Capítulo 1

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– O que é isso, na sua cara?!

                        Eu estava retirando a forma de gelo do congelador quando minha mãe deu esse grito. Pensando bem, acho, até, que eu estava de costas. Mas mãe tem visão de raio-X.

                        – O que é isso, Joana Maria?! Responda!

                        Eu não respondi, é claro, porque minha mãe sabe exatamente o que é um piercing, então só podia ser uma pergunta retórica. Eu não sei se aqueles gritos de horror eram uma tentativa de entrar no "modo mãe", ou se minha mãe era tão antiquada. Podia ser inveja, também, né? A gente não quer pensar que nossos pais podem sentir inveja, ainda mais dos próprios filhos, mas a verdade é que minha mãe não tem mais 18 anos, e, filha ou não, eu sou essa lembrança viva o tempo inteiro, na sua cara. E de piercing.

                        – Você fez piercing?!

          Dois, na verdade: uma bolinha na narina esquerda, e uma argolinha pendurada de uma narina a outra. Porque colocar só um piercing é a cara de gente que coloca piercing só para dizer que colocou piercing, sabe? E eu não podia ficar com cara-de-gente-que-colocou-piercing-só-para-dizer-que-colocou-piercing logo no meu primeiro piercing, né?

                        – Ficou louca, Joana Maria?! – ela continuou a gritar.

                        – Mãe, o que é que tem? – comentei, tentando demonstrar naturalidade, enquanto colocava num copo o gelo com que eu pretendia anestesiar a dor que sentia no nariz.

                        – O que é que tem?! Você deformou seu rosto!!

                        – Você também furou minhas orelhas. E eu era só um bebê!

                        – Mas brincos não fazem você ficar com cara de... de boi! De touro premiado!!

                        "Pois a inveja faz você ficar com cara de vaca", eu pensei. Mentira, eu não pensei isso na hora, eu estava apavorada. Só agora, contando a história, é que me ocorreu essa rebatida. Ai, preciso apagar antes que ela leia.

                        – Por que você não fez só um, pelo menos??

                        Tenho certeza de que o grito seria o mesmo com um piercing ou dois. Apesar de que, se eu soubesse que doía tanto, realmente não teria colocado dois. Aliás, acho que não teria colocado nenhum.

– Você vai ver o que seu pai vai dizer! – ela ameaçou.

                        Eu sabia que meu pai não ia gostar de me ver de piercing, porque ele costumava ser preconceituoso em seus posicionamentos, de modo geral, mas a minha mãe, que sempre proclamava ser um "vento livre", havia me surpreendido. Se ela tinha gritado daquele jeito, será que com meu pai ia ser pior? Ia me colocar para fora de casa??

           Minha mãe ainda esbravejava, mas eu não estava prestando atenção. Fiquei pensando que, do jeito que ela e meu pai brigavam, era capaz dele dizer que gostou, só para ser do contra. Mas ele não estava em casa ainda – eu estava planejando evitá-lo pelo máximo de tempo possível (quem sabe, até eu me formar em Direito e receber meu diploma. Ia ser ótimo se ele visse o piercing na hora em que eu subisse ao palco para receber o canudo. Imagina aí, eu, me virando para a plateia, e ele se levantando para aplaudir. O queixo dele caindo, mas sem poder dizer nada. Porque, né? Imagina? "O que é isso na sua cara?" E eu "na minha, é um piercing; na sua, meu diploma! Tome!") Mas agora que minha mãe tinha visto, ela não ia me deixar escapar; eu não poderia esconder meu rosto por quatro anos. Ela ia me dedurar. Certeza.

Contrata-se, com ExperiênciaWhere stories live. Discover now