V

544 140 1K
                                    

"A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.


E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto."


Pessoa, Fernando. "A Morte Chega Cedo."

Dawson chegara à capital francesa em tempo recorde: um pouco mais de um dia e meio após a sua saída de Dartmouth, tendo em vista que a viagem fora realizada aos extremos que a loucura e a imprudência o permitiam

Ops! Esta imagem não segue as nossas directrizes de conteúdo. Para continuares a publicar, por favor, remova-a ou carrega uma imagem diferente.

Dawson chegara à capital francesa em tempo recorde: um pouco mais de um dia e meio após a sua saída de Dartmouth, tendo em vista que a viagem fora realizada aos extremos que a loucura e a imprudência o permitiam. O estado físico do viajante estava um tanto debilitado, pois, não conseguira pregar os olhos por nenhum um mísero segundo que dirá alimentar-se com algo que sustentasse as suas forças por completo. Naquele momento, encontrava-se espremido em um cabriolé, que o sacudia tal qual a uma folhinha seca na tempestade, enquanto seu estômago ansiava por sossego, antes que o enjoo ansioso e o balanço da pequena carruagem de aluguel o fizessem regurgitar as entranhas. Entretanto, teria de segurar-se mais um pouco, pois já estava próximo à localidade de seu estrito interesse.

Alcançando a porta daquela famigerada residência, que nitidamente se tratava de um imóvel recém-reformado e valoroso — a notar pelo esmero da pintura e o brilho das aldravas banhadas a ouro —, o conde escancarou-a sem fazer cerimônia alguma, assustando uma das criadas que espanava o aparador naquele momento inoportuno. Ele estava muito impaciente e ansioso, por tanto questionou de imediato o paradeiro da senhora da casa. Foi informado que ela ainda não acordara e estava há quase três dias reclusa, sem comer ou beber qualquer coisa. Antes mesmo que pudesse saber detalhadamente as causas do jejum do deserto, ordenou que o lacaio chamasse um médico de sua confiança com urgência, enquanto subira as escadas sobressaltado e apreensivo, dirigindo-se ao quarto principal. Agora que estava próximo ao fim de sua obstinação, sentira medo. O fato dela estar definhando antes mesmo da correspondência chegar em suas mãos, o matou mais rápido que um cálice de cicuta ou uma punhalada certeira na garganta pudera fazer.

Girou vagarosamente a maçaneta e encontrou-a adormecida em um sono tão profundo que beirava a letargia. O ar quase esvaiu-se de seus brônquios ao aproximar-se, acariciando a bela face empalidecida e doentia. Os lábios não tinham mais o rubor intenso que definiam as curvaturas tão bem, estavam exangues e ressecados. O viço juvenil, a alegria despreocupada e fugaz... tudo parecia perdido em uma morbidez cadavérica que se apossou de seu anjo venerado. A senhorita Marianne não expressou reação alguma ao toque, o que o preocupou mais, pois estava febril e consideravelmente delirante. Continuou a afagar seu rosto, dispondo de um horror categórico ao pensar na ideia insuportável da perda; amaldiçoava-se em cada pensamento soturno.

Permanecera ao seu lado por mais de uma hora. Sem poder beijá-la, sem que ela o olhasse com a sua inigualável altivez e encantamento, sem ao menos, tomá-la calorosamente nos braços em um reencontro saudoso que idealizara por meses. Seus desejos ardentes e intensos, perderam-se à austeridade de uma doença provocada. A culpa que o atormentou naquele momento foi tão incomum, que podia senti-la queimando as entranhas, possuindo o âmago do espírito intranquilo; chorou um lamento de dor, amargurado com o pesar que causara pela sua ausência irremediável. As mãos suavam frio, a respiração estava embargada pelo choro. Se possuísse um pouco de fé, rezaria fervorosamente pela melhora. No entanto, a sua nítida descrença o impediu violentamente. Restando-lhe apenas o amargor fatídico do arrependimento.

Uma singela batida na porta do quarto indicou a chegada de um socorro quase divino, retirando o cavalheiro de suas lamentações. O doutor, que era um velho conhecido das famílias parisienses, ficou estranhamente surpreso ao ver o filho mais novo dos Dawson de volta à cidade.

— Monsieur Dawson, não esperava vê-lo tão cedo en France! — observou ao desviar a sua atenção do desertor para a paciente. — Esta é a mademoiselle Marianne, a mais jovem das meninas d'Anjou? Bon Dieu! Há quantos dias ela está enferma, por que não me foi comunicado antes? — Transpareceu um olhar nitidamente apreensivo ao examiná-la. — Peças que tragam água quente e panos limpos, será necessária uma sangria.

O atormentado levantou-se rapidamente dos pés da cama e fora ele mesmo cumprir o mandato, enquanto esbravejava contra todos os criados e os colocava "abaixo dos cães do inferno" por não terem prestado a devida atenção ao estado de saúde precário da senhora da casa. Quando retornou, os preparatórios para o procedimento milagroso já estavam no ponto certo, faltando apenas entregar o que lhe fora solicitado. O doutor finalmente pode realizar a incisão, que tinha como objetivo purificar o sangue da moribunda, tirando todas as possíveis moléstias que estavam presentes nele.

— Ela ficará boa logo, monsieur d'Aubigné? Que não sejas a maldita peste branca¹. Oh, que angústia infernal! Não posso perdê-la, diga-me a verdade!

— Acalme-se, Dawson. Não há indícios da tísica pulmonar¹, mas é evidente que ela está muito debilitada. Sabes se ao menos alimentava-se bem?

— A criada me disse que não comeu coisa alguma por três dias. Mas sinto que fora mais tempo que isto, pobre Annie... — Olhava-a completamente consternado, choroso. — Não acredito que foras capaz de provocar esta enfermidade propositalmente.

— Não há muito mais a se fazer, esperemos a reação dela ao procedimento. Fiques vigilante a qualquer sinal e não a deixes desacompanhada. Tens sorte, pois ainda é muito jovem e sadia, caso contrário...

— Não quero pensar em contrário nenhum, doutor! Não fales maus agouros — repreendeu-o instantaneamente, sem muita polidez. — Ela precisa ficar bem! Coloco toda a minha confiança em vossa pessoa.

— Me mantenha informado em virtude de qualquer mudança inesperada — pediu, colocando a cartola sob a cabeça. — Amanhã voltarei a vê-la.

O doutor os deixou a própria sorte, foi o que ele pensara. Velar por Marianne naquela situação era doloroso demais; o cansaço estava minando as suas forças, arrancando-a pedaço por pedaço. Não conseguia mais se manter atento aos delírios da paciente e o seu orgulho feroz, não aceitara a ajuda de nenhum criado para revisar a vigília.

Era uma penitência que estava disposto a pagar e, desse modo, a culpa que o consumia lentamente diminuiria. Mesmo que fosse impossível em sua concepção real, a ideia o confortava um pouco.

 Mesmo que fosse impossível em sua concepção real, a ideia o confortava um pouco

Ops! Esta imagem não segue as nossas directrizes de conteúdo. Para continuares a publicar, por favor, remova-a ou carrega uma imagem diferente.

1. tísica pulmonar e peste branca = tuberculose.

somente a partir de 1839 começaram a chamá-la de tuberculose, por conta de Johann Lukas Schoenlein que a batizou.

The Secrets of a Little LadyOnde as histórias ganham vida. Descobre agora