Capítulo 18

20 5 2
                                    


Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental. Este capítulo faz alusão à violência sexual e racial.

--


Gaspard saiu do estado de transe quando os primeiros raios de sol surgiram no horizonte à sua frente. Comandando seu cavalo para virar à direção oposta a que seguia, ele não pôde deixar de estranhar quão irritado estaria, em um dia normal, por demorar a perceber que estava no caminho errado. Pelo menos naquele instante, constatou que a fonte de ódio de si mesmo havia se esgotado depois daquela madrugada, em que sua mente não conseguia parar de reprisar tudo que vivera nos últimos dias.

Destroçado emocionalmente, faminto e montado sobre um animal tão exausto quanto ele, estava em rumo à capital. Continuava indo em frente pois se desse muita atenção para o que acontecia dentro de si, ele acabaria em transe de novo ou, pior, enlouquecendo completamente.

Uma parte sua queria dar meia volta, encontrar o novo local do camp de Marianne. A fúria de Tamara seria difícil de aplacar, mas sua recompensa seria deixar a nobreza e o exército para trás e para sempre. E quando tudo entre eles estivesse resolvido, viveria novos momentos felizes como aqueles que ficaram para trás em sua infância. Já a outra parte ansiava por justiça. Queria acabar com a nobreza podre que insistia em falsas moralidades e em ditar regras ridículas para quem não correspondesse às suas expectativas toscas; queria voltar ao posto de capitão e desmascarar todos que usavam a autoridade para oprimir os mais fracos; queria acabar com os desgraçados que tinham feito aquela atrocidade com os pais de Teresa.

No entanto, as duas partes se calavam quando Gaspard se lembrava de Mylène. A noiva dependia dele para salvar a mãe e se livrar das garras de Hugo Dupain. Ele não queria ver mais nenhuma pessoa perto de si sofrer com as podridões da sociedade Beau, não apenas por ela ser sua amiga.

— Tia Greta estava certa o tempo todo... — deixou escapar em voz alta.

Perto do meio-dia, avistou uma hospedaria de beira de estrada que os soldados sempre usavam para repousar. Ainda que estivesse irritado com o exército, era a melhor de suas opções e seu cavalo precisava muito de um descanso. Após alimentar o animal e deixá-lo descansando, sentiu um certo alívio ao comprar um par de roupas e alugar um quarto para tomar um bom banho. Para sua surpresa, em algum momento ele se deitara na cama, acordando apenas no dia seguinte.

Ainda sentia-se infeliz, mas sua aparência estava melhor e o corpo, pronto para continuar a viagem.

Já no salão da hospedaria, enquanto comia a primeira refeição em mais de vinte e quatro horas, Gaspard fazia de tudo para se concentrar em sua comida, evitando que os seus pensamentos não o traíssem. A cada recordação da reação de Marianne ao saber quem ele era, dava um gole do seu chá camomila. O sabor não lhe apetecia, mas Mylène uma vez dissera que a erva do sul do continente ajudava a acalmar os nervos. Já estava na segunda xícara e pediria mais uma para garantir o efeito e voltar para a estrada.

— Lembram-se daquela missão na fronteira com Piedmont?

— Sim! Foram dez dias de noites mal dormidas, mas conseguimos capturar o criminoso.

De relance, Gaspard olhou para trás e avistou ao fundo quatro soldados novatos se vangloriando de suas missões. Será que ele também já fora assim? Não conseguia lembrar, mas provavelmente não. Afinal, havia optado pela carreira militar para manter o status do Marquesado dos Orléans.

"Grande coisa...", ele pensou consigo mesmo, tomando mais um gole do chá.

— Uma pena não termos chegado a tempo ao camp.

As Incertezas da FortunaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora