61. A Cegueira do Homem [Isao]

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'Pelo Supremo...', deixou escapar, aflito por perceber que aquele sonho tinha inúmeros significados.

– Senhor! – Seus pensamentos foram interrompidos por Mamuro, que passou ao seu lado acompanhado do inusitado estandarte em seu ombro e do cheiro enjoativo de sangue.

O capataz havia tido a brilhante ideia de amarrar a flâmula com o brasão da família de Shimada no corpo da própria foice, criando uma peça macabra, em que o bordado com o boi de um único chifre tremulava sinistramente com uma mancha escura de sangue ressequido.

Acompanhou, curioso, Mamuro alcançar Shimada e gesticular algo exagerado para ele. Depois do episódio do cavalo, o capataz vinha fazendo de tudo para agradá-lo. Como se algum comentário espirituoso seu fosse mudar o fato dele quase ter arruinado o exército de seu senhor, horas antes da batalha, ao enfiar na goela de um animal o artefato mais raro da família, vergado até mesmo pelo avô do seu tio.

Não fosse uma ferramenta tão importante para a vitória, Shimada mandaria Mamuro se matar na frente de todos apenas usando o graveto que sobrara do estandarte.

Percebeu Tetsubo e Yutaka se entreolharem e se afastarem da primeira fileira, provavelmente incomodados com a presença do capataz.

Já fazia um tempo que Tetsubo não dava nenhuma palavra, nem mesmo para reclamar das moscas que continuavam a cercá-lo, atraídas pelo seu suor azedo. Fumio também tinha desistido de seus biscoitos entocados. Consciente, enfim, de que tudo aquilo não era apenas uma de suas historinhas cheias de gravuras, que devia colecionar mesmo depois de adulto. E Yutaka permanecia acordado, tão impávido em sua postura ereta, que Isao temeu que, em algum momento, o velho amigo fosse vestir de volta as espadas.

– Pelo último Galo, por que Shimada permitiu que Mamuro fizesse essa atrocidade com o brasão da família? – Isao demorou a perceber que Yutaka falava com ele. – Que coisa de mau gosto!

– Mau gosto? – O sacerdote fingiu surpresa. – Não vejo como o estandarte poderia ornar melhor com a situação.

O velho desacelerou o trote do cavalo para ficar ao seu lado, sem perceber que Tetsubo o fitava, incomodado.

– Realmente, muito simbólico – concordou, dando batidinhas no pescoço da montaria para que ela se acertasse na estrada. – Torço apenas para que esse sangue não venha a ser de nenhum de nós.

'Apenas eu derramarei sangue hoje.', quis gritar para que o velho amigo se afundasse em culpa por não ter tido coragem suficiente para enfrentar Shimada.

Certo de que suas palavras apenas estragariam seus planos, preferiu o sarcasmo.

– E eu torço para que Ryota nos receba com uma saraivada de flechas!

Yutaka gargalhou, revoltando ainda mais Isao.

– Batalhas só começam assim, cheias de ação, nos contos de fantasia. No mundo real, elas são bem mais entediantes, garoto. São tantos os protocolos...

– Protocolos podem ser quebrados. Veja você, o melhor aliado de Shimada conversando com um prisioneiro.

– No sul, respeitamos os ritos imperiais estabelecidos para o campo de batalha – pontou o velho fitando Shimada por um momento. – E eu não quebrei protocolo nenhum, já que você não me parece um prisioneiro! – quase gritou, sinalizando os pulsos do sacerdote.

– Não faz sentido vocês respeitarem os ritos imperiais, mas não aceitarem um governo imposto pelo Império!

– O Kerai não é o Imperador. Há uma influência muito maior de Shiba naquele Palácio do que da Corte – disse, apontando para o horizonte à frente. – Eu entendo sua revolta, rapaz. Mas vamos tentar olhar pelo lado positivo. Talvez a ausência do Kerai possa facilitar algum tipo de acordo.

– Não me parece que alguém que tenha Mamuro e esses mercenários marchando ao seu lado esteja disposto a conversar, Yutaka. Convenhamos.

– Bem, a política tem suas particularidades. Não é incomum que diálogos dependam de algum incentivo militar.

– Imagino que tipo de incentivo Mamuro queira oferecer...

– Tenhamos fé! – exagerou o velho com uma piscadela.

– Não seja tão covarde! – gritou – Não é justo colocarmos na fé a desculpa para nossa negligência.

– Menino, eu fui honesto com você. Falei que seguiria seu tio caso ele marchasse. Sigo com o coração apertado, mas com a consciência tranquila – concluiu, estralando a coluna ao se acertar na sela.

– No fim, tudo se resume ao nosso egoísmo, não é mesmo?

– Também... – não pareceu incomodado com o comentário – Mas há um pouco mais que egoísmo em minha decisão. Ou você considera promissor o governo ficar nas mãos de Harushi e Kobayashi?

Isao não soube o que responder.

Soubera por Hiromi do sumiço do Kerai e preferira acreditar que ele tinha viajado por conta de algum compromisso mais urgente. Era difícil aceitar que um líder tão esclarecido, tão austero, iria se acovardar ao ponto de fugir daquela maneira.

Fitou Shimada e Mamuro com seu estandarte bizarro e concluiu que a decisão do Kerai não era lá tão condenável quanto parecia.

– Eu digo por mim – continuou Yutaka –, mas não acho uma boa ideia deixar o governo na mão daqueles dois. Principalmente, com o Norte tão perto.

Isao correu os olhos pelo Rio Espada, que naquele trecho passava perto da estrada, e viu uma carpa estrela brilhar ao saltar sobre uma pequena cachoeira em seu caminho.

Lembrou de Yojiro sentado ao seu lado sob o salgueiro ancião, às margens do Lago do Sempre. Naquele episódio pudera sentir a presença do Supremo em cada pedacinho da Floresta Sagrada. Uma energia que pulsava em todas as almas encarnadas na Terra do Descanso.

'Por que o homem é tão cego para os sinais de Deus?'

Culpa do egoísmo, da falta de empatia, que encobriam a consciência com uma camada pegajosa de lama.

Suspirou.

Estava cansado de tudo aquilo. Das guerras que matavam no Norte e que logo matariam no Sul. Da política e de todas as suas particularidades. Da ganância por poder, por riqueza, que fazia com que pais perdessem filhos e filhos crescessem órfãos. De todas as barrigas famintas e de todos os peitos carregados de sofrimento.

Que aquela praça chegasse logo. Estava pronto para o sacrifício. Enfiar uma espada em seu próprio corpo não seria apenas um favor para Uruma, ou mesmo para seu tio, seria um alívio para ele também. Aceitava, enfim, que não sabia lidar com a Terra do Descanso e suas mazelas. Havia encarnado sem a resistência suficiente par suportar toda a rudeza à sua volta. O melhor seria voltar para o mundo espiritual e, lá, se aprimorar para uma nova tentativa. 

Isao está em seu limite, certo de que deve se matar

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Isao está em seu limite, certo de que deve se matar. A morte dele, de fato, evitaria a guerra entre o governo e Shimada? O que vcs acham? Essa é mais uma viagem de nosso impulsivo sacerdote?

Obrigado por estarem aqui, nessa reta final. Faltam pouquíssimos capítulos para que "O Dragão de Uruma", enfim, tenha seu fim. 

Continuo ansioso por esse momento e para saber a opinião de cada um de vcs. ;)

Um abraço apertado em todos vcs e até segunda-feira! \o   

O Dragão de UrumaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora