Capítulo 19 - Fim da Temporada

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Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental. Este capítulo contem cenas de abuso psicológico.

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A exaustão tomava o corpo de Mylène de todas as formas possíveis, apesar de estar sentada há tanto tempo que nem tinha ideia de quantas horas ou, pior, dias tinham se passado. Não conseguia comer, sofria com o calor insuportável e sua mente não parava um minuto sequer, revivendo o momento de sua captura e conjecturando todas as possibilidades de sair viva daquela situação junto de sua mãe e suas empregadas. E os braços e pernas presos à cadeira não tornavam a experiência mais confortável.

Ela estava ali, no porão da mansão Dupain, desde a madrugada em que havia entrado no escritório de Hugo com a chave mágica de Henri.

Tudo estava indo tão bem...

Tomara cuidado para não fazer barulho, havia vasculhado o local e rapidamente encontrara o que precisava: provas que comprovavam que o pai estava envolvido com tráfico humano. Eram contratos e mais contratos entre diferentes países, de Kremlim a Hassam. À primeira vista, pareciam negociações de tecidos, mas entre eles havia folhas parecidas com as que vira nas mãos do pai no dia do festival da primavera, descrevendo o tipo de transação e discriminando a quantidade de "mercadoria" por sexo, idade, biotipo e para que tipo de trabalho seria mais indicada. Ao final, em vermelho escarlate, brilhava o carimbo de assinatura "VD".

Por alguns segundos se sentira a mulher mais poderosa do continente. Deixaria tudo minuciosamente arrumado, voltaria para o seu quarto e no dia seguinte levaria as evidências para o Refúgio. Assim que Gaspard chegasse, contaria o que havia acontecido e, sem dúvida, ele a apoiaria. Hugo Dupain só perceberia que havia sido encurralado quando o exército Beau invadisse o seu escritório com um mandado de prisão.

Infelizmente sua alegria havia durado pouco.

Seu pai e Loic apareceram quando estava prestes a deixar o local. Os dois homens se encararam e, por fim, o lacaio se virara para ela, tapando suas narinas com um pano. Imediatamente sentiu o cheiro característico de clorofórmio. Não demorou para o mundo de Mylène rodar e ficar todo escuro. Ao recobrar a consciência, ela já estava presa e amarrada.

— Dormiu bem? — A voz do pai ecoara no ambiente lúgubre decorado apenas pela caldeira do porão da mansão dos Dupain.

— Seu canalha! — Mylène tentara gritar, mas percebeu que ainda estava atordoada pelo composto anestésico que a apagara.

Em resposta, Hugo Dupain apenas rira de desdém.

— Você é realmente irmã de León e filha de Avril Dupain! Acredita que os dois disseram as mesmas palavras quando descobriram sobre os meus... negócios paralelos? — Ele a incitara, abrindo um sorriso maligno. — Felizmente você me é útil. Se colaborar comigo, não sofrerá nenhuma consequência muito grave. Quer dizer, pelo que eu soube, León nem teve tempo de sentir qualquer coisa. O tiro foi certeiro, bem no centro da testa.

Ao ouvir aquilo, o coração de Mylène quase havia parado de tanta dor e desespero. Desconfiara que o pai era responsável pela morte do irmão, mas uma parte de si ainda insistira em achar que aquilo não era real. León tinha uma natureza tão gentil... Se estivesse vivo, provavelmente estaria lutando para tornar o mundo mais justo. Era sua missão, por isso cursava Direito. Também tinha a questão do casamento. León não se importava com status, nem com relacionamentos; tudo que desejava era estudar para exercer bem a sua profissão. Porém, isso não servia para Hugo Dupain, então ele o descartou como um guardanapo manchado.

A ira rugira dentro dela.

Completamente desgovernada, havia falado tudo que lhe veio à mente, xingara o pai de todas as formas imagináveis e acabara fazendo ameaças, dizendo que se fizesse algo com ela ou sua mãe, sua verdadeira faceta logo seria revelada para o mundo.

Este fora o seu único erro.

Se não tivesse se descontrolado, Hugo não teria se preocupado em prender as únicas pessoas próximas dela na mansão: Rosane e Laila. Aliás, talvez ele apenas as dispensasse e agora estariam seguras, longe de Mylène. Como havia dito que revelaria os planos do pai, ele acabou inferindo que ela tinha aliados em algum lugar. Duas empregadas não tinham o poder de derrubar alguém poderoso como Hugo Dupain, mas poderiam repassar informações. Seria mais fácil eliminá-las, com certeza, no entanto preferiu utilizá-las como mais uma moeda de barganha contra a filha.

Enquanto fosse conveniente, continuariam vivas. E o mesmo valia para ela e sua mãe.

Era isso que a mantinha firme e a fazia suportar a desesperança que tentava dominá-la em meio à escuridão do ambiente e ao calor úmido da primavera Beau. Ainda via uma luz no fim do túnel: Gaspard. Odiava ainda ter que depender tanto dele, mas em todos os planos que havia traçado na sua cabeça, esperar que o noivo entrasse em cena ainda era a jogada mais segura.

"Droga, droga, droga!", ela repetiu mentalmente.

Então, Mylène ouviu barulho da porta se abrindo, seguido dos passos de alguém descendo a escada. Apesar do extremo cansaço, ela se esforçou para ficar ereta na cadeira e demonstrar o mínimo de dignidade que ainda tinha. Pelo ritmo das passadas, concluiu que quem a "visitava" era justamente o homem que tinha a infelicidade de chamar de pai. Quando finalmente acendeu uma lamparina, ela fez questão de lhe lançar o seu olhar mais fulminante. Precisava demonstrar que conseguia lutar contra Hugo Dupain.

— Olá, querida filha! — Hugo exclamou num tom falso de ternura. — Espero que mais um dia tenha lhe feito refletir sobre as suas atitudes.

— Sinto decepcioná-lo... Quer dizer, não sinto, não. — Mylène respondeu com desdém.

— Que gênio horrível. Sem dúvida puxou da sua mãe. — Ele a repreendeu, mas suas feições mostravam uma visível diversão.

A mãe sempre fora seu ponto mais sensível. Se as mãos de Mylène não estivessem atadas, ela estaria pronta para saltar no pescoço de Hugo e esganá-lo até a morte. Não se importaria de ser presa. Na verdade, sabia que valeria a pena pagar o preço em troca de livrar o mundo daquele monstro.

— Não precisar fingir educação com você é a única alegria que tenho neste porão.

— Também me dá certa alegria não precisar esconder mais nada de você — ele disse se aproximando ainda mais da cadeira onde ela estava. — Por exemplo, posso expressar neste momento o quão sortuda é. Apesar de tê-la encontrado bisbilhotando o que não devia, eu fui misericordioso e não me livrei de você. Aliás, ainda estou lhe dando a chance de confessar como conseguiu entrar no meu escritório e revelar quem mais sabe dos meus negócios... paralelos.

Agora que estava mais próximo, Mylène conseguia enxergar os lábios comprimidos e a impaciência estampada nos olhos de Hugo. Provocá-lo um pouco mais naquele instante poderia ter consequências mortais. Assim, optou por uma saída já conhecida.

— Eu já expliquei, você esqueceu a porta aberta — Ela repetiu pela milésima vez.

E pela milésima vez, Hugo respondeu:

— Você sabe que eu não sou o tipo de homem que esquece uma porta aberta.
Sim, ela sabia. Só que nunca admitiria que conseguira entrar por conta de um artefato mágico emprestado de Henri De la Source. Artefato este que se encontrava entre a sua pele e o espartilho. Por sorte, quando Hugo rompeu pelo escritório, sua primeira reação foi jogar a chave no decote do vestido, agora completamente imundo.

— Mylène. Realmente não vai me dizer nada? — Hugo Dupain ameaçou.

Ela engoliu seco. Não, não tinha nada a dizer. Contudo ainda precisava expressar isso de forma que não o aborrecesse. Como faria isso? Sua mente parecia ter parado de funcionar.

— Se não disser, receio que precisarei lhe dar uma prova de que não tenho tempo para brincadeiras. — Hugo voltou a falar, esbanjando um sorriso sinistro nos lábios. — Quem sabe se eu trouxer um pedaço de uma de suas empregadas você não se sinta mais "à vontade" para falar?

— Um... pedaço?

— Podemos começar com alguns dedos e talvez uma mão ou um pé depois? Se bem que se demorar mais um dia para me dar a informação que quero, talvez seja mais fácil trazer o corpo inteiro para você entender que estou falando sério — ele colocou a mão no queixo, pensativo. — Por quantos dias um ser humano pode viver sem água? Três? Quatro?

Maldito.

Mylène queria gritar, espernear, acabar com aquele homem. Percebeu que, se as mãos estivessem livres, realmente não hesitaria em matá-lo. Conhecia bem o corpo humano, iria direto nos pontos vitais. Mas talvez a morte fosse muito branda para ele. Seria melhor mantê-lo vivo, para que pudesse torturá-lo, quebrá-lo por dentro. Sim, era isso que faria. O deixaria sem água assim como estava fazendo com Rosane e Laila, depois o afogaria em água salgada e então...

— Senhor! — A voz de Loic soou pelo porão.

— Agora não, Loic — Hugo o repreendeu, sem tirar os olhos da filha, que estava completamente enfurecida.

— Senhor, é urgente. É sobre os seus negócios com o senhor Verry!
Ao ouvir as palavras do lacaio, o sorriso sinistro que Hugo Dupain esbanjava finalmente desapareceu. Uma veia de raiva surgiu na sua testa, mas seus olhos ainda demonstravam um brilho assustador. Na mente de Mylène, ela não parava de pensar como seria incrível cortar seus membros e exibi-los em praça pública.

— Foi salva pelo gongo, mocinha — ele comentou com uma estranha calma. — Estava prestes a não ser mais tão piedoso, mas você acabou me dando um presente incrível.

— Que presente? — Ela perguntou cerrando os dentes.

— Ora, de presenciar que você é realmente minha filha! — Hugo comentou, já se afastando dela e começando a subir as escadas. — O jeito que me encarava... Sei bem o que estava pensando, Mylène. — Parou e se virou para encará-la uma última vez. — Eu sei que você me considera um monstro, mas já parou para raciocinar que você também possa ser um?

Os olhos verdes herdados do pai se arregalaram imediatamente. Não teve tempo de responder à altura porque logo a porta se fechou e ela se viu no escuro novamente.

Sentia vergonha, estava enojada com todos os pensamentos que acabara de ter. Pensamentos estes que vieram naturalmente e que, de certa forma, sentira prazer ao imaginar o dia em que se tornariam reais. Será que ela era uma espécie de monstro adormecido? Daqueles que despertam seu pior lado após uma situação traumática e se tornam seres cruéis? Será que seu pai já se sentira assim também?

Dane-se, não tinha cabeça para pensar nisso.

Ainda no escuro, Mylène sentiu as lágrimas de raiva e desespero rolando pelo seu rosto. A última vez que se sentira impotente dessa forma fora quando conheceu Gaspard. Não sabia mais o que fazer, pensava estar fadada a ser um fantoche de Hugo para sempre. Então, ele apareceu e ofereceu uma nova vida. Não era a que imaginava para si, mas sem dúvida era melhor do que a que estava vivendo. Agora ela estava ali, esperando pelo noivo mais uma vez.

Até quando teria que ser assim?

Confiava em Gaspard, mas naquele momento ele se encontrava sabe-se lá onde, quem sabe em um camp e com a irmã desaparecida. E se ele resolvesse ficar por lá mais tempo para compensar os anos perdidos? E se ele nunca mais voltasse?

Se Rosane e Laila estavam prestes a morrer, Mylène precisava mudar de estratégia o mais rápido possível. Entre os planos que se formaram em sua cabeça no tempo que passara sozinha, o segundo que tinha mais chances de sucesso era de dar um jeito de fugir da mansão e se esconder no Refúgio. Ficaria enviando recados, ameaçando contar o segredo de Hugo para as autoridades caso ele ou seus comparsas ferissem a mãe e as empregadas. Infelizmente, havia a possibilidade de o pai também usar essa mesma cartada contra ela, exigindo a sua volta. Mas agora, ao menos, poderia contar com Henri e os demais para confabular novas ideias.

Sem perder mais tempo, começou a mover o tronco da maneira que podia. Não tinha a menor ideia de como era o nó que prendia suas mãos nas costas, mas o da cadeira não parecia ter muitas voltas e talvez com um grande impacto ela conseguisse se livrar dele. E isso se confirmou ao sentir a pressão que a prendia na cadeira um pouco mais leve ao parar de se mexer.

Agora era a hora do impacto. Firmando bem os pés no chão, Mylène jogou o corpo pra frente e depois se jogou com tudo para trás. O impacto produziu um barulho surdo que provavelmente havia sido abafado pelo barulho da caldeira. Já no chão, ela percebeu que o tronco e as pernas estavam praticamente livres, o que era ótimo. Infelizmente, a dor no polegar direito não permitiu que ela celebrasse. Desconfiava que havia fraturado algum osso, provavelmente o metacarpo.

De repente, uma luz voltou a brilhar no porão. Mylène ficou tão assustada que esqueceu o dedo machucado.

— Mylène! — A voz de Henri chegou aos seus ouvidos.

— Não pode ser! — Ela retrucou, voltando a respirar. — Henri! O que está fazendo aqui?

— Isso é o que chamam de pergunta retórica, não é? — Ele disse, aparecendo no campo de visão de Mylène e suspirando de alívio ao encará-la. — Existe alguma resposta além de "eu vim te salvar"? Aliás, por que você está no chão?

— Isso não é importante! — Mylène disse. — Ajude-me a levantar e a sair dessa cadeira.

— Seu desejo é uma ordem — Henri respondeu com uma reverência rápida.

— Henri, quinze minutos! — Uma voz que reconheceu ser a de Janice avisou bruscamente, num tom contido.

— O bando está aqui?! Vocês são loucos! — Mylène exclamou, mas não conseguia parar de sorrir. Afinal, se Henri e Janice estavam ali é porque haviam dado um jeito de passar pelos criados da casa. E, com mais gente a seu lado, o resgate da mãe e das empregadas se tornaria mais fácil.

— Louco é o seu noivo que bolou esse plano que exige que todos nós estejamos sincronizados para montar uma grande cena! — Henri disse com um dos seus sorrisos atrevidos, enquanto a ajudava a se colocar de pé.

— Gaspard? Gaspard está aqui?! — Mylène exclamou chocada.

Com Gaspard de volta e ainda um plano em andamento, a esperança voltava a brilhar dentro de si.

— Ainda não, mas logo vai estar. E você vai recebê-lo no saguão da Mansão Dupain com todas as provas que incriminam o seu pai em mãos — ele respondeu, cortando as cordas que prendiam as suas mãos.

— Oh não... — Mylène sentiu a voz falhar. — Henri, se esse é o plano, precisaremos de outro.

— Por que diz isso?

— Eu achei os documentos, mas meu pai deve ter se livrado deles assim que me prendeu aqui! — Ela se desesperou, tremendo ao imaginar todo esse trabalho havia sido em vão e poria em risco a vida de todos.

— Como diriam Arturo e Ariana, por Kali! — Henri comentou, achando graça. — Realmente o capitão Orléans merece a fama que tem. Acredita que ele também levantou essa possibilidade? — Naquele momento, ela finalmente sentiu os braços livres. — Voilà!

— Obrigada! — Mylène agradeceu e checou a mão discretamente. Parte do seu polegar estava completamente roxa, mas isso precisaria esperar. — Mas o que Gaspard disse?

— Disse que achava difícil Hugo Dupain ter se livrado dos documentos — Henri respondeu rindo. — E, caso não conseguíssemos achar outros, você deveria levar qualquer papel do escritório dele para o saguão mesmo assim.

— Imagino que ele não deve ter dito mais nada depois disso...

— Nada. Apenas disse para assegurar que você estivesse no local certo ao badalar da meia noite — ele disse para depois se lembrar. — Ah! E avisar que você precisaria concordar com tudo que ele falasse, inclusive sobre uma suposta carta que você escreveu.

— Uma carta?

— Isso.

— Vocês têm dez minutos — Janice anunciou.

— Perfeito! — Henri exclamou. — Consegue correr? — Perguntou, ajudando-a a se levantar.

— Eu daria um jeito mesmo que não conseguisse — ela respondeu, começando a subir as escadas o mais rápido que podia.

Após cumprimentar Janice rapidamente, os três seguiram pelo corredor que levava ao escritório de seu pai. De frente à porta, ela levou a mão boa ao decote e retirou a chave mágica que ainda estava com ela.

— Henri! — Janice censurou o líder rebelde.

— O que é? Eu não fiz nada! — Ele se defendeu.

Mylène logo entendeu que muito provavelmente Henri estava olhando para onde o artefato estava. Ela riu, na tentativa de ignorar o arrepio que subiu pelas suas costas, resistindo a vontade de encará-lo e ver se ele exibia mais um de seus sorrisos ou se o semblante estaria sério como na vez em que a enganara para sentir o seu perfume. Havia outras prioridades naquele momento.

Assim que abriu a porta e entregou a chave a Henri, Janice continuou na porta e os dois começaram a revirar o escritório em busca dos documentos que acabariam com o esquema nefasto de Hugo Dupain. Não demorou muito até que encontrassem um fundo falso em uma das gavetas com todos os papéis que Mylène planejava levar para o Refúgio antes de ser jogada no porão.

— Estou feliz em ter encontrado as provas, mas ao mesmo tempo me sinto ofendida. Meu pai realmente achava que eu não conseguiria sair dessa?

— Um bom jogador nunca subestima seus adversários — Henri comentou. — Nunca vi o senhor Dupain, mas daria tudo para ver a reação dele ao descobrir que não só o genro armou contra ele, como a filha tinha as provas finais para dar o xeque-mate.

— Henri, cinco minutos— Janice falou. — Eu e você precisamos sair daqui!

— Ué. Vocês não vão comigo para o saguão?

Em resposta, Henri sorriu, deu um passo para frente e segurou a mão esquerda de Mylène, que não estava fraturada.

— Nem eu nem Janice podemos ficar. Não podemos correr o risco de sermos reconhecidos... — Ele falou num tom estranhamente carinhoso. — Vá agora para o saguão e destrua Hugo Dupain! Depois passe no Refúgio, sua outra mão precisa de cuidados.

***

— Senhorita Mylène! — Rosane e Laila gritaram assim que a viram chegar no saguão principal.
Mylène sentiu uma onda de alívio tão forte ao ver as duas criadas que suas pernas tremeram e ela quase derrubou o maço de papéis que carregava junto ao peito.

— Vocês estão bem, não estão? — Mylène perguntou só para garantir.

— Estão ótimas, senhorita! — Manon, a cozinheira da mansão Dupain, manifestou-se enquanto entregava um copo de água para Rosane. — E duas jovens moças também já estão com a senhora Avril, então não precisa se preocupar com mais nada. A não ser acabar com o miserável do seu pai.

Mylène se assustou com o tom da cozinheira. Ela realmente não media palavras para se expressar, mas estava feliz em saber que ela era uma aliada em meio à criadagem de Hugo Dupain. Mas não havia nenhum outro criado à vista. O que será que tinha acontecido?

— Senhorita Mylène, que bom vê-la sã e salva! — Anton surgiu correndo do corredor que dava para a cozinha. — O senhor Gaspard e os demais já estão na propriedade e logo estarão aqui. — Ele se virou para a direção de onde veio e perguntou para o que parecia o nada. — Conseguem me ouvir bem daqui?

Vários "sim" ecoaram no saguão.

Foi então que Mylène notou o contorno do que pareciam ser pessoas perto da parede. Por conta da falta de lamparinas naquele ponto, o breu não permitia que quem estivesse na claridade as enxergassem.

— Quem são? — Mylène perguntou discretamente para o cocheiro ao seu lado.

— São periodistas dos tabloides, tribunas e jornais que circulam na capital, senhorita.

O queixo de Mylène caiu. A presença dos periodistas ali deixava claro que, independente do que estava prestes a acontecer, amanhã toda a cidade, quiçá o país, saberia todos os detalhes. Isso arruinaria completamente a reputação do pai ou acabaria com a sua. Confiava em Gaspard para garantir que a primeira opção acontecesse.

Num grande relógio que ficava no saguão, os ponteiros marcavam meia-noite e cinco quando o barulho de portas pesadas se abrindo ressoou. Ouviram sons de passos e Hugo Dupain, acompanhado de Loic, apareceu. Ao ver Mylène livre no saguão e reconhecendo os documentos que ela portava, uma fúria intensa passou pelos olhos, porém se recompôs quando vários soldados, entre eles o temido general Nord, surgiram atrás dele. Segundos depois, Gaspard apareceu, correndo em direção a ela.

— Mylène! Você está viva! — Ele exclamou, segurando os seus braços como se quisesse averiguar que nenhuma parte estava faltando. — O que houve com o seu dedo?

— Não é nada grave! — Mylène respondeu com um sorriso. Era muito bom ver Gaspard de novo, principalmente quando sabia o que os dois estavam prestes a fazer.

— Certo... — respondeu, ainda preocupado. Sussurrou de uma forma que só os dois ouvissem. — De la Source passou o recado, certo?

Ela concordou com a cabeça e Gaspard se voltou para a porta do saguão, apoiando uma mão no ombro de Mylène.

— Vai dizer que estou mentindo agora, senhor Dupain? Olhe o estado em que minha noiva se encontra! As roupas surradas, os lábios ressecados, os punhos e braços esfolados, muito provavelmente pelas cordas que a prendiam. Um de seus dedos está claramente quebrado! Se meu empregado não tivesse chegado a tempo, como será que estaria?

— Por favor, Vossa Excelência! — Hugo disso, soltando um riso desdenhoso. — Isso não passa de uma armação bem articulada para me incriminar. E, claramente, minha desonrosa filha está envolvida.

— Depois de acharmos os galpões cheio de pessoas doentes e desnutridas, compararmos o seu carimbo com os documentos que foram descobertos nas instalações e ainda chegar aqui e encontrá-la dessa forma, o senhor ainda acha que tudo não passa de armação? — Gaspard questionou, abismado com tamanha cara de pau.

— Vossa Excelência, creio que seus sentimentos por Mylène o impedem de ver a verdade — Hugo respondeu, colocando-se no meio do saguão. Era sempre uma jogada para mostrar confiança e que dominava a situação. — Vamos relembrar alguns fatos. Conforme o General Nord me informou, o senhor estava fora da capital em uma missão, correto?

— Correto.

— Pois minha filha, além de não me contar que sabia da sua ausência, por dois dias deixou a mansão com o seu cocheiro, alegando que ia almoçar com o senhor! — Hugo levou a mão à boca e fingiu choque. — Mylène, não me diga que isso não passa de um golpe para renegá-la e você poder viver um romance com um mero empregado?

— Como ousa! — Gaspard exclamou com raiva.

— Controle-se, capitão! — O general Nord interveio. — Senhorita Dupain, é verdade que sabia da ausência do seu noivo?

— Clube do livro — Gaspard sussurrou ao seu lado.

— Sim, senhor! — Mylène entendeu a deixa e respondeu prontamente. — Mas ao contrário dessa acusação sem cabimento, eu apenas saía para me encontrar com minhas companheiras de clube do livro.

— Acho importante mencionar que a senhorita se graduou em Literatura na Universidade da Capital, general. — Gaspard complementou a fala da noiva. — Desde que começamos a nos relacionar, permito que frequente esse clube, já que ela me assegurou que nunca atrapalharia seus deveres como futura marquesa.

— E você já foi a esse local, capitão? Como sabe que minha filha não esteve o enganando esse tempo todo? — Hugo Dupain questionou, cruzando os braços. Conhecendo o pai, Mylène tinha certeza de que ele não gostara de saber que o marquês e Capitão do Oeste autorizava a filha a praticar atividades impróprias para uma futura dama da nobreza Beau.

— Ah, senhor? — A voz de um soldado interrompeu a sequência de acusações. — Por coincidência, eu e mais dois colegas estivemos nesse clube do livro enquanto buscávamos pelos foragidos do bando de De la Source.

— Apresente-se, soldado. — O general Nord ordenou.

— Alferes Renaud se apresentando, senhor! — O soldado bateu continência.

"Como esse homem tem a habilidade de estar nos lugares certos e na hora certa?", Mylène se questionou ao ver o soldado mais uma vez.

— Ah, é você, Renaud — o general comentou ao reconhecê-lo. — Poderia acompanhar o capitão Serein até o local de clube do livro para averiguarmos essa informação?

— Sim, senhor! — Renaud bateu continência mais uma vez.

— Com todo respeito, general Nord — Hugo Dupain voltou a falar num tom presunçoso. — Dado todo esse cenário criado para me incriminar, tenho certeza que vocês chegarão lá e encontrarão várias estantes cheias de livros. — Virou-se para Gaspard. — Agora me admira o senhor não ter desconfiado em nenhum momento dessa tal carta que sua noiva enviou, contando tudo que sabia sobre eu estar envolvido com tráfico de pessoas em Chambeaux, antes que eu supostamente a prendesse no porão.

Lá estava a "suposta carta" que Henri havia comentado.

Hugo Dupain parou por alguns segundos, parecendo refletir sobre o que estava acontecendo, antes de continuar:

— É absurdo! Todos sabem que sou um comerciante honesto do ramo de tecidos. Podem perguntar a qualquer um dos meus clientes, nunca os deixei na mão ou atrasei qualquer entrega de produtos. Sempre fiz de tudo para dar o melhor para a minha família, algo que minha filha ingrata claramente não reconhece.

A fúria que tomara Mylène mais cedo voltara a surgir dentro de si. Se Gaspard ainda não estivesse a segurando, finalmente tornaria seus desejos mais repulsivos em realidade e estrangularia o pai na frente de todos.

— General Nord, por favor... — Gaspard falou num tom cansado. — Não aguento mais ouvir tantas mentiras saindo da boca desse homem. Permita-me usar o meu último recurso!

O homem mais importante do exército Beau fechou a cara ao ouvir as palavras de Gaspard. No entanto, após alguns segundos de reflexão, ele balançou a cabeça, concedendo a permissão para o subordinado.

— Você está com os documentos? — Gaspard se dirigiu à Mylène.

— São estes aqui! — Ela respondeu, com o coração acelerado. Estava tão compenetrada no que estava presenciando que se esquecera de que portava as peças-chave para o plano.

— Entregue-os, por favor. — Gaspard pediu em voz alta para depois sussurrar. — E preste atenção na cor do anel enquanto eu estiver falando.

Sem questionar, Mylène colocou os papéis nas mãos de Gaspard. Ele não era do tipo que usava anel e tinha certeza que não portava um até alguns segundos atrás. Apesar de estar completamente envolvida na atuação, Mylène era uma pessoa detalhista e, sem dúvida, teria notado aquele artefato de aparência antiga e com uma enorme pedra cinza.

— Aqui está a prova que não só minha noiva é inocente, mas também que Hugo Dupain e Michele Verry então envolvidos nos desaparecimento de várias pessoas na capital — Gaspard entoou sua voz mais alta e imponente, começando a se afastar de Mylène e se aproximar de Hugo. — Veja com os próprios olhos, general.

O general andou até onde Gaspard estava e pegou os papéis, analisando-os minuciosamente.

Naquele momento, Mylène percebeu que Hugo Dupain esboçava um sorriso vitorioso. A julgar por tudo que estava presenciando, provavelmente já sabia que Mylène e Gaspard haviam tramado contra ele. Mesmo assim, achava que sairia ileso daquele salão? Será que ainda insinuaria que os documentos eram falsos e pediria uma investigação, o que lhe daria tempo para bolar um contra-ataque?

— Capitão Serein, você já lidou com um caso parecido ao norte, não é? — Gaspard chamou, de repente. — Poderia vir até aqui e checar esses documentos também?
Serein, um dos poucos companheiros de Gaspard que conhecia pessoalmente, concordou com a cabeça e se aproximou de Nord, que entregou os documentos um tanto a contragosto. O que estava acontecendo?

— Senhor Dupain, diga-me: o senhor acredita de verdade que sua filha, minha noiva, Mylène Dupain, armou contra você? — Gaspard, de repente, voltou a falar.

— Sim, acredito.

Seguindo as instruções do noivo, Mylène reparou que, após a resposta do pai, o cinza do anel foi substituído por um tom verde-escuro. Ou seria apenas algum jogo de luz?

— Então, significa que o senhor não está envolvido em nenhum esquema de tráfico humano? — Gaspard perguntou.

— Claro que não. Isso é absurdo!

De repente a cor da pedra passou a ser vermelha.

Não era jogo de luz.

Aquele anel definitivamente era um artefato mágico! E, dado a forma que havia reagido às respostas do pai, sua habilidade consistia em indicar se alguém estava mentindo ou falando a verdade.

— Você nunca tinha estado nos galpões onde encontramos aquelas pessoas? — Mais uma pergunta feita por Gaspard.

— Nunca nem estive naquelas partes da cidade.

O vermelho permaneceu. Nesse momento, Mylène percebeu que tanto o general Nord quanto o capital Serein olhavam discretamente o anel. Eles sabiam como ele funcionava. Aquele era o último recurso de Gaspard. Mesmo que todas as provas fossem refutadas, a mágica atestaria contra Hugo Dupain. E estava surpresa que o próprio exército quebrasse as leis do país: artefatos mágicos, por mais que existissem e fossem utilizados pela população, eram proibidos em Chambeaux.

Gaspard havia provado para o seu superior que o pai mentia. Não teria sido mais fácil usar o anel desde o início?

Lembrou-se dos periodistas no breu do corredor. Eles estavam presenciando tudo. Se algo não ficasse claro, precisariam perguntar como três oficiais do alto escalão do exército chegaram à conclusão de que Hugo Dupain era de fato um criminoso. E como nunca poderiam revelar que tinham um anel mágico, Gaspard inventou uma carta, apresentou várias evidências e agora dava o último golpe com uma série de papéis que, de longe, pareceria ser a prova definitiva de todas.

— Senhorita Dupain, suponho que você tenha achado esse documento no escritório do seu pai? — General Nord questionou.

— Sim, senhor — Mylène respondeu com o coração na boca. — Assim que Anton me salvou, arrombamos a porta do escritório e eu acabei o encontrando — inventou.

— Mais uma mentira, senhoras e senhores! — Hugo debochou, mas era possível ver que seu semblante demonstrava certa preocupação. — General Nord, se for preciso, vamos abrir logo essa investigação. Garanto que provarei a minha inocência.

Nord ignorou Hugo e perguntou:

— Serein, o que me diz?

— Esses documentos, sem dúvida, são provas suficientes para incriminar o Senhor Hugo Dupain, general.

— Ultraje! — O acusado bradou, finalmente perdendo um pouco da compostura. — Esses papéis podem ser provas plantadas. Uma investigação precisa ser aberta!

Hugo Dupain estava bastante nervoso agora. Mylène viu uma brecha para levá-lo ao limite.

— O senhor está duvidando da autoridade do exército? — Ela sugeriu.

— Claro que não! — Hugo se apressou para responder, completamente desesperado — Eu e o general somos velhos conhecidos e...

— Homens, prendam o senhor Dupain — Nord cortou.

— O quê? — Hugo exclamou quando os soldados o cercaram. — Isso é um absurdo! Sou um homem de família! Essas acusações são absurdas!

— Tão homem de família que matou o próprio filho e envenena a própria mulher para mantê-la calada! — Mylène soltou sua última cartada.

O saguão foi tomado por exclamações de todos os presentes.

— Mylène, eu tenho vergonha de chamá-la de filha! Como ousa me acusar assim na frente de todos? — Hugo gritou, vermelho de raiva.

— Não estou mentindo! — Ela vociferou , virando-se para o local onde os periodistas se encontravam. — Se quiserem uma prova, subam as escadas e vão até o último quarto à direita. No momento, minha mãe está sendo finalmente tratada, mas vocês podem questionar a criadagem e chamar médicos se quiserem atestar o que eu digo! E quando minha mãe acordar, ela certamente confirmará o que estou dizendo!

Os periodistas saíram das sombras de imediato e começaram a subir as escadas. Do canto de olho, ela viu Gaspard indicando que alguns soldados fizessem o mesmo.

— Mylène, sua fedelha imprestável! Eu deveria ter acabado com você quando tive a chance!
Novamente o saguão foi tomado por exclamações de horror. E, assim, o pai havia cometido o único erro que ela mesma cometera antes de ser amarrada no porão: devido ao nervosismo, acabara saindo do personagem e falando demais.

***

Mylène mal conseguia disfarçar sua aflição. Apesar da felicidade de finalmente saber que Hugo Dupain pagaria por tudo que havia feito, ela mal pregara os olhos durante o restante da noite, pensando no assunto que estava prestes a tratar com Gaspard. Fora uma decisão difícil, mas ele a compreenderia, não é mesmo? Não deixaria de falar com ela nem de apoiá-la, certo?

Queria acreditar que sim, mas estaria mentindo se dissesse que estava completamente confiante sobre como o noivo reagiria. Só havia uma forma de descobrir. Respirou fundo e empurrou a porta da sala de visitas.

Lá estava o Capitão do Oeste, o marquês Gaspard Orléans, sentado em uma dos sofás. Ao vê-lo, Mylène prendeu a respiração por alguns segundos. Sempre considerou a beleza do rapaz estonteante, com sua pele marfim, seus músculos bem delineados, seus olhos acinzentados e cabelos castanhos sempre presos num rabo de cavalo firme. Mas agora parecia que havia algo mais? Seu coração se acelerou mais ainda, provavelmente pela ansiedade do que estava prestes a fazer.

— Você sabe que não precisava receber os periodistas menos de um dia depois de expormos a podridão do seu pai para o mundo, não é?

Mylène riu diante do comentário, afastando para longe tudo que estava pensando até então e se sentou ao lado dele no sofá.

— Sim, eu sei! — Ela respondeu. — É só que... Depois de esperar tanto para me livrar de Hugo e tudo ter acontecido da melhor maneira possível, eu simplesmente não conseguiria adiar mais um dia. Quero que todos fiquem sabendo de todas as atrocidades que ele cometeu com a própria família e com muitos outros inocentes.

— Justo — Gaspard disse, deixando a xícara de chá na mesa de centro.

— Aliás, o seu plano foi brilhante, Gaspard!

— Obrigado, mas você excedeu minhas expectativas com o seu grand finale — ele agradeceu, virando-se para ela. — Além do mais, tudo só foi possível porque pude contar com o bando de De la Source e até com as suas companheiras de Refúgio. E eles só me seguiram pois tiveram certeza da confiança que você depositava em mim.

O comentário deixou Mylène muda por alguns segundos. Não é que Gaspard nunca fosse sincero e direto com ela, mas algo na forma que ele se expressou a tocou profundamente. E isso tornava a sua decisão ainda mais difícil.

— E como podia ser diferente? Você foi a única pessoa que me estendeu a mão quando eu estava desesperada, sem saber que havia uma saída...

— Falando dessa forma, até me faz parecer alguém bom... — Gaspard comentou com um semblante triste que Mylène nunca havia visto.

— Gaspard... Aconteceu alguma coisa? Não encontrou Marianne? — Perguntou preocupada, inclinando-se em direção a Gaspard.

— Aconteceram várias coisas. — Ele suspirou profundamente. — Depois podemos tomar um café para te contar os detalhes, mas sim, encontrei Marianne. E no meio do caminho também descobri que tudo que acreditava era horrendo, o que faz de mim uma pessoa horrenda...

— Você não é...

— Sim, eu sou, Mylène. — Gaspard a interrompeu com um gesto. — Mas não tem problema. Eu tracei um plano para mim. Infelizmente vai exigir que eu continue no exército e Nord não está lá muito feliz comigo.

— Não está feliz com você... — Mylène repetiu confusa. — Ontem o general parecia transtornado, mas pensei que fosse com toda a situação. Me enganei?

— Desconfio que Nord já sabia do esquema do seu pai... Na verdade, no momento, acredito que ninguém no exército seja confiável... — divagou. — Chega de falar de mim. Como está a senhora Dupain?

— Ah! Tanya está com ela agora! — Mylène disse com um sorriso. — Antes de vir até aqui, passei em seu quarto. Apesar de bastante fraca, as bochechas já estão mais coradas, acredita?

— Ótima notícia! — Gaspard exclamou.

— Sim!

Um profundo silêncio pairou sobre eles.

Não saberia explicar os motivos de Gaspard, mas aquele era o momento perfeito para falar sobre o futuro deles. Afinal, agora que Hugo estava sentenciado à morte e sua mãe à salvo, não havia motivo para Mylène continuar com o acordo de casamento entre eles. Ao pensar em tudo que os dois haviam vivido até ali, entretanto, fazia uma parte dela se sentir culpada em tirar de Gaspard o que ele mais almejava.

— Mylène... Eu tenho algo a lhe dizer. — Gaspard esticou a mão e encostou na dela, um pouco hesitante.

Mylène sentiu seu coração batendo nos ouvidos, mas não podia se desvencilhar do toque de forma abrupta, podia? E também não queria. Gaspard era seu amigo, antes de qualquer coisa, e saber que ele estava ao seu lado lhe deixava mais segura.

— Eu... Eu também preciso falar algo importante, Gaspard — falou, apertando a mão dele.

— Ah. Então, por favor. Pode começar.

— Não, imagina! Você se manifestou primeiro!

— Não tem problema.

Ficaram em silêncio novamente por alguns instantes. Diferente do primeiro, esse logo foi quebrado:

— Eu não posso me casar com você — Mylène falou abruptamente, ao mesmo tempo em que Gaspard lhe disse:

— Não podemos continuar com esse casamento.

Ainda em sincronia, os dois arregalaram os olhos devido a surpresa e Mylène levou a mão com uma tala improvisada, escondendo seu riso nervoso. Seus olhos estavam ardendo e havia uma pressão esquisita no seu peito. Gaspard riu, tão fácil, tão simples, e balançou a cabeça, apertando sua mão uma vez antes de soltá-la.

— Sempre me surpreendendo, Mylène Dupain — declarou com um sorriso afetuoso, e Mylène sentiu o alívio escorrer pelo seu corpo.

Finalmente disseram o que precisava ser dito e, aparentemente, era o que os dois acreditavam.
Mylène estava livre de quaisquer obrigações com Gaspard Orléans.

Ela já havia tomado a sua decisão e estava pronta para lutar por ela, mas até aquele momento, até aquele comentário de Gaspard, Mylène não havia parado para raciocinar que não precisaria mais fingir que era amável, delicada e submissa: a mulher perfeita. Também não precisaria inventar desculpas ou ir ao Refúgio de madrugada. Ela não precisaria dar mais satisfações a ninguém, a não ser ela mesma.

Ela finalmente poderia viver a vida que havia imaginado para si e Gaspard estaria ao lado dela, mas não como seu marido.

Tudo o que estava segurando dentro de si pareceu transbordar de uma vez. Ela estava segura. Ela finalmente estava livre. Era tudo que sempre quisera.

— Ei, por que você está chorando? — Gaspard perguntou, inclinando-se em sua direção e levantando seu rosto gentilmente.

— Ah, Gaspard! — Ela disse, secando as lágrimas. — Eu só estou feliz! Verdadeiramente feliz! — exclamou e se virou para segurar as mãos de Gaspard novamente. — Ainda não sei o que houve na sua ausência e que te fez concluir que você é um homem horrendo, mas quero que saiba: você também é um homem maravilhoso e eu tive muita sorte de encontrá-lo!

Gaspard parecia processar o que havia escutado.

E, de repente, ele estava sorrindo. Não um daqueles sorrisos discretos ou quando estava rindo das peculiaridades de Mylène. Seus dentes estavam todos à mostra, seus olhos cinzas geralmente frios pareciam emanar calor, uma covinha surgiu na sua bochecha esquerda. Se o seu noivo, ou melhor, ex-noivo, já era extremamente atraente com seu semblante sério, imagina quando o mundo descobrisse aquele novo charme dele?

— Eu também tive muita sorte de encontrar você, Mylène.

Continua na próxima temporada.

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CRÉDITOS
Autora: Marina Oliveira
Edição e Preparação: Bárbara Morais e Val Alves
Revisão: Mareska Cruz
Diagramação: Val Alves
Ilustração: Fernanda Nia

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