Capítulo 7

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Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental.

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"Você pode me chamar apenas de Henri."

A frase não saía de sua cabeça.

A revelação tinha sido tão inesperada e chocante que Mylène nem ao menos lembrava o que respondera antes de dar as costas para o homem, indo em direção ao armário atrás de uma tesoura para cortar a roupa ao redor da queimadura. Nunca ficara tão desconcertada com uma situação ou com uma pessoa, muito menos com uma que estivesse sendo procurada por seu noivo...

E por toda Chambeaux.

Já tinha tantas coisas acontecendo em sua vida, e o que Mylène menos precisava agora era mais uma complicação. Claro, sua consciência e ética jamais permitiriam que ela abandonasse um paciente precisando de tratamento e, para ser honesta, a ponta de admiração pelo "trabalho" do De la Source também estivesse pesando um pouco na sua decisão de tratá-lo sem ao menos considerar denunciá-lo para as autoridades.

Não, ela nunca o denunciaria.

— Você é a Heloise? Foi o nome que me deram quando indicaram o Refúgio das Artes Medicinais. — A pergunta de Henri a trouxe de volta para a realidade, fazendo um calafrio percorrer o corpo de Mylène.

Ela estava tão focada em Henri De la Source estar ali e ser um foragido, que sequer havia pensado em como ele fora parar ali, machucado daquela forma, logo em frente ao Refúgio. Se o homem mais procurado de Chambeaux conhecia o grupo independente de mulheres que almejavam seguir o caminho da Medicina, quantas outras pessoas também poderiam saber?

— Como ficou sabendo do Refúgio? — ela perguntou em um tom neutro ao virar-se, finalmente com a tesoura que procurava em mãos.

— Sei que você deve estar se sentindo receosa de mais pessoas saberem sobre este lugar, mas não se preocupe. Nem mesmo os meus companheiros sabem que estou aqui.

As palavras de De la Source a tranquilizaram de certa forma. Era apavorante sequer imaginar a possibilidade de o Refúgio ser descoberto pelas autoridades e de não poder mais se reunir ali com suas companheiras.

Percebendo que Mylène parecia estar menos na defensiva, o rebelde procurado olhou de um lado para o outro como se estivesse prestes a contar um segredo, e com um sorriso no canto dos lábios, continuou:

— Na verdade, foi o seu irmão Theo que me indicou o Refúgio há um tempo, quando desloquei o ombro esquerdo. — Mylène pensou em corrigi-lo, mas se lembrou novamente do noivo e decidiu não falar nada.

— Que por um acaso é o mesmo ombro com essa queimadura imensa — Mylène notou.

— Pois é. Claramente ele não tem muita sorte — Henri disse, dando um tapa de leve no ombro ferido sem pensar.

Um grito de dor tomou conta do recinto.

Com passos apressados, Mylène se aproximou de Henri. Depois de botar a tesoura em uma bandeja próxima à maca, ela começou a ajudá-lo a tirar a capa preta, que parecia ter sido colocada de qualquer jeito. Por baixo, ele ainda trajava uma bata que um dia parecia ter sido branca, era difícil de dizer com toda a sujeira, as partes queimadas e o sangue seco. Pegando a tesoura mais uma vez, Mylène cortou a vestimenta com cuidado para analisar melhor o tal ombro esquerdo azarado. Como esperava, ela estava diante de uma queimadura profunda. Ainda havia tecido grudado na pele, porém menos do que tinha pensado.

— Imagino que vai deixar uma cicatriz? — Henri perguntou alegre. Nem parecia a mesma pessoa que há poucos minutos urrara de dor.

— Com certeza — ela respondeu, sem tirar os olhos do ferimento.

— Ótimo. Mais uma para a minha coleção de histórias.

— Histórias? — Mylène finalmente voltou a encará-lo.

— Claro. Toda a cicatriz tem uma história para contar, não acha?

Henri mais uma vez soltou o seu sorriso galanteador. Agora mais de perto, Mylène percebia o quanto o rapaz tinha traços marcantes. Nariz reto, olhos castanho-claro, maxilar bem marcado. Além de charmoso, sem dúvida era um rapaz bonito e realmente nada a ver com o homem do cartaz. Como o exército errara tanto?

— É um bom jeito de ver a situação, imagino — ela respondeu, desviando-se daqueles pensamentos fora de hora sobre a aparência de um paciente. — Bom, vou tratar sua queimadura. Já aviso que vai ser um processo dolorido.

— Tem álcool? — Henri perguntou.

— Sim, para assepsia...

Mylène estava preparada para disparar explicações, enumerando todos os motivos para nunca colocar álcool sobre uma queimadura até perceber pelo brilho maroto na expressão de Henri que ele falava de outro tipo de álcool. E, sem que ela se desse conta, um sorriso divertido apareceu em seu rosto.

— Infelizmente, aqui não temos o tipo de álcool em que está pensando.

— Sério? Nenhuma chance de ter uma garrafa de xerez? Seu paciente está necessitando de ao menos uma dose para acalmar um pouco os nervos — Henri acrescentou, fazendo Mylène balançar a cabeça em descrença ainda que com um leve sorriso.

Indo de um lado para o outro com eficiência, Mylène juntou todos os itens que precisaria: pinça para tirar o tecido grudado, álcool para higienização, um bálsamo para inflamações para auxiliar na cicatrização, um balde de água, e toalhas e gaze para serem umedecidas e aplicadas na queimadura. Por fim, retornou para perto de Henri, que parecia observar cada um de seus movimentos atentamente.

— Você não é a Heloise — Henri afirmou abruptamente.

O comentário pegou Mylène de surpresa. Ele havia presumido que ela era a Heloise, o que o fizera pensar o contrário?

— Por que eu não seria a Heloise?

— Ah! Não existe a menor possibilidade de o Theo ter uma irmã assim como você.

O olhar atrevido Henri encontrou o de Mylène por alguns segundos, mas ela o desviou para mergulhar uma das toalhas no balde d'água. Não havia como negar que estava desconcertada, mas, dessa vez, era com a audácia do homem à sua frente.

— Assim como? — questionou apenas para manter a conversa e distraí-lo da dor, já que não tinha interesse na cantada que com certeza estava por vir.

— Ora, senhorita. A quem você quer enganar? Apesar de estar vestida de plebeia, claramente você não é uma.

A constatação deixara Mylène tão chocada que ela derrubou a toalha molhada no chão. Ela não estava esperando essa resposta e agora estava envergonhada por ter imaginado que Henri estivesse prestes a elogiar a sua aparência.

Mylène recolheu a toalha do chão e jogou-a num cesto perto da parede, tentando pensar numa resposta que não revelasse quem ela era ou levasse a mais perguntas. Pegou outra, encharcou-a de água, e passou delicadamente na área queimada, em silêncio. Henri se encolheu um pouco, mas fora esse movimento, sua expressão não denunciava as dores que ele com certeza sentia.

— O que me denunciou? — Mylène quebrou o silêncio, enfim, concentrada na sua tarefa de hidratar a queimadura.

— Eu poderia dizer que foi a sua postura — Henri tentou manter o bom humor na voz, mas não conseguia disfarçar a respiração ofegante. — Ou os sapatos bem polidos. Porém, o motivo principal foi o seu perfume.

— Meu perfume? Mas eu não estou usando nenhum.

— E ainda assim você exala rosas. AI!

— Perdão! — Mylène pediu após tocar na área com um pouco mais de força.

— Não... não tem problema — Henri disse, com os olhos fechados e com semblante de dor.

Mal sabia ele que Mylène havia dosado a força de propósito; não queria que ele notasse o rubor intenso que subiu à sua face após a explicação sobre o seu cheiro.

As Incertezas da FortunaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora