III

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Os dias que se sucederam após a visita dos Hall, foram monótonos e aborrecidos por uma chuva volumosa e persistente. Por volta do meio-dia, uma carta endereçada ao dono da casa fora entregue aos cuidados de madame Lockwood, o que despertou rapidamente a curiosidade dos criados e da própria receptora. O nome do remetente era Victor von Rutherford e tinha como endereço de origem a Suíça. Um detalhe incomum observado com cuidado por quem a viu em primeira mão, foi a letra do suposto Sr. Rutherford. Que possuía características típicas à caligrafia feminina e a madame podia jurar, que a correspondência exalava um fraco perfume de lavanda.

A missiva chegara, por fim, às mãos de seu destinatário às cinco horas da tarde, pois a chuva fez com que Lord Dawson retornasse mais cedo para casa. Sendo este, o horário que ele deveria chegar todos os dias.

— Hoje mais cedo, chegou uma epístola para Vossa Graça. Desejas que eu a entregues agora ou após o jantar? — indagou a madame. Ao entregar-lhe uma toalha de rosto bordada com o brasão da família, tomou de suas mãos o casaco lamacento que estava totalmente ensopado de água e redecorado com alguns resquícios de folhagem.

— Diabos! Mas que frio tenebroso! E olhes que já estamos em março. É algo inusitado, não achas? Sim, realmente é! — observou o amo com um certo humor, enquanto se secava com rapidez. — Desculpe, madame. A nova era glacial congelou o meu cérebro... O que a senhora tinha dito?

— Uma carta de Victor von Rutherford, chegou hoje para vós. Desejas que a entregues agora ou somente após a ceia? — ela repetiu a indagação em um misto de desimpaciência e leve desagrado.

— Victor... — O conde fez uma pausa considerável ao pronunciar o nome do cavalheiro. Como se precisasse de um esforço grande, para se lembrar de quem se trata. — Oh, sim! Recordo-me muito bem. É de meu caro amigo, o Sr. Rutherford. Entregue-me agora.

— Se me permites, Lord Dawson... — A madame retirou a carta do bolso de seu sóbrio avental e entregou-a. — Este cavalheiro também nos fará uma visita? Se assim for, avise-me com um pouco mais de antecedência para que possa organizar uma recepção à altura de vossos convidados.

— Creio que não, madame. — O amo ficara lívido e notavelmente desconcertado. Ao ver o nome assinado na carta, sua aura se inebriou com lágrimas contidas. — Com a vossa licença, Sra. Lockwood. — Saíra fugazmente da sala, dirigindo-se com uma nítida ansiedade ao gabinete.

Dawson não fora visto até o jantar, que naquela noite foi servido em um esmerado jogo de porcelanas chinesas, às oito. A chuva ainda caía lá fora, fazendo a temperatura despencar bruscamente junto aos álgidos ventos que em hipótese alguma, pareciam dispostos a se renderem à uma trégua pacífica.

O humor da senhora da casa, aparentemente, estava mais equilibrado e vívido. O que contrastara com o do senhor, que estava visivelmente perturbado e altivo. Eles não possuíam o costume de conversar durante as refeições, mas excepcionalmente naquela ocasião pouco animadora, a condessa, resolveu por preocupação e gentileza perguntar algo ao esposo.

— Estás bem, Lord Dawson? Pareces preocupado e distante... nem ao menos bebeste o cálice de vinho. A refeição não está do vosso agrado?

— Não se preocupes comigo. — Olhava fixamente para o vazio, sem demonstrar qualquer expressão ou sentimento decifrável.

— Certo. — Ela respirou fundo, sentindo-se um pouco frustrada com o notável desinteresse do outro. — Quero comunicar-lhe acerca de minha futura visita à Sra. Hall. Assim que o tempo firmar, partirei para Londres.

— Exijo que estejas de volta ao fim de duas semanas e nada mais que isto. — Fixara o olhar através dela. — Amanhã partirei para a Suíça e dentro de um mês, talvez um pouco mais... — Ele parou de falar abruptamente, como se o simples pronunciamento de uma única palavra o enfadasse. — Não penses que a minha ausência, lhe concederá liberdades para fazer o que bem entendes junto da Sra. Hall ou de quem for. Está claro?

— Podes, ao menos, falar-me o nome da cidade que visitarás? Se algo acontecer, preciso de um endereço válido para escrever-lhe uma carta de urgência.

— Pelo Estige e todas as almas que lá padecem... — Elevou o tom de voz, demonstrando um nítido aborrecimento às pequenas "exigências" de sua interlocutora. — Não acontecerá coisa alguma, maldição! Não sejas tola e alarmista. Um mês passa rápido e a vossa presunção lhe servirá muito bem de auxílio.

— Se não quiseres dar-me o endereço, comunique-o apenas à madame Lockwood! — rebateu. — Precisas estar ciente de qualquer acontecimento extraordinário que se passe nesta casa. Ou estou equivocada, milorde?

— Basta! — ralhou ao bater veementemente o punho sobre a mesa. — Não tolerarei nenhuma petulância de vossa parte e, ouças muito bem, Liliana, pois a palavra de um homem não é passível a correções! Não estás mais com os vossos tios, que lhe faziam todas as vontades infantis, caprichos tolos por amor e cega afeição. Agora, sob a minha responsabilidade legal, tenhas em primeiro lugar o dever de honrar-me. Não lhe cabes o questionamento de minhas decisões em nenhuma circunstância! Não provoques a minha ira, pois lhe falta forças em todos os sentidos para que meças contra mim.

— Não falei isto para lhe aborrecer de forma alguma! — disparou, visivelmente ressentida. — Vossa Graça dispõe do livre e arbítrio para a interpretação de minhas palavras, é um fato. Mas, por favor, sejas coerente ao fazer as vossas colocações arbitrárias e insensíveis! Não mereço ser ofendida deste modo. Não fiz nada inescrupuloso que possa ser suscetível à vossa censura. Estás cometendo uma grande injustiça, milorde!

— Não, não estou. Vossa presença por si só é uma censura abjeta! — ricocheteou ao praguejar uma leva de insultos, sem nenhuma compostura. — Vejo que estou vivendo o nono círculo do Inferno de Alighieri dentro da minha própria casa! Por mil demônios, diga-me, que atrocidade terei de fazer para que isto mude? — Tomado por um impulso grotesco e infinitamente desnecessário, jogou toda a sorte de louça que estava em sua frente ao chão e retirou-se do cômodo. Destilando indiferença e superioridade.

A condessa ficara imóvel por alguns segundos, perplexa, sem distinguir os sentimentos odiosos que a acometeram por meio daquela cena pungente. Madame Lockwood, que observava tudo em silêncio, rapidamente deixou a sala para pegar os materiais necessários à limpeza da patifaria que o amo havia feito. Quando ela retornou, deparou-se com a ama debruçada ao chão, catando os cacos da valiosa porcelana quebrada.

— Não faças isto, Lady Dawson! Podes se ferir. Por favor, deixes que eu mesma limpo!

— Deixe-me ajudá-la, madame! — ela desacatou por meio de soluços copiosos e profundos, que transpareciam um grande desalento na alma. Enquanto o seu rosto, foi banhado por lágrimas consternadas. — Perdoe-me por acrescentar-lhe este afã. Sra. Lockwood, tudo isto é culpa minha!

— Não é vossa culpa, milady. — Colocou a mão sobre uma das mãos da ama, que estava sangrando por um corte raso e alongado. — Pressiones este corte com força, por Deus! Os problemas do amo não foram ocasionados por Vossa Graça. Mas preciso dizer-lhe que foras muito desajuizada ao respondê-lo daquela forma!

— Sinto-me tão impotente... Tão tola e inútil! Permanecer aqui é um pesar muito doloroso para mim, um castigo que nunca imaginei receber. — Chorava em soluços, transbordando uma sombra obscurecida de melancolia, acompanhada por seu semblante desalentado. — A minha existência é um constante equívoco, mas não desejo a vossa piedade ou a de ninguém. Estarei sempre sujeita à estas angústias e fracassos, caso continue vivendo neste lugar infeliz. Oh, mon Dieu! — suplicou. — Leve-me rápido. Estou muito tentada! Darei um fim que seja perfeito e conveniente, e logo os tormentos infames de minha alma cessarão.

A madame conteve-se ao censurá-la, percebendo que a situação inspirava cuidados reais. Em um impulso fraterno, abraçou-a, como uma mãe faria com uma criança chorosa. Dispôs de tempo suficiente para enrolar uma atadura na mão da ama, que aos poucos fora acalmando-se do acesso nervoso e descompensado.

Após meia hora das muitas lágrimas de desabafo e pensamentos inquietos de culpa, a madame acompanhou a desconsolada aos seus aposentos. Somente após certificar-se de que o sangue havia estancado de vez e que a ama não precisara mais de sua vigília; "apenas" de um bom descanso e reflexão, a deixou à sós com sua tristeza.

The Secrets of a Little LadyOnde as histórias ganham vida. Descobre agora