A beira do abismo (28)

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Estava tão nervosa em relação a Ayla não poder fazer movimentos bruscos que me senti como a muitos anos não me sentia, eufórica, nervosa, e uma ansiedade sem precedentes. Me sentia uma jovem fungindo de casa para encontrar seu namorado no meu da noite.

Fiz ela tomar toda a sopa que minha empregada fez para ela, bem reforçada, com bastante ferro para ver se acabava com a anemia que o médico disse que ela tinha, estava decidida definitivamente a cuidar dela e proteger para que nada de ruim acontecesse com ela e com meu filho que estava em seu ventre. Só de pensar isso, sinto uma sensação inexplicável, é um misto de insegurança com esperança, alegria e vontade de ouvir um coração batendo dentro daquela barriga, ver uma barriga crescendo... Chego a ficar emocionada.

— A senhora está bem? — Ela questiona insegura, porém, parecia preocupada.

— Vou subir para pegar roupas e toalha para você. — Proferi depois de balançar a cabeça positivamente para seu questionamento.

— Mas a senhora não vai me dar banho, sei fazer isso sozinha. — Ela foi categórica.

Estava com receio que na hora do banho quando ela fosse se curvar para escovar os pés, pudesse machucar o ventre, ou escorregasse e caísse, sei lá, me passou tantas possibilidades e eu queria estar ao seu lado para evitar todas elas, então tive que ser firme com ela em dizer que não daria banho, mas acompanharia ela sim no banheiro. Sei que ela estava envergonhada, mas isso é algo que ela tem que colocar em segundo plano e pensar primeiro no nosso filho, quer dizer, meu filho.

— Não se mexe, vou buscar as coisas.

Pela primeira vez eu vi Ayla revirando os olhos e bufando para mim, ao invés de achar ruim, achei a coisa mais linda, ela estava com as bochechas vermelhas, seus lábios tremulando por causa da onda sonora me fez sorrir de canto, quando ela percebeu que a observava, ela me deu um sorriso 15 pras 3. Balancei a cabeça em negação e subi as escadas rapidamente, ainda sorrindo dela. Adentrei seu quarto, gostava do cheiro bom dela que sempre saia quando abria a porta, ficava impregnado ali, ela usava lavanda, provavelmente por ser um produto extremamente barato, mas era gostoso de sentir. Mexi nas gavetas a procura de calcinhas e enquanto mexia para escolher uma mais confortável que não apertava no cós, acabei por rever seu diário, tentei ignorar e respeitar sua privacidade, porém, foi impossível, somos seres movidos por ela, peguei, sorri, já tive vários diários, mas quando eu era pré-adolescente, sentei na cama e comecei a folhear.

Hoje só queria um abraço, estou completando dezessete anos, minha mãe se trancou no quarto e se recusou a olhar na minha cara, hoje deveria ser o dia mais feliz da minha vida, mas é e sempre será o mais triste de todos, é ruim fechar os olhos e lembrar que sou a culpada por pedir, bater o pé para seu pai dizendo que queria de presente de aniversário de quatorze anos um passeio de trawler, lembrar dele cogitando uma outra opção pois o passeio não daria certo, pois ele não havia conseguido... lembrar da Lara minha irmã extremamente empolgada com minha ideia e pedindo para falar com Júlio para ele emprestar, e lembrar da minha mãe dizendo que não queria ir, lembrar dele coçando a cabeça e me chamando para um abraço dizendo um sinto muito pintinha, (como ele me chamava por eu ser magra, frágil, uma boneca de porcelana, como sempre falava) me olhar nos olhos e dizer que eu teria que usar muito protetor solar para não ficar parecendo um pimentão com uma cara de quem esperava eu processar suas palavras para lhe dar um sorriso maravilhoso ao entender que o passeio daria certo era dolorido. Lembro da Lara pulando em cima de nós com euforia, iríamos andar de trawler pela primeira, eu passaria meu aniversário do jeito que eu sempre sonhei, eu estava tão feliz que até o mau-humor da minha mãe, ou os comentários ácidos dela sobre mim não faziam efeitos.

