Capítulo 16

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Aviso: Essa obra de ficção contém cenas incômodas envolvendo abuso psicológico e gaslighting parental. Este capítulo menciona internação forçada, homofobia e violência étnica.

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Depois de chorar feito uma criança por horas, Gaspard teve uma febre tão alta que quase o fez desmaiar. Na cama, seu estado de consciência alternava entre sonho, delírio e flashes de lucidez que o faziam balbuciar palavras soltas e lamentar ter vindo ao camp até, em algum momento, conseguir adormecer no final da tarde. Ao despertar, reparou que Teresa colocava uma compressa de água fria em sua testa mais uma vez. Ela tinha sido a única constante em meio ao dia que, para ele, só poderia ser descrito como um borrão.

— Finalmente seus lábios voltaram a ter cor — comentou assim que percebeu que ele estava acordado. — Está com fome?

Gaspard respondeu por impulso, negando levemente com a cabeça.

— Ainda assim, precisa se alimentar.

Dizendo isso, ela mergulhou a compressa num balde de madeira e se virou para trás. Quando retornou, trazia em suas mãos uma garrafa de água e uma tigela com uvas, maçãs e avelãs. Na mesma hora, o estômago de Gaspard se revirou. Não saberia afirmar se de enjoo ou fome.

— Bom, você não precisa comer agora, mas não vai escapar da água! — Teresa disse, colocando a garrafa ao lado dele. — Consegue se levantar?

Ao tentar se mexer, deu-se conta de sua fraqueza. Ainda assim, não pediu ajuda. Teresa já o ajudara demais e, de certa forma, começava a sentir vergonha por tudo que não conseguira fingir ou controlar na frente dela. Ela o provocava, mas em nenhum momento fazia piada da sua vulnerabilidade.

Agora notava o quanto estava vulnerável desde o momento que se conheceram. Era como se, aos poucos, ele tivesse tirado várias camadas de uma armadura de guerra. Só que, ao despi-la por completo, não havia mais o Gaspard Orléans que ela avistara no festival da primavera.

Parecia leviano focar em sua imagem naquele momento, mas havia certa lógica por trás: ele era um homem vaidoso. Sim, a alta sociedade Beau exigia ternos alinhados, sapatos polidos e cabelos sem um fio fora do lugar. Só que, no fundo, ele gostava daquilo. E, pensando bem, era o único aspecto de si que nunca mudara.

— Como eu estou? — ele perguntou, antes de tomar um longo gole de água.

— Não é você que deveria me responder essa pergunta? — Teresa rebateu, confusa com o questionamento de Gaspard.

— Eu me sinto como um trapo humano... — resumiu o seu estado mental e emocional. — Mas estou falando de aparência mesmo. Como estou?

— Sem dúvida, um trapo humano — ela respondeu com um meio sorriso.— Mas nisso podemos dar um jeito agora, se quiser.

— Eu... quero.

Sem perguntar mais nada, Teresa se levantou e foi até o baú onde guardava seus pertences. De onde estava, Gaspard viu que ela pegou um pente e um vidrinho de bálsamo parecido com os que já vira Mylène portar na bolsa. Depois se sentou no colchão com ele e pediu que virasse de costas para "lavar" e pentear o seu cabelo.

— Às vezes, durante as viagens da caravana, não temos tempo para tomar um banho decente. Daí eu gosto de aplicar essência no couro cabeludo — ela explicou com uma voz branda no ao mesmo tempo que Gaspard sentia algo sendo derramado sobre a sua cabeça. — Minha vó me dizia que era para evitar piolhos, mas confesso que uso até hoje apenas por conta do aroma.

Gaspard fechou os olhos por alguns segundos e inspirou fundo. Imediatamente, os cheiros de canela e hortelã tomaram suas narinas. Era o mesmo perfume que sempre emanava de Teresa.

As Incertezas da FortunaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora