7.0 - A Esposa de Narciso

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Numa bela tarde de sol, Dídala caminha pela íngreme calçada da Rua dos Cornos a passos largos e apressados como de costume, além de carregar a sua cara de quem não quer conversa com ninguém. Em seu entorno, encontram-se várias casas iguais: todas brancas, de telhado vermelho, uma porta marrom do lado esquerdo e uma janela quadrada que é só um buraco na parede do lado direito. É como se um ilustrador de cenários tivesse desenhado uma única casa e replicado dezenas de vezes, seja por preguiça, ou para otimizar o tempo.

Há alguns passos atrás dela, ecoa uma voz imperiosa e enfática:

— Não tem vergonha de ser inferior e ainda querer estar na mesma calçada que eu?

Ao olhar para trás, Dídala visualiza uma figura de barriga avantajada, cabelos em degradê de verde claro para azul e uma larga e comprida cauda de peixe.

— Como é?! — Dídala pergunta de cenho franzido.

— Acontece que devido à minha magnificência, eu mereço uma calçada exclusiva para trafegar sem a presença de gente desagradável como você... — Lafyla olha para ela de cima abaixo com rejeição enquanto anda sustentada pelas suas barbatanas que usa como pés para caminhar como um humano.

— Mulher, sabia que você se acha muita merda sendo pouca bosta? — Dídala indaga com as mãos na cintura.

— Eu sou a melhor — Lafyla garante assim que chega ao lado da protagonista. — Dizer o contrário não vai alterar a realidade.

— A realidade é que você é um porre — Dídala retruca com cara de enfadonha.

— Fazem comentários parecidos sobre você por aí — Lafyla afirma despreocupada.

— Mas pelo menos eu tenho a humildade de reconhecer que eu sou chata!

— E você está certa, mas eu continuo sendo a melhor. — A sereia reitera ao mesmo tempo que seus olhos estão como duas letras U.

— Ah, é? Pois explique de forma lógica, racional e muito bem fundamentada porque você é tão incrível! — Dídala exige realmente querendo entender.

— Trata-se de um axioma — Lafyla responde de braços cruzados.

— E o que danado é isso? — Surge uma interrogação na cabeça de Dídala.

— Sua falta de conhecimento demonstra sua inferioridade. — Lafyla exibe satisfação em seu semblante.

— Pois agora você vai ver o que é falta de barbatana, porque eu vou te partir no meio!

Quando Dídala está prestes a agredir Lafyla que permanece imóvel sem esboçar nenhuma reação, surge um rapaz muito alegre entre as duas. Possui o cabelo pintado nas cores do arco-íris e traja uma calça moletom e um casaco brancos com uma camiseta cinza por dentro.

— E aí, gente! Tudo bem? — ele cumprimenta e coloca cada braço no ombro de ambas de modo a aproximá-las, deixando-as desconfortáveis. — Aonde vocês vão?

— Ao salão de Xeila — elas respondem em uníssono.

— O quê?! — Dídala arregala os olhos.

— Gente invejosa copia os outros mesmo... — diz Lafyla de braços cruzados e nariz empinado.

— Pois eu sou invejoso, porque eu vou pra lá também — ele afirma despreocupado.

— Não tem problema. Eu acho até bom, afinal quanto mais gente feia andar comigo, mais eu me destaco! — Sentindo-se uma divindade, ela põe uma mão no peito e outra na cintura.

— Xester é feio só se for no inferno de onde você veio, porque além de lindo, ele tem as pernas mais malhadas que eu já vi na minha vida enquanto você tá aí com esse rabo véi murcho que ninguém quer! — Dídala retruca aos berros.

— O silêncio é a melhor resposta para pessoas ignorantes. — Lafyla fecha os olhos e vira a cara com desprezo.

— Fui ignorante? — Dídala faz cara de pena. — Desculpa, então será que a Vossa Majestade poderia respeitosamente acolher introduções na última parte de seu sistema digestório?

— Por acaso isso foi um jeito educado de me mandar tomar naquele canto? — Surge uma interrogação na cabeça da sereia enquanto suas mãos estão na cintura.

— Parabéns, acertou! — Dídala bate palmas de forma sarcástica. — Imagina se além de chata, fosse burra!

— Não posso ter nenhum desses defeitos, pois eu sou perfeita e sempre tenho razão. Apenas uma vez estive errada! — Lafyla levanta o indicador.

— Quando? — indaga Xester.

— Quando pensei não estar certa — a sereia responde na mais profunda plenitude.

— Amiga, eu acho melhor a gente ir pra outra calçada pra ficar longe desse Narciso em forma de piranha... — ele sugere com cara de tédio.

— Quem vai é ela! — Dídala pega Lafyla pelas barbatanas e começa a girá-la até pegar impulso suficiente para a arremessar até o outro lado da rua, passando por cima de carros e motos em alta velocidade.

A criatura marinha se choca contra o chão de concreto com tanta força que rachaduras aparecem ao seu redor por onde transitam pessoas cinzas. Se elas tivessem rosto, seria possível ver uma expressão de riso, mas pelos gestos com as mãos na boca, pode-se deduzir que estão rindo da queda da sereia.

Com o semblante inexpressivo de sempre, ela passa a mão nos braços para se limpar e levanta-se como se nada tivesse acontecido. Quando fica de pé, ela diz a si mesma antes de voltar a caminhar:

— Ser agredida só comprova o ódio dos inferiores perante minha superioridade.

Após alguns minutos, os três avistam o salão de beleza de Xeila que se chama Salão de Beleza de Xeila. Embora seja um estabelecimento pequeno, o estilo moderno entre tons de branco, cinza e preto dá uma certa elegância ao local que nem parece fazer parte da Rua dos Cornos.

Dídala então começa a andar mais rápido para chegar primeiro. Embora esteja usando salto alto, isso não a impede de correr freneticamente ao ponto de formar uma nuvem de fumaça por onde passa. Quando Xester percebe a situação, decide fazer carreira também e assim, ambos vão se aproximando do seu destino, mais até que Lafyla, já que o salão fica localizado na calçada onde eles estão. Porém, a sereia tampouco hesita em apressar o passo.

Conforme o esperado, Dídala ganha a competição passando pelo portão de vidro, mas logo atrás vem Xester que a atropela e eles caem no chão de madeira. Em seguida, chega Lafyla para finalizar esmagando os dois. Dessa forma, só permanece de pé a dona do estabelecimento, uma moça de cabelos nos tons do arco-íris que traja um vestido tomara-que-caia branco e um par de saltos de mesma cor daqueles que se amarram na perna.

— Sejam bem-vindos ao meu salão. Quem de vocês será atendido primeiro? — ela fala ignorando o fato de os três estarem caídos e doloridos.

— Eu! Porque eu cheguei primeiro e sou a protagonista! — diz Dídala de braço erguido enquanto se levanta.

— Mulher, eu sou seu irmão, então eu acho que mereço privilégios... — argumenta Xester se levantando com dificuldade, pois foi quem recebeu o maior impacto.

— Eu, porque eu sou a melhor e tudo deve funcionar de acordo com os meus caprichos — Lafyla se enaltece sentada no chão como costuma ficar nas rochas da Lagoa Lágrimas de Corno.

Xeila utiliza todos os seus neurônios para pensar em quem tem razões mais coerentes para merecer o primeiro atendimento. 

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