Capítulo 4

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Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental.

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Pelo estrondo e a força do impacto, Gaspard entendeu que a explosão não tinha sido perto o suficiente para feri-lo ou ferir Mylène. As pessoas à sua volta, civis em sua maioria, entretanto, não compreendiam isso; os horrores da Guerra do Leste nunca chegaram à capital. Gritos, choros, palavras de desespero tomaram seus ouvidos.

Estariam em guerra novamente?

Como capitão, estava ciente de que deveria agir, e agir rápido. Avisar quem estivesse por perto para proteger a cabeça — apesar de não acreditar que nenhum projétil pudesse atingi-los, Gaspard não arriscaria a vida de nenhum cidadão sabendo que existia essa possibilidade —, orientar essas pessoas a buscarem um abrigo o mais distante possível da explosão e tentar descobrir o que havia acontecido. Mas antes de tudo, seu principal dever como noivo de Mylène era conduzi-la a um local seguro.

Mesmo tendo consciência do que precisava fazer, os lábios da Romaine proferindo o nome de Marianne o paralisaram por alguns segundos. Só havia uma linhagem em toda Chambeaux que concebia descendentes de olhos cinzentos — pelo menos entre a nobreza. Era a dele, os Orléans. Quer dizer, Gaspard até encontrara registros de olhos parecidos com os seus, mas apenas numa ilha gélida para lá de Kremlim durante uma de suas missões. Também investigou em sua juventude por toda a capital algum bastardo de seus parentes para confirmar essa peculiaridade da família, mas a busca não resultara em nada.

Poderiam existir outras pessoas, quem sabe até outros parentes em outras regiões do país, mas tinha a certeza de que a Romaine falava de sua irmã desaparecida. Quantas mulheres chamadas Marianne teriam essa característica tão específica de sua família? Só podia ser ela.

Marianne.

Ouvir o seu nome em voz alta parecia ter lhe acordado de um feitiço, libertando anos de memórias da infância que havia deixado de lado porque parecia se afogar todas as vezes que pensava nelas.

Ambos de mãos dadas no velório do irmão do meio, Martin, que já nascera com um problema nos pulmões. Gaspard tinha cinco anos e a irmã, dez. Marianne apertara sua mão um pouco mais forte, um lembrete de que não podiam chorar na frente das pessoas que enchiam a sala abafada e rodeavam o caixão do irmão.

Ao piscar, Gaspard voltou ao presente e a dançarina não estava mais à sua frente. Aonde fora? Precisava encontrá-la, precisava entender o que ela sabia sobre Marianne.

— Gaspard? Está tudo bem? — Mylène perguntou.

Ele assentiu, mas demorou para reagir.

As lembranças vinham em ondas e Gaspard não conseguia recuperar o fôlego.

Dois anos após o velório. Marianne e Gaspard corriam pelo jardim, em plena chuva de verão. A mãe lhes deu um baita sermão depois, principalmente porque ambos ficaram doentes. Na próxima chuva estavam lá os dois, mais uma vez, pulando nas poças ao som de suas gargalhadas, mas agora estavam espertos: entraram em casa na ponta dos pés, se enxugando escondidos para não levarem uma outra bronca.

— CUBRAM SUAS CABEÇAS E PROCUREM ABRIGO! — uma voz que parecia a sua gritava ao fundo.

Mais um ano se passara. Agora ele e Marianne estavam na biblioteca. A irmã exibia uma expressão taciturna, enquanto fingia ler algo. Pelo que ouvira dos criados, os pais a haviam proibido de manter uma amizade com Adele, a filha mais nova do visconde Curriel, com quem Marianne estava passando bastante tempo nos últimos dias. Sua irmã parecia muito triste e Gaspard nunca gostou de vê-la daquela maneira, então precisava animá-la. Queria perguntar o que havia acontecido entre as famílias para aquela decisão tão abrupta, mas tinha medo de magoá-la ainda mais. Devia ser uma situação difícil, Gaspard nem sabia o que faria se não pudesse falar mais com Marianne, que era sua melhor amiga. Então, em vez de conversar, ele se aproximou timidamente com seu tabuleiro de damas. Ela sorriu de leve, fez um sinal para que ele se sentasse com ela e jogaram a tarde toda. Marianne terminou aquele dia com um sorriso no rosto.

As Incertezas da FortunaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora