Na casa de Masha

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Após o estouro do escândalo que culminou com a prisão do pai de Marya Wolchkin e extradição para as colônias, a situação da filha e da mãe ficou difícil. Perderam o direito de uso de sua casa de alto padrão em que Marya cresceu e viveu toda a vida. Foram morar num pequeno apartamento de dois cômodos no subúrbio de Voln. Tudo seria pior se não fosse pela ajuda que receberam de Masha Flammoc, pois quando a guerra estourou, e Voln foi tomada, dezenas de milhares de famílias tiveram que ser realocadas para Zalle e outras cidades, a grande maioria, em campos de refugiados, ginásios de escolas e outros espaços públicos improvisados e sem conforto algum.

Masha e todos os pesquisadores do departamento de engenharia thaumatônica foram convocados para integrar uma força tarefa no IMPA. Com isso, ela conseguiu acesso a uma pequena casa no subúrbio de Zalle que compartilhou com Marya e a Sra. Wolchkin.

Masha trabalhava em turno dobrado e chegava em casa tarde da noite. A esta hora, a mãe de Marya servia o jantar que preparava com capricho. Salvo exceções, comiam sopa acompanhada de torradas.

— Ah, olá Masha. Como foi seu dia? — a Sra. Wolchkin perguntou ao vê-la entrar na cozinha. Masha sempre usava a porta dos fundos perto de onde estacionava seu carro.

Estava cansada, mas o cheiro de comida a animou um pouco. Uma lufada de vento frio acompanhou-a enquanto entrava em casa. Masha tirou a japona azul marinho felpuda que era parte de seu uniforme e pendurou-a no cabide junto com seu gorro do mesmo tecido. Seus longos cabelos estavam sempre enrolados formando um coque sobre a cabeça. Seu rosto estava mais pálido que nunca e o semblante era de cansaço, mas ainda assim, exibia sua beleza.

— Ah — suspirou — um dia exaustivo, Sra. Wolchkin. Mas ao menos tive algum progresso em minha pesquisa.

— Que bom, querida. Sente-se, vou chamar Marya para cearmos.

A Sra. Wolchkin pensava que nunca se habituaria a tantas mudanças. Com apenas cinco passos à partir da cozinha já estava na porta do quarto da filha. Sentia saudades de sua antiga casa, tão espaçosa.

— Toc-toc-toc — Bateu — Marya, está na mesa.

Não houve resposta. A mãe testou a maçaneta e constatou que estava fechada. — Marya? Filha?

A filha abriu a porta. Vestia um pijama cinzento e largo. Não havia muitas opções de roupas. Seus olhos estavam injetados e bem vermelhos. Os cabelos cor de laranja despenteados. Seu rosto exibia uma expressão apática. Tinha a aparência de uma paciente internada numa clínica. Para aquecer os pés, usava botinas de retalhos de tecido com enchimento feitas recentemente pela mãe.

A mãe sentiu um aperto no peito em ver a filha naquele estado, mas não era uma surpresa. Era outra coisa com a qual lutava para se habituar. Como todos os dias, Marya acordava bem cedo para esperar a passagem do carteiro. A mãe odiava Ilya e Marya descobriu que ela havia subtraído e queimado algumas de suas cartas. Assim, fazia questão de receber a correspondência pessoalmente. Aquilo teria sido muito diferente se ainda estivessem na velha casa, pois era conectada ao sistema de postagem e recebia correspondência teletransportada diretamente para a caixa de correio manótica. Era um sistema novo e caro que era usado pelo governo, suas instituições e em algumas residências de de altos funcionários, como a do Sr. Wolchkin.

Há três dias, Marya havia recebido a última carta do namorado. Não era longa. Nela ele dizia que seu pelotão se dirigia à baía conhecida como Boca do Inferno para recompor as defesas. Diversos combates violentos foram travados no local onde as forças de Durkheim resistiam. O jornal do dia anterior falava da batalha ocorrida e trazia três páginas de obituário. Marya sentiu-se aliviada quando não achou o nome de Ilya na lista. Mas permanecia aflita, aguardando notícias. O jornal dizia que reforços vindos do país aliado, Karisheim, já haviam chegado a Kassev.

Marya chegou até a cozinha e trocou olhares com Masha, mas não se sentia à vontade para conversar enquanto sua mãe estivesse presente. Para quebrar o gelo, Masha contou sobre seu dia de trabalho. Depois indagou.

— Você se lembra da minha prima Fiodora? Ela está vindo aqui para Zalle. Estão montando um hospital de campanha e ela está se transferindo para cá.

— É mesmo? — a Sra. Wolchkin parecia interessada — Onde ela estava antes?

— Em Kassev.

— Olha filha, isto pode ser uma oportunidade...

— É... Se quiser, posso conversar com ela. É provável que precisem de ajuda.

— Não quero ver gente sofrendo. Prefiro continuar no galpão embalando as rações.

— Sim, claro — retrucou Masha.

— Bem, já está tarde — disse a Sra. Wolchkin.

— Pode ir dormir, mãe. Eu arrumo a cozinha.

— Obrigada, filha — beijou sua testa, disse — boa noite. — E saiu.

Masha falou baixinho — Pela sua cara, vejo que ainda não chegaram notícias de Ilya... Mas chegou algo para mim que talvez te anime um pouco.

— O que?

Masha tirou um pequeno bilhete do bolso do uniforme e entregou a Marya.

"Falei com o velho e estou indo buscar o frangote. Espero tirá-lo de lá antes que seja tarde. Assim que puder, mando mais notícias! Beijoca, H."

O rosto de Marya se iluminou com esperança e cochichou — Será que Halle resgatou Ilya?

— Ele é bom em façanhas ilegais. Eu apostaria que sim!

— Tomara! Tomara, Masha! — passou a mão por cima da mesa para segurar na da amiga.

— Sejamos fortes, essa tempestade há de passar.

A Queda de DurkheimWhere stories live. Discover now