali ficassem o mínimo possível.
— O Refúgio agora é um clube do livro! — Mylène exclamou, quebrando o silêncio e deixando todos os presentes sem entender o que estava acontecendo. — Eu, Heloise e Tanya alugamos o lugar para guardar a nossa biblioteca particular. Nos reunimos a cada quinze dias para discutir a leitura conjunta.
— Essa é a história que vamos contar para os soldados? — Heloise questionou, entendendo o plano maluco da companheira.
— Exato! Vamos fazer de tudo para que não desconfiem da gente e vamos torcer para que eles não tentem checar o toalete.
— É lá onde vamos ficar? — Henri perguntou com um sorriso genuíno. — Acha que cinco pessoas vão caber ali?
— Têm que caber. É a melhor carta que temos, não acha?
— Um baita blefe, praticamente uma família real do truco. É o que tem para hoje — ele disse, levantando-se animadamente. — Diga as ordens.
— Certo — ela respondeu sorrindo, sentindo um estranho rubor de excitação subindo pelo rosto. — Precisamos dar um jeito de disfarçar as macas o mais rápido possível. Alguma sugestão?
— Que tal se juntarmos todas perto da janela e cobrirmos com toalhas? À meia luz podem se passar por uma toalha de mesa — Heloise sugere.
— Ah! E podemos pegar restos da comida que trouxe de manhã e deixar em cima para dar a impressão de que estamos aqui há algum tempo discutindo.
— Perfeito. Arturo vá ajudar as médicas na arrumação. Theo e Janice continuem onde estão. — Henri voltou a dar as ordens. — Mylène, já volto para ajudar. Primeiro, vou acomodar Ariana no lavabo.
***
Eles haviam feito um milagre e, em poucos minutos o Refúgio havia mudado completamente. A mesa de chá estava servida perto da janela, próximo à porta estavam os pertences das mulheres do clube, a estante de livros estava bem iluminada ao fundo. Alguns livros também estavam misturados às toalhas numa outra estante e os frascos haviam sido virados de forma que suas etiquetas não aparecessem e agora não passavam de decoração. Todos os objetos médicos haviam sido escondidos embaixo das macas. Para disfarçar o cheiro de álcool do lugar e de pólvora que os rebeldes ainda exalavam, queimaram algumas folhas de lavanda.
Agora bastaria que os demais se juntassem a Ariana no pequeno lavabo. Mylène levaria a lamparina mágica para eles, garantindo que nenhum barulho fosse ouvido do lado de fora.
Primeiro foi Arturo. Depois Theo, deixando que Heloise vigiasse a parte da frente. Então Janice e, por fim, o próprio Henri.
— Espero que esse plano funcione... — Henri comentou, pegando a lamparina. — E que eu possa te agradecer de alguma forma. — Henri terminou, encarando Mylène.
— Eu também. — foi a única coisa que conseguiu responder antes de fechar a porta.
Nada mais foi ouvido, parecia que realmente só havia as três mulheres que se reuniam ali para discutir suas leituras. Apenas o coração de Mylène ecoava acelerado tanto pela imagem dos olhos de Henri quanto pela atuação que estava prestes a performar.
Ainda assim, ela se sentia pronta.
— Preparadas, meninas? — Mylène perguntou, aproximando-se das companheiras, que estavam perto da porta.
— Sim, nada como fingir sermos mulheres "avoadas" para tentar despistar os homens... — Heloise respondeu, sorrindo. — Mas estamos preocupadas com você — Heloise respondeu num tom mais baixo para não chamar a atenção dos que estavam no lavabo, o sorriso desaparecendo do rosto.
— Comigo? Por quê?
— Porque você é uma pessoa conhecida, Mylène. Se algo der errado, os tabloides, o seu noivado... — Tanya começou a murmurar.
— Nada vai dar errado. — Mylène não deixou que ela continuasse. Temia que, se continuasse falando sobre tudo que poderia dar errado, acabaria atraindo azar. — Mas vou tentar não chamar atenção para mim, certo?
Na mesma hora, Heloise e Tanya se entreolharam, ainda com os semblantes preocupados. No final das contas, não havia mais nada que pudessem fazer.
Combinaram alguns detalhes rapidamente, e ficou decidido que Mylène e Tanya já estariam sentadas nas poltronas perto da estante de livros, enquanto Heloise, que era mais extrovertida que Tanya, abriria a porta para os soldados. O palco estava montado.
Não demorou para que a peça finalmente começasse.
Assim que ouviram as batidas na porta, Heloise gritou "já estou indo" e esperou alguns minutos antes que abrisse a porta de fato.
— Bonjour! Ué, soldados? — Heloise iniciou o seu papel.
— Boa tarde, senhorita. Podemos entrar? — uma voz masculina respondeu.
— Cl-claro... O que aconteceu? — perguntou espantada, de uma forma bem convincente.
— Houve uma fuga da cadeia agora pela manhã e os fugitivos foram avistados pela região.
— Que perigo! — Mylène exclamou, levando uma mão ao coração.
— Fugitivos?! —Tanya repetiu fingindo horror.
— Podemos entrar?
— Ah, por favor! — Heloise respondeu, dando passagem aos outros dois soldados que o acompanhavam. — Não reparem a bagunça. Nós só arrumamos tudo quando terminamos as sessões.
— Sessões de que, senhorita? — o segundo soldado perguntou, observando o ambiente.
— Do clube do livro. Estávamos discutindo esta novela incrível chamada "Os Indomáveis". Já ouviu falar?
Na mesma hora, o homem retorceu a boca. Heloise não se abalou porque ainda era comum que Beaus achassem que a leitura não passasse de uma perda de tempo. E talvez se irritassem os soldados, eles saíssem logo dali sem revistar o Refúgio. Heloise desatou a contar a história de um livro que de fato estava lendo.
Sem graça, o soldado não podia fazer nada, a não ser ouvi-la. O primeiro "inimigo" havia sido encurralado.
— Os senhores estão com sede? Temos água e chá suficientes. — Tanya entrou em ação, deixando a poltrona para trás.
Assim que a viram, um leve rubor apareceu na bochecha de ambos. A colega era quieta, não buscava chamar atenção. Porém, quando o fazia, era comum que todos ficassem encantados com seus olhos castanhos, linhas delicadas e boca naturalmente avermelhada.
— Obrigado, senhorita. Porém, não vamos demorar... Só precisamos revistar este lugar.
— Tem certeza? Aposto que o sol da primavera não tem sido gentil com vocês. Não devem ter parado de trabalhar um minuto sequer desde essa fuga da prisão, imagino.
— De fato...
— Senhorita Dupain?! — o terceiro soldado exclamou mais alto que imaginava, chamando a atenção de todos.
Mylène sem entender como havia sido reconhecida tão rápido, engoliu seco. Ao levantar a cabeça, encontrou o olhar de ninguém mais ninguém menos que o alferes Renaud, o mesmo que fora informar Gaspard da explosão na Maison d'Argent em pleno festival da primavera.
Continua...
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CRÉDITOS
Autora: Marina Oliveira
Edição e Preparação: Bárbara Morais e Val Alves
Revisão: Mareska Cruz
Diagramação: Val Alves
Ilustração: Fernanda Nia