Capítulo 2

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Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental.

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O local do festival da primavera não ficava tão longe da casa dos Dupain, mas Gaspard fazia questão que se deslocassem de carruagem mesmo assim. Ele queria ostentar o brasão da família Orléans e exibir para o mundo seu apreço por sua noiva, um movimento estratégico perfeito para que a cidade continuasse falando da futura união entre os dois. Afinal, quanto mais burburinho tivesse, mais fácil seria para seguir com seus planos.

Porém, a decisão de acompanhar Mylène acabou implicando no descumprimento do acordo de que ela teria a permissão para ir sozinha que eles haviam feito antes.

Desde a morte do irmão mais velho na Guerra do Leste, sua noiva não pudera ir ao festival. Não só o desprezível senhor Dupain não permitia, recusando-se a acompanhá-la e a ameaçando com a mãe, como nenhum de seus colegas homens da universidade se dispunham a acompanhá-la. Agora, nem essa oportunidade teria, pois havia finalizado seu curso de literatura no início daquele mesmo ano.

Sabia que nada disso seria um problema para Mylène, que era independente e conseguia se virar sozinha. Entretanto, a sociedade Beau não permitia às boas moças a liberdade de transitarem sem um acompanhante masculino fora do lar, em mais uma das séries de regras estúpidas que governavam suas vidas.

"Mas se o marquês, que por acaso é meu noivo, permitisse, com certeza meu pai não faria objeções", ela explicara e Gaspard aceitara. Não faria diferença alguma em sua vida se sua futura esposa fosse vista no festival sozinha; com o seu título e o dinheiro que a união traria, poucos ousariam questionar seu comportamento.

Porém, diferente do prometido, ambos estavam dentro da carruagem.

— Sinto muito por não ter cumprido o trato — Gaspard finalmente quebrou o silêncio entre eles.

Mylène demorou um pouco para se pronunciar, mas finalmente o respondeu, sem desviar o olhar da janela:

— Quase perdi a compostura quando me avisaram que você me acompanharia.

— Eu imagino... sei o quanto este festival significa para você — Gaspard comentou sinceramente, lembrando-se do falecido irmão da noiva e das histórias que compartilharam juntos nessa festividade primaveril.

Mais alguns segundos de silêncio tenso seguiram e Gaspard podia ver as mãos de Mylène fechadas em punhos no seu colo.

— Confesso que ainda estava com bastante raiva quando entramos aqui. Porém, por onde passamos, houve um burburinho — Mylène finalmente comentou após notar as pessoas que apontavam o dedo sem nenhum decoro para a carruagem e cochichavam entre si. — Provavelmente estão falando sobre o quanto você deve me amar por ter aceitado vir ao festival comigo.

Gaspard arregalou os olhos cinzentos discretamente, mas logo voltou às expressões habituais. Mylène sempre o surpreendia com sua perspicácia, principalmente considerando o pai que tinha. Era quase um milagre que ela fosse tão esperta tendo um idiota como Hugo Dupain como progenitor, que controlaria todos os pensamentos dela se pudesse.

— Será que um dia vou me acostumar com a sua inteligência? — ele se perguntou em voz alta, somente para agradar Mylène. Os meses de convívio já o haviam ensinado que a senhorita Dupain não gostava de ser exaltada pela sua beleza, mas sim pelas suas capacidades.

— Espero que não! — ela respondeu um pouco mais animada, finalmente o encarando com determinação. — Ainda tenho muito o que aprender, então espero continuar surpreendendo a todos com a minha inteligência. Principalmente quando eu oficialmente me tornar a primeira médica do país.

O marquês tentava, mas ainda não conseguia entender essa paixão de Mylène pela medicina, mesmo depois de quase um ano de acordo de noivado. Mulheres Beau podiam apenas se especializar em música, pintura e literatura. Obviamente isso não era o suficiente para a Dupain. Assim, quando ninguém estava olhando ou prestando atenção nela, lá estava a jovem fugindo, lendo e estudando sobre as artes medicinais.

— Verdade. Você terá seu próprio consultório — o noivo comentou.

— Além de todo o material necessário — Mylène acrescentou, com um fantasma de sorriso no rosto.

— E uma biblioteca atualizada.

— Mas antes de tudo precisamos começar a tratar minha mãe.

Após ter dito isso, Mylène esboçou um sorriso amargo, mas resignado. Gaspard tinha plena consciência de que tudo o que a noiva estava fazendo era pela mãe. A alta sociedade de Chambeaux acreditava que a senhora Dupain sofria de uma melancolia severa desde a morte do filho, porém os dois sabiam que não era só isso...

— Sim, será a primeira providência após o casamento. Eu lhe prometo — Gaspard lhe assegurou. — Por sinal, conseguiu ver a senhora Dupain hoje?

— Não, mas em teoria ele deixará que eu a visite na volta...

— Espero que sim. E, como o nosso casamento será daqui a um mês, logo ela estará saudável novamente.

— Que assim seja — Mylène desviou o olhar para o lado de fora novamente.

Que assim seja.

Ela havia usado a mesma frase ao final do primeiro encontro dos dois; uma reunião tramada por Hugo Dupain num dos melhores restaurantes da cidade.

Gaspard ainda se lembrava do olhar triste de Mylène, uma expressão que há muito tempo vira no rosto de sua irmã desaparecida, Marianne. Talvez, por conta disso, ele não conseguiu atuar nem fingir que realmente estava interessado na mulher à sua frente. Ele foi franco sobre suas intenções e, quem sabe por esse mesmo motivo, ela também tenha contado toda a verdade sobre o que acontecia dentro de sua casa, sabendo que revelando sua situação, ela estaria arriscando a si mesma e sua mãe ainda mais.

O tanto que ele se indignou com os absurdos que ouviu não poderia ser descrito. Teve vontade de largar tudo naquele momento e denunciar o senhor Dupain para o exército. Porém, como sempre, a razão de Gaspard falou mais alto. Não havia provas contra Hugo, a acusação poderia prejudicar a senhora Dupain e piorar a situação de Mylène. Pensando em si próprio, ele continuaria carregando o nome de uma família nobre, decadente e sem herdeiros.

Assim, os dois acordaram entre si que a melhor solução para ambos os lados era o do casório e, quando a sobremesa foi servida, eles já haviam discutido sobre termos e condições para que tudo fosse conduzido da melhor forma possível.

— Lembre-se apenas que após a recuperação da senhora Dupain, você precisará honrar parte do nosso acordo em que... — Gaspard interrompeu a quietude entre eles mais uma vez, ligeiramente constrangido.

— Eu irei conceber ao menos dois herdeiros — Mylène completou a frase antes que Gaspard pudesse terminá-la, num tom neutro e sem emoção alguma. — Ainda bem que gosto de crianças...

Com o último comentário, Mylène fechou sua expressão, indicando que não queria mais conversa. O silêncio recaiu sobre os dois.

Quando citavam essa "cláusula" do contrato velado entre eles, era difícil fugir do desconforto. Afinal, se a maior motivação de Mylène era salvar a mãe, a de Gaspard era a de manter a linhagem dos Orléans viva. Para tanto, precisava do ventre da noiva, assim como do dote que viria com ela. Não gostava de tratar mulheres como éguas reprodutoras, mas não podia destruir o legado de gerações da família por um desconforto pessoal.

Parecia calculista da sua parte, mas fizera o possível para que as condições da noiva compensassem.

Sem contar que a sociedade Beau havia ganhado uma nova diversão em seus tabloides de fofoca. Toda a nobreza havia vibrado com união, exceto Greta Orléans, a tia que havia acolhido Gaspard desde a morte dos pais. "Para que continuar com uma família podre como a nossa?" e "Para que envolver a senhorita Dupain nisso?" eram seus questionamentos favoritos desde então. Se dependesse dela, não passariam adiante um nome tão amaldiçoado como o deles.

Ele desconfiava que se a irmã ainda estivesse entre eles, ela também endossaria os mesmos questionamentos, mas como marquês ele tinha deveres. Havia uma série de expectativas e regras que precisava cumprir e Gaspard odiava fugir de suas responsabilidades.

Suspirou. Era irônico demais recordar da irmã logo quando estava prestes a pisar num festival que há tempos havia se perdido em suas lembranças.

— Gaspard? — Mylène chamou, sacudindo-o levemente.

Pelo semblante preocupado da noiva, percebeu que aquela provavelmente não era a primeira vez que ela o chamara.

— Perdão, minha mente estava longe. O que dizia?

— Acabei de ver um cartaz de "procurado" do De la Source e lembrei que li mais cedo que há indícios de seu paradeiro — Mylène declarou, inclinando-se na direção de Gaspard como se estivessem trocando um segredo. — É verdade?

Gaspard suspirou novamente. Henri De la Source era um assunto delicado para o exército. Há tempos ele ganhava as manchetes dos jornais por seus crimes, assaltando casas de famílias abastadas e aterrorizando a cidade.

Havia um boato de que os objetos de valor que conseguia eram sempre redistribuídos para os mais pobres, e que era esse o motivo pelo qual ele era tão popular com as classes mais miseráveis, que estavam cada vez mais inquietas. Muitos cidadãos acreditavam que a causa de De la Source era nobre e correta. Para Gaspard, não passava de uma justificativa furada para roubar.

