Agulhas de Estanho

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Patru inclinou-se para pegar o envelope fazendo a luz do topo reluzir em sua careca. Mas antes que suas mãos alcançassem o envelope, Gormia puxou-o para si. Abriu-o mecanicamente e colocou a mão esquerda dentro em busca do conteúdo. Ao seu lado, Patru protestava. Argos tinha toda sua atenção voltada para o rosto de Gormia. 

O tempo arrastou-se. Não queria correr normalmente. Muita coisa aconteceu em poucos instantes. Argos viu uma veia subir na testa de Gormia e seus lábios se comprimirem num espasmo ríspido. Sacou sua arma que já estava empunhada com sua mão esquerda, sob a mesa. Gormia previu os movimentos de Argos e tirou a mão do envelope muito rápido. A pele alva, quase mármore, estava alterada, tomada por uma vermelhidão intensa e veias quase negras saltadas no dorso da mão.

Argos desviou o olhar da face para a mão e subiu para o lado esquerdo do peito para fazer a mira. Gormia inclinou-se para trás buscando esquivar-se, mas o dedo de Argos já pressionava o gatilho. A arma zumbiu e disparou uma rajada de agulhas. Ele teria cumprido a missão e dado cabo da criatura que possuía o corpo de Gormia se Sacha se intrometido. Ele golpeou a mão de Argos e desviando-a para o alto. Apenas uma agulha cravou-se no ombro de Gormia. Ele emitiu um urro horrendo e nada humano. Gormia caiu para trás e rolou atingindo um armário cheio de livros e derrubando alguns sobre si.

Argos ficou de pé, atirou a cadeira para trás e levou a mão direita à bolsa que carregava a tiracolo. Não havia tempo para recarregar sua disparadora de agulhas. Só agora sentiu um calafrio e seu coração disparou. Patru e Vaksil pareciam compreender o que ocorria e observaram atentamente enquanto Gormia punha-se de pé. Sacha, ainda concentrado nas ações do rapaz tentava argumentar — Você enlouqueceu, Argos? O que pensa que está fazendo? — E colocou-se entre ele e Gormia.

Isto salvou a vida de Argos, pois a adaga de lâmina sinuosa, atirada por Gormia, atingiu as costas de Sacha, entrou entre as costelas atingindo o pulmão. O caçador se contorceu e tombou de lado.

Argos iniciou a recarga da pistola de agulhas. Atingir o adversário no coração, ou no cérebro com uma agulha de estanho era a única forma de destruir aquela criatura. O pó do metal que havia dentro do envelope havia sido a prova. Ao entrar em contato com sua pele provocou uma extrema reação alérgica.

Vaksil saltou por cima da mesa para enfrentar o colega possuído. Era evidente nos olhos de Gormia a presença de um gênio maligno. Tinham um intenso brilho púrpura e uma expressão diabólica. Vaksil já tinha em mãos uma adaga com lâmina dupla, de um lado prata, do outro, estanho. O ataque foi contra o coração, mas antes de atingir o alvo, Gormia pegou seu braço e quebrou-o como um graveto. 

Gormia exibia agilidade e força sobre-humanas.

 A adaga de Vaksil voou para algum canto do escritório. Gormia eliminou Vaksil com um ataque que esmagou a traquéia do caçador. Morreria de forma agonizante. Restavam Argos e Patru para enfrentar a criatura. Patru bebeu uma boa dose de super-soro de brilho verde-azulado. Ele ergueu Gormia e atirou-o através do escritório. Gormia estilhaçou a janela e caiu seis metros abaixo em meio a caixas e barris do primeiro andar do armazém. Patru disse — Isso vai nos dar algum tempo.

O velho caçador saltou sobre a mesa para recuperar a adaga de Vaksil. Argos conseguiu, finalmente, recarregar sua disparadora de agulhas.

— Muito esperto, Argos. Eu já suspeitava de algo esquisito...

— Detesto estar certo desta vez. — o jovem sentia o amargor da morte dos companheiros.

— Vamos — Patru o puxou — temos um furkenbolg para eliminar.

Os dois caçadores desceram as escadas de metal que rangiam ruidosamente.

— Aquela é a única saída? — indagou Patru referindo-se ao lugar por onde entraram.

— Sim, o portão frontal e o lateral estão trancados.

— Fique aqui e vigie a escada, eu vou atrás dele. — indicou o caçador mais experiente que estava confiante devido aos poderes conferidos pela dose de super-soro.

Estava escuro ali embaixo, pois a única luz vinha da janela quebrada do escritório, no andar de cima.

Patru examinou o local onde Gormia havia caído e viu um rastro de sangue. As gotas refletiam a luz destacando-se no chão. O caçador tinha uma pistola na destra e faca de Vaksil na mão esquerda. Progrediu com cautela. O rastro levava até um beco formado por duas colunas de caixas empilhadas.

Antes dele chegar na esquina, Argos avisou — Cuidado! Acima!

Patru desviou-se do ataque de Gormia que saltou de cima dos caixotes empunhando um espadim. Enquanto Gormia rolava para ficar de pé, Patru alvejou suas pernas e disparou. A pistola cuspiu uma rajada concentrada de fogo que iluminou ambiente e estourou a perna esquerda de Gormia. O ex-aliado urrou de dor. Praguejou contra Patru num idioma de criaturas abissais.

Argos não compreendeu bem, mas supôs que fosse algo sobre vingança. Patru avançou e golpeou contra o coração de Gormia com a adaga, mas no último instante seu braço foi detido. Gormia resistiu segurando o antebraço de Patru. A disputa de força foi intensa e Patru gritou aplicando toda sua força até que a adaga se enterrou em Gormia, um golpe fatal.

Houve silêncio. Depois de um tempo, Patru retornou para encontrar-se com Argos. Argos podia ver apenas sua silhueta.

— Essa foi por pouco, hein Argos? — desabafou o caçador.

Então, por sorte, Argos viu, por um instante, um tênue brilho púrpura no fundo dos olhos de Patru, como quando a luz atinge os olhos de um gato no breu. O furkenbolg havia saído de Gormia e agora havia possuído Patru. Argos engoliu seco. Ergueu a pistola de agulhas e disparou contra o peito do inimigo. Várias agulhas penetraram, mas devido a escuridão, a mira não foi precisa e nenhuma alojou-se no coração. Patru caiu gritando enfurecido tentando arrancar as agulhas do tórax. 

Argos precisava recarregar, mas temia não conseguir fazer à tempo. Fugir pareceu-lhe a melhor opção. Subiu as escadas à toda e atravessou o escritório. Desviou-se dos corpos dos outros dois e foi para a saída que dava para a rua de cima.

As agulhas no corpo de Patru causavam muita dor ao furkenbolg, mas sua ira era tamanha que ignorou as dores para perseguir Argos. Lá fora, Argos correu para seu carro tentando não tremer enquanto retirava as chaves da bolsa a tiracolo. Atrás de si, Patru veio amaldiçoando-o naquela língua ancestral. Dentro do carro, conseguiu dar a partida. Patru vinha em sua direção e Argos decidiu atropelá-lo. Acertá-lo não foi difícil, porém Patru agarrou-se o capô, torcendo o metal com a ponta dos dedos. Argos sacudiu o veículo de um lado para outro na tentativa de fazê-lo cair, mas isto não deteve o avanço do furkenbolg que escalou o capô e socou o vidro frontal. Argos acelerou mais e freou bruscamente. Patru voou para frente e rolou algumas vezes antes de parar. 

Por um instante, o rapaz achou que poderia ter vencido, mas Patru levantou-se, mancou e depois correu em sua direção. Em resposta, o rapaz acelerou o máximo que conseguiu em marcha ré até que girou a direção num cruzamento fazendo o veículo girar. Quase perdeu o controle, mas conseguiu virar a esquina, agora indo adiante e acelerando. Deixou Patru para trás e, com o rosto distorcido pela raiva, sentenciou — Da próxima vez, estarei mais preparado!

A Queda de DurkheimOnde histórias criam vida. Descubra agora