18. Uma Última Gargalhada [Ryota]

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Estava ficando cada vez mais difícil lidar com o pai

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Estava ficando cada vez mais difícil lidar com o pai.

Se pudesse, evitaria o contato ao longo do dia. Sabia que ele estaria disposto a reclamar até encontrar um motivo qualquer para discutir. Compreendia sua insegurança e irritabilidade. Enquanto Ryota tornava-se mais independente como primeiro chefe da guarda, aproximando-se cada vez mais do Kerai; ele se distanciava, preso a ressentimentos do passado, certo de que tramavam sua derrocada.

Entendia as dores do pai, mas ele tinha de aceitar que Uruma estava acima de qualquer problema pessoal.

Viu Isao cumprimentar um camponês, que ceifava o capim mais alto ao redor do Pessegueiro-coração, e tomar uma liteira para as fazendas. O amigo tinha um olhar distante, uma postura um tanto soturna.

– O que foi? – perguntou, ao flagrar o sorriso do pai enquanto Harushi acompanhava também o sacerdote entrar no veículo.

–Hum? Nada... – Harushi deu um passo adiante. – Garoto, ajeite melhor essa sombrinha, pelo amor do Supremo! – reclamou mais uma vez para seu jovem criado.

O samurai suspirou e aproveitou para dobrar as barras do quimono já sujas de lama. Não gostava daquela expressão do pai. Sabia que ele não deixaria a confusão com Kyoko na sala de aula passar em branco. Principalmente por Isao, o sobrinho de Shimada, estar no centro dela. Mas, naquele momento, já era desafio suficiente ouvir o tal assunto urgente pelo qual ele o havia chamado.

Uma desculpa esdrúxula do pai para interrogá-lo a respeito da reunião com o Kerai.

Um senhor, saído às pressas da ruela da feira, carregando um fardo de espigas de milho nas costas, parou de súbito ao se deparar com o samurai e o segundo ministro e ofereceu uma longa reverência, fingindo ignorar as espigas que caíram no chão.

– Você ainda não me contou o que o Kerai queria com você – enfim, disse Harushi ao alcançá-lo.

– Nós apenas discutimos a segurança do festival.

– Vocês falaram sobre o festival sem a minha presença? – baixou a voz ao perceber que o senhor, ainda em reverência, podia escutá-lo. – É um absurdo. Quem melhor do que eu para tratar deste assunto?

– Pai, falamos apenas da segurança. Nada mais – tentou encerrar o assunto.

Perto da entrada do Palácio das Asas, uma estaca de madeira balançou e se soltou das vigas de sustentação do palco onde seriam apresentadas as atrações do dia seguinte. Um grupo de aldeões que erguiam a tenda principal correram desesperados para evitar que toda a estrutura de madeira viesse abaixo. Pareciam exaustos e desanimados. Afetados pelo insistente clima de ameaça que havia tomado a cidade.

– O senhor concorda com a decisão de manter as comemorações? – perguntou Ryota, sabendo que o pai adorava quando demonstrava interesse em sua opinião.

– Claro! Não há motivos para um cancelamento. Até porque os ataques foram nas terras de Shimada e os boatos só chegaram agora ao centro.

Harushi segurou o passo, irritado.

– Garoto, acerte a posição dessa maldita sombrinha! Já estou todo encharcado! – gritou para o acompanhante que, desesperado, procurou uma posição que o satisfizesse. – Até porque... – voltou-se para Ryota. – A verba arrecada com o festival será importantíssima para meus projetos.

– Hum... – Ryota sabia que suas palavras começariam uma verdadeira tempestade. – O Kerai me informou que a arrecadação será destinada à segurança. – falou, procurando o tom mais ameno em suas palavras. O pai parou surpreso.

– Como? – seu grito espantou as pessoas ao redor. – Eu preciso desse investimento!

Uma andorinha cruzou à frente dos dois e arrancou uma careta desesperada de Harushi. As crianças mais próximas, que se divertiam ao participar da montagem das barracas para a festa, riram, animadas com a situação inusitada e foram prontamente repreendidas pelos adultos que as acompanhavam. Os meninos, então arrependidos, prostraram-se em profundas reverências e levaram Ryota a sorrir. Eram crianças, apenas, imunes aos problemas desinteressantes dos mais velhos. Não pôde deixar de perceber, também, que o menino que acompanhava o pai assistia a tudo com o olhar suplicante, ansioso para brincar com os amigos.

– Se fosse numa outra época, seriam todos executados! – vociferou Harushi para as crianças, acelerando o passo. – E você, erga essa sombrinha direito!

– O momento pede que reforcemos nossa segurança – o samurai retornou ao assunto, ignorando os exageros do pai. – Sem proteção, tombaremos para o inimigo.

– Que inimigo? Meia dúzia de bandoleiros famintos? – debochou, parando de súbito e obrigando o menino a se esticar desajeitado para mantê-lo protegido da chuva. – Mal sabemos se a guerra irá mesmo atravessar a fronteira.

– Acredita mesmo nisso? O senhor sabe, melhor do que ninguém, que temos de reforçar a segurança de Uruma. Não há outra coisa a se fazer.

– Tudo bem, tudo bem... Mas tinha de ser com o dinheiro do festival? O Templo, por exemplo, por que o Kerai não usa a verba dele? Não serve de nada mesmo, aquele poleiro para crentes supersticiosos...

Ryota fitou um trabalhador que pareceu ter ouvido a ofensa. O homem, já velho e desgastado, baixou os olhos envergonhado. A água acumulada na borda do seu chapéu parecia não incomodá-lo.

– Foi uma decisão do Kerai. Não cabe a nós questioná-la.

– Oh! Falou o samurai do Kerai! – debochou mais uma vez, balançando as mãos de forma divertida. – Às vezes, tenho para mim, que você esquece que eu sou seu pai. Deveria me apoiar e não me apunhalar pelas costas.

– E o senhor deveria se preocupar mais com Uruma.

– Ah, não me venha com suas frases de efeito. Isso me cansa. – Bateu os pés para tirar o excesso de lama da sola dos tamancos e avançou apressado, dando as costas para o filho. – Não tem ideia do quanto me cansa!

Do jardim do Palácio, saíam os atores que se apresentariam no festival na companhia do Primeiro Ministro. Riam animados de uma possível piada oportunista de Kobayashi. Os meninos, até então distraídos, correram em direção à propriedade com a intenção de acompanhá-los até a carruagem que esperava na rua. Gritavam alegres e lançavam confetes e fitas sobre suas próprias cabeças. O ator ao centro do grupo, provável protagonista da peça principal, lançou-lhes um olhar aborrecido, obrigando Kobayashi a ordenar que os guardas da entrada interrompessem a aproximação das crianças.

Ryota suspirou, desanimado.

Eram seus soldados, seguindo ordens intolerantes e descabidas. Olhou novamente para o pequeno acompanhante do pai e teve pena de todos eles.

– Pai, deixe-o brincar – falou, no impulso, recebendo do garoto um olhar esperançoso. – Vamos, amanhã será noite de festival e ele merece se divertir um pouco.

Harushi relutou, mas cedeu, para uma explosão de felicidade do menino, que saiu aos tropeços pela a rua após uma longa reverência.

– Garoto! – gritou Harushi. – Vá, mas deixe minha sombrinha!

A ordem arrancou uma gargalhada de Ryota.  

O Dragão de UrumaWhere stories live. Discover now