E como se não bastasse, além de popular, Henri De La Source era extremamente ardiloso e há tempos sua divisão tentava capturá-lo. Todas as informações a respeito do assunto eram segredo de Estado.

— Sempre temos algumas pistas aqui e ali — ele desconversou, com um gesto vago.

— Ah... Isso significa que a matéria do jornal de hoje foi encomendada, certo? Apenas para acalmar os ânimos da nobreza Beau.

Gaspard encarou Mylène abismado. A inteligência da noiva certamente não parava de surpreendê-lo. E, como a única coisa que podia lhe oferecer era a sinceridade, lhe explicou:

— Exato. O duque de Mont Sartre está furioso porque metade da prataria da família foi roubada.

— Metade!? — Mylène se espantou. — Mas eu me lembro da notícia... dizia que fora apenas um quarto!

— Pois é. — Gaspard levantou uma sobrancelha, entretido. — Agora você sabe que ele também teve que dar um certo incentivo para que o jornal o poupasse de tamanha humilhação perante a sociedade.

Mylène não disfarçou a gargalhada.

— Perdão, mas não consegui me conter diante tamanha...

— Pode rir, a história é ridícula mesmo. E mais comum do que aparenta! Porém, dessa vez realmente parece que temos uma pista boa sobre a sua base ser na divisa com Sálaga, mas que jamais repassaríamos para a imprensa oficial. Espero que a próxima manchete não seja encomendada e informe que De la Source apodrecerá para o resto da vida dentro de uma masmorra.

— Hmmm... Vocês pensam na possibilidade de a população se rebelar contra o exército nesse caso, já que De la Source é visto como um herói pelas camadas mais baixas? Que nem aconteceu em Kremlin?

— Isso nunca aconteceria em Chambeaux — ele respondeu de imediato. — Nós estamos preparados para esse tipo de coisa.

Quando Mylène tecia esse tipo de comentário, parecia até que ela admirava os ideais do De la Source. Eram ideias um tanto perigosas para uma futura marquesa. Ele deveria lembrá-la que em Kremlin, os nobres como ele foram todos fuzilados em praça pública?

— Mulheres estudando na universidade nacional também não era algo que aconteceria em Chambeaux há alguns anos. — Mylène retrucou com um ar de diversão, como se sua certeza fosse uma piada.

Sem dúvida, a noiva tinha um bom argumento, mas para Gaspard não havia uma comparação justa ali. Mulheres deveriam ter o direito à educação e a frequentar universidades. Isso era completamente diferente de invasão de propriedades.

Ele estava prestes a replicar quando um tranco na carruagem os avisou que haviam chegado ao seu destino. O tranco também o lembrara que Mylène tinha direito de ter as próprias opiniões desde que cumprisse sua parte do acordo. Além disso, talvez ela estivesse agindo de forma rebelde porque não poderia usufruir do festival da primavera da forma que gostaria — ou, como ele gostava de pensar, porque se divertia com as conversas que tinham tanto quanto ele.

Nada na situação em que estavam era muito justa, mas poderia tentar fazer com que ambos terminassem satisfeitos no fim do dia. Odiaria decepcioná-la.

— Mylène, acho que ainda posso honrar o trato de hoje. — Voltou sua atenção para a noiva, que já estava se arrumando para deixar a carruagem. — Eu vou com você ao festival e, após perambularmos juntos por algum tempo, eu fingiria não estar muito bem. Daí me retiraria para a carruagem e você poderia ficar por mais uma hora no festival, só que sozinha. O que me diz?

— Eu digo que seria perfeito! — Mylène exclamou com os olhos verdes brilhando.

— Então, que assim seja, minha querida noiva. Será um grande sofrimento para mim, mas farei esse sacrifício por você — Gaspard ironizou e Mylène riu.

— Gaspard, você acabou de fazer uma piada?

— Às vezes eu sou agraciado com um tiquinho de senso de humor, Mylène — ele respondeu, e quase como se fosse combinado, Anton, o cocheiro da família Orléans, abriu a porta da carruagem.

Gaspard desceu e estendeu uma mão, oferecendo apoio para Mylène. Ela a segurou e o acompanhou, apertando-a um pouco mais forte, esbanjando um sorriso encantador.

Continua...

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CRÉDITOS
Autora: Marina Oliveira
Edição e Preparação: Bárbara Morais e Val Alves
Revisão: Mareska Cruz
Diagramação: Val Alves
Ilustração: Fernanda Nia

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