Sentenciado

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— Eles estão aqui? — Cuspimos as palavras; elas saíram de nós como a água em nossos pulmões tinha saído: expelidas. Depois da água, esta pergunta era tudo o que importava. — Eles conseguiram?
Era impossível ler o rosto de tio Bob na escuridão.
— Quem? — perguntou ele.
— Sam e Jack! — Nosso murmúrio ardeu como um grito. — Sam estava com Jack. Nosso irmão! Eles estão aqui? Eles vieram? Você também os encontrou?
Mal houve uma pausa.
— Não. — A resposta dele foi enérgica, e não havia piedade nela, absolutamente nenhum sentimento.
— Não — murmuramos. Não era eco mas protesto por ele nos ter devolvido a vida. Para quê? Fechamos nossos olhos e prestamos atenção na dor em nosso corpo.
Nós a deixamos sobrepujar a dor em nossa mente.
— Olhe — disse tio Bob após um momento. — Eu, hum, tenho uma coisa para resolver. Descanse aqui um pouco, eu já volto.
Não ouvimos o sentido das palavras dele, só os sons. Nossos olhos permaneceram fechados. As passadas dele se afastaram calmamente de nós. Não podíamos dizer em que
direção ele partiu. De qualquer modo, não nos interessava mesmo.
Eles estavam perdidos.
Não havia jeito de encontrá-los, nenhuma esperança. Sam e
Jack tinham desaparecido, algo que sabiam fazer muito bem, e nunca mais os veríamos de novo.
A água e o ar mais frio da noite estavam nos fazendo ficar lúcidos, algo que não queríamos. Estávamos tão cansados, além do ponto da exaustão, em algum estado mais profundo, mais doloroso. Certamente podíamos dormir. Tudo o que tínhamos de fazer
era não pensar. Isso podíamos fazer.
Fizemos.
Quando acordamos, ainda era noite, mas a aurora estava ameaçando no horizonte oriental — as montanhas contornadas de vermelho-escuro. Nossa boca tinha gosto de pó, e a princípio pensamos que tínhamos sonhado com a presença de tio Bob. Claro que
havíamos.
Nossa cabeça estava mais clara esta manhã, e logo notamos uma forma estranha perto de nossa face direita — algo que não era uma pedra nem um cacto. Tocamos o
objeto — era duro e lustroso. Nós o cutucamos, e veio de dentro o som delicioso de água chapinhando.
Tio Bob era real e tinha nos deixado um cantil.
Nós nos sentamos cuidadosamente, surpresos de não nos partimos em dois como um graveto seco. Na verdade, estávamos nos sentindo melhor. A água deve ter tido tempo para fazer seu caminho através de uma parte de nosso corpo. A dor não era
tanta, e pela primeira vez num longo espaço de tempo, sentimos fome outra vez.
Nossos dedos estavam duros e desajeitados quando abrimos a tampa do cantil. Não estava completamente cheio, mas havia água suficiente para distender as paredes de nossa barriga outra vez — que deve ter encolhido. Bebemos tudo; estávamos até aqui
de racionamento.
Jogamos o cantil de metal na areia, onde produziu um baque surdo no silêncio de antes do nascer do sol. Nós nos sentíamos plenamente acordadas agora. Suspiramos, preferindo a inconsciência, e deixamos a cabeça cair em nossas mãos. E agora?
— Por que você deu água, Bob? — reclamou uma voz zangada, bem atrás de nossas costas.
Nós giramos, virando-nos sobre os joelhos. O que vimos fez nosso coração vacilar e nossa consciência estilhaçar-se.
Havia oito humanos em semicírculo no ponto onde eu me ajoelhava sob a árvore.
Não havia dúvida de que eram humanos, todos eles. Eu nunca tinha visto rostos contorcidos em tais expressões — não na minha espécie. Aqueles lábios retorcidos de
ódio, puxados para trás sobre dentes cerrados como animais selvagens. Aquelas sobrancelhas puxadas para baixo sobre olhos que queimavam de fúria.
Seis homens e duas mulheres, alguns muito grandes, a maioria mais alta que eu.
Senti o sangue fugir do meu rosto quando compreendi por que mantinham as mãos tão
estranhamente firmes diante de si, cada uma brandindo um objeto. Eles empunhavam armas. Alguns empunhavam facas, algumas pequenas como as que eu tinha na minha
cozinha, outras mais longas e uma imensa e ameaçadora. Aquela faca não tinha serventia na cozinha. Gabriel deu o nome: um machete.
Outros seguravam barras compridas, umas de metal, outras de madeira. Porretes.
Reconheci tio Bob entre eles. Seguro frouxo em suas mãos, havia um objeto que eu nunca tinha visto pessoalmente, só nas memórias de Gabriel, como o grande facão. Era uma espingarda.
Eu via horror, mas Gabriel via tudo aquilo com espanto, sua mente hesitando diante do número deles. Oito sobreviventes humanos. Ele havia pensado que Bob estava
só ou, na melhor das hipóteses, com apenas dois outros. Ver tantos da sua espécie vivos a encheu de alegria.
Você é um tolo, disse-lhe. Olhe para eles. Veja-os.
Eu o obriguei a vê-los da minha perspectiva: ver as formas ameaçadoras dentro de
calças de brim sujas e camisetas leves de algodão, pardas de poeira. Eles podiam ter sido
humanos — como ele concebia a palavra — outrora, mas naquele momento eram alguma outra coisa. Eram bárbaros, monstros.
Eles pairavam sobre nós, salivando por sangue.
Havia uma sentença de morte em cada par de olhos.
Gabriel viu tudo isso e, embora relutante, teve de admitir que eu estava certo.
Naquele momento, seus amados humanos mostravam o pior — como as reportagens nos jornais que tínhamos visto na cabana abandonada. Estávamos olhando para
matadores.
Devíamos ter sido mais sensatos; devíamos ter morrido ontem.
Por que o tio Bob nos manteria vivos para isso?
Um calafrio passou por mim ao pensamento. Percorri histórias de atrocidades humanas. Eu não tinha estômago algum para elas. Talvez devesse me concentrar melhor. Eu sabia que havia razões para os humanos deixarem seus inimigos vivos por um certo tempo. Coisas que eles queriam de suas mentes ou de seus corpos...
É claro, a coisa aflorou na minha cabeça imediatamente — o segredo que eles queriam de mim. O segredo que eu nunca, jamais lhes poderia contar. Não importava o que fizessem comigo. Eu teria de me matar primeiro.
Não deixei Gabriel ver o segredo que eu protegia. Usei suas próprias defesas contra ele e ergui um muro em minha mente para ficar escondido enquanto pensava, pela primeira vez desde a implantação, na informação. Não houvera razões para pensar nisso
antes.
Gabriel mal chegou a ficar curioso do outro lado do muro; ele não fez nenhum esforço para superá-lo.
Havia preocupações muito mais imediatas do que o fato de ele
não ter sido o única a manter informações em segredo.
Importava eu proteger o meu segredo dele? Eu não era tão forte quanto Gabriel;não tenho dúvidas de que ela seria capaz de aguentar tortura.
Quanta dor eu poderia
suportar antes de entregar-lhes o que quisessem?
Meu estômago se contraiu.
O suicídio era uma opção repulsiva, pior porque também seria assassinato.Gabriel faria parte tanto da tortura quanto da morte. Eu
esperaria até não ter absolutamente nenhuma alternativa.

A Hospedeira/DestielWhere stories live. Discover now