Meu pai tinha o sorriso mais lindo e brilhante do mundo, seu sorriso sempre se transformava em gargalhada, sempre era como música para meus ouvidos, pois quando ele estava por perto eu estava protegida da minha mãe, ele era o meu herói, estava tão lindo velejando com um chapéu de capitão, sem blusa, os braços vermelhos por falta de protetor solar, uma bermuda morrom e um pá de chinelos, quando fecho olhos ainda sou capaz de ver nitidamente cada detalhe daquele dia, cada cheiro, cada som daquele momento maravilhoso. Ele estava implicando com Lara, dizendo que ela estava namorando escondindo, minha mãe estava tomando sol e bebendo uma cerveja, Lara estava revirando os olhos para ele, enquanto ele soltava mais uma das suas gargalhadas e dizia que amarraria pelos os pés qualquer pretendente das duas, se eles sobrevivesse ao teste de interrogação com respeitas rápidas ele deixaria namorar com a gente, mas se gaguejasse ele soltava o Hércules (nosso cachorro) para correr atrás deles até eles esquecerem o caminho da nossa casa. Eu só tinha 14 anos, não pensava em namorar, porque eu sempre acreditei muito em tudo que minha mãe falava sobre eu ser detestável e que nunca encontraria ninguém, diferente de Lara que era linda, carismática, Lara tinha 16 anos, a irmã mais linda do mundo, realmente, seus cabelos amendoados, rosto afilado, mais parecia uma barbie, todos os garotos da escola paqueravam ela, e eu tinha muito orgulho de ser sua irmã, lembro todas às vezes que a mãe tentava fazer ela não gostar de mim, mas mesmo eu tendo todos defeitos do mundo, sendo feia, esquisita, introvertida ela gostava de mim, ela pulava da cama dela e vinha deitar na minha, ficávamos até tarde conversando, ela gostava de dobrar minha orelha e ficar passando a ponta do dedo, era uma mania bem estranha, ela dizia que minha orelha era mole e era prazeroso ficar mexendo assim, eu deixava, eu gostava, e ela gostava de mim, mesmo tendo todos os motivos para me odiar, praticamente todas as noites a gente dormia juntas.

Estávamos felizes, eu via minha mãe curtindo o passeio, mesmo ela fazendo cara feia na saída, via meu pai curtindo e sorrindo, a minha irmã também... eu estava feliz, muito feliz, estava realizando meu sonho, e todos estavam feliz, até ouvirmos o primeiro barulho, aquilo nos assustou, meu pai nos tranquilizou, mas sua feição já não era de felicidade, era de preocupação, ele pediu para Lara segurar a roda do leme naquela posição, minha mãe se levantou de onde estava e foi junto com ele para dentro do trawler, voltaram minutos depois dizendo que estava tudo bem, nos deixando aliviados, mas não estava, e ninguém havia percebido, até horas depois o trawler começar a pender para um lado, e ele lentamente começar a girar, estávamos assustados e uma fumaça preta começou a aparecer, meu pai pelo rádio começou a pedir ajuda, foi aí que tudo estralou, e eu ouvi meu pai gritar e correr em nossa direção mandando a gente pular na água, depois daí não lembro de muita coisa, lembro-me de ter sido resgata e só.
Ali, naquele dia eu preferiria ter morrido, o corpo do meu pai foi encontrado três dias depois, o da minha irmã não, pelo impacto da explosão minha mãe ficou na cadeira de rodas e com vários outros problemas de saúde, ali agora era só eu e ela, eu com 14 anos recém completos. A princípio muitas pessoas nos ajudavam, mas depois que a comoção vai esfriando, as pessoas vão se afastando, deixando de ajudar e seguindo seus percursos como antes. Dali em diante todos os dias eu passei a ouvir o quanto eu sou culpada pela morte das duas pessoas que eu mais amei em toda minha vida, a parti dali que eu vi que eu era uma pessoa bem pior e que minha mãe jamais me amaria. Ali foi meu fim.

Levantei a cabeça e fechei os olhos, senti meu coração tão apertado e pequeno lendo aquilo, enxuguei às lágrimas que haviam caído sem eu ao menos peceber, respirei fundo e fechei o diário da Ayla, peguei uma roupa, fui ao banheiro, peguei os produtos de cabelo que ela usava, fechei seu quarto, e fui direto para o meu, coloquei seu diário debaixo do meu travesseiro e segui para as escadas.

A beira do abismo Where stories live. Discover now