Impulso

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A chuva chegou, e com ela a sensação de pureza, limpeza. Aquele cheio entrando pelo meu nariz era maravilhoso. Parece que consigo sentir cada gota caindo. É lindo. Maravilhoso. Coloquei uma música. A minha preferida para aquele tipo de momento. Todo mundo tem uma música para essas situações. Comecei a cantar na minha cabeça. A letra decorada e um sotaque inglês na minha cabeça. Ah! Eu não precisava de mais nada. Talvez, eu precise, mas agora não. Olho pela janela. A mistura do meu reflexo com as gotas batendo no vidro formam uma experiência única para os meus olhos.

Eu mereço esse momento depois do dia que eu tive. Ninguém merece chegar em casa e sofrer. O lar deveria ser um lugar de paz. Calmaria. Sossego. Mas de uns tempos pra cá, o meu se tornou uma tempestade com vários barcos, e o meu está afundando. Tantos problemas, tantas decepções. Não sei se consigo continuar assim. Sumir nunca deixa de ser uma opção para mim. Morte? Já tive esses pensamentos, mas eu só quero sossego. Sentir o prazer da calmaria. Quero sentir isso. Eu mereço.

Já fazia uma semana que Doutor Calizzoto me mandou mensagem e eu respondi. Fazia uma semana que eu não conversava com Júnior. Fazia uma semana que eu não via minhas amigas. Fazia uma semana que eu estava preso na minha própria mente. A pior coisa para alguém é estar preso nas próprias inseguranças. Não desejo isso a ninguém.

Eu voltei para a minha casa. Digo, a casa dos meus pais. Meus pais são cidadãos normais. Minha mãe é vereadora na nossa cidade. Ela é muito envolvida nas causas feministas. Meu pai é um arqueólogo. No momento ele está em algum lugar da América Central. Não lembro o nome do país.

Estou sozinho no momento. Na verdade, estou com a chuva. Ela e eu. Parece que conversamos. Mas sei que é apenas coisa da minha cabeça.

Não consigo parar de pensar naquela mensagem. Precisava acontecer logo comigo? É muito azar para uma pessoa só. Juro!

" leia atentamente. Presta atenção ok?"

" eu vou te pagar uma certa quantia por mês, e vamos nos encontrar toda semana em algum lugar"

" sinto muito, mas você não tem opção. Se não topar, esse vídeo seu vai vazar"

Essas eram as 3 mensagens. Uma mais surpreendente que a outra. Quando li, não tive reação. Só queria desaparecer. Não podia contar isso para ninguém. Aquele vídeo meu não podia vazar. Ninguém sabia daquilo e nem poderiam.

Eu não conseguia pensar em nada. Foi tudo no impulso. Abri o site de compras de passagens de ônibus. Comprei para a minha cidade natal. E fui cedo no dia seguinte. Posso parecer uma pessoa ruim, mas eu não ligo. Nunca liguei. Não vai ser agora.

Mas o que aquele vídeo tem sobre mim, você deve estar pensando. Essa é a hora de vocês conhecerem o verdadeiro Bruno Saltto. Não sou esse menino que pareço ser. Apague da sua cabeça qualquer ideia que você criou sobre mim. Sou um lixo. Já fui pior.

No reflexo do espelho consigo ver meu cabelo. Curto. Sempre curto. Do jeito que eu gosto. Meu rosto é normal. Tenho olhos escuros. Nariz um pouco maior do que a média. Mas isso nunca me abalou, apesar de comentários. Meus dentes são normais. Nunca dei bola para isso de sorriso. Tenho um piercing na orelha direita. Não tenho tatuagens. Meu porte físico é normal.

Vamos focar agora no meu terceiro colegial. Foi um ano de muitas experiências. Mas foi ali que eu me perdi. Era ano de vestibular. Muito estudo e dedicação, e foi nisso que eu conheci Pierre. Ele era um cara mais velho. Ele é lindo. Acho que sempre vai ser. Conheci ele em uma exposição de arte.

" o que você entendeu desse quadro?" - Pierre

"Achei complexo. Mas as árvores cortadas representam o corte de verbas que a educação vem sofrendo. Achei interessante."- eu

" pensei a mesma coisa. Qual o seu nome?"- Pierre

"Bruno e o seu?"- eu

"Pierre"

Começamos a conversar. E um dia nos beijamos. Eu tinha 16, ele 20. Um dia me chamou para ir na casa dele. Já fazia uns 4 meses que estávamos saindo. Eu me sentia bem com ele.

Lá na casa dele, apareceu mais um homem. Não conhecia. Pierre me contou que queria experimentar coisas novas. Na hora assustei. Mas depois de tanta insistência, topei. Foi bom. Não posso negar. Foi uma experiência que não vou esquecer. Aquela foi a primeira vez que transei com Pierre e mais uma pessoa.
Depois desse dia, se tornou um hábito. Toda semana era um cara novo. As vezes me encontrava até duas vezes na semana. Pierre conseguia me fazer sentir desejado. A sensação de alguém te querer é boa. Todo mundo gosta, eu acho. Eu amo.

Um dia, teve uma festa. Eu só conhecia Pierre. Tinha muita gente. Acabei ficando excluído. Nós não namorávamos. Eu não tinha vontade e nem ele. Era uma coisa fixa, mas nada de comprometimento. Não servíamos para isso. Ainda não sirvo.

Na festa, bebi muito, e no meio desses copos que eu tomava alguém colocou alguma coisa na minha bebida. Fiquei um pouco drogado. Pierre me chamou para ir para o quarto. Mais três homens vinham atrás dele. Foi ali que eu vi que eu estava sendo usada. Pierre me oferecia para homens. Ele era uma cafetão. Sim, eu estava me prostituindo sem saber. O problema é que eu não ganhava dinheiro. Aquilo era uma exploração.

Naquela noite eu realizei todos os fetiches que eu poderia imaginar. Foi horrível,e ao mesmo tempo tão satisfatório. Pela primeira vez recebi dinheiro. 300 reais. O sexo foi 300 reais. Senti nojo de mim. Eu não precisava daquilo. Meus pais tinham condições boas de vida. Depois da festa briguei com Pierre. Ele nem pediu desculpas.

Passou uns dias, e ele me ligou. Falou que tinha um cliente. Eu aceitei, por mais estressado que eu estivesse, o sexo aliviaria. Mas não foi bem assim.

Tive 39 clientes. Sim. Transei por dinheiro 39 vezes, contando todas as vezes que Pierre foi comigo. Sozinho transei 21 vezes. Ganhei muito dinheiro. Mas nem era mais por isso. Era pela sensação de sentir desejado.

Depois de um tempo dei uma diminuída. Precisava estudar. Consegui organizar os meus estudos com essa vida. Me tornei um indivíduo com uma vida dupla. Ninguém nunca soube de nada, nem mesmo meus melhores amigos da época. Isso não é coisa que se compartilha com os outros.

Passei na faculdade e terminei qualquer vínculo que tinha com Pierre. Não culpo ele, apenas eu. Fui burro e ingênuo.

E é agora que o video do Calizzoto faz sentido. Um dos meus clientes, gravou o sexo. Eu não sabia disso, até ver o vídeo. O pior é que o vídeo mostra o homem me dando dinheiro. Eu seria exposto. Seria meu fim. Todo mundo me olharia com nojo. Até mesmo Júnior.

**

Hoje é meu último dia em casa. A noite pego o ônibus e volto para o meu apartamento com os meninos. Espero, sinceramente, que eu consiga resolver as coisas. Eu preciso. E foi assim, em um ato de coragem que eu respondi a mensagem do meu professor.

"Ok! Estou voltando para a cidade. Nos vemos que dia?"

A noite fui para a rodoviária. Minha mãe foi junto. Me despedi. Entrei no ônibus. Achei meu assento. Sentei. Me acomodei. Era hora de voltar para a realidade. Abri as conversas dos meus amigos. Uma por uma fui respondendo. Todos demonstravam preocupação. Eu estava rodeado de pessoas que me queriam bem. Isso é satisfatório. Eu gosto que perguntem como eu estou. Mesmo que eu minto, quase sempre a resposta, gosto de sentir que as pessoas se importam comigo.

Abri a mensagem de Júnior.
"Cara Cade você? "
" você sumiu"
" eu to muito preocupado"
"Eu quero te ver, preciso te ver"
"Liguei para a sua mãe. Ela disse que vc voltou. Ainda bem que vc está bem então."
" não precisa me contar nada. Só fala se vc tá bem"
"Por favor me responde. Vc faz falta no meu dia"
... e Tinham mais umas 30 mensagens nesse estilo.

Eu estava envolvido em um rolo tão grande. Mas um dia de cada vez né?

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