57. A Revelação [Isao]

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A violência.

Sentiu pequenas agulhadas gélidas em seus pés e não conteve um murmúrio de espanto ao ver que um camundongo havia passado por entre suas pernas. Corria na direção de um dos mercenários, e, sem que o tal homem aparentasse se importar, escalou seu corpo, se acomodou em seu ombro, e pareceu sussurrar algo em seu ouvido.

Isao apertou os olhos, perplexo.

Nenhum dos soldados mais próximos demonstrou ter percebido o camundongo, que passava a estranha sensação de ser engolfado por uma névoa incandescente, suave, que o destacava do ambiente. Pareceu-lhe absurdo, mas a impressão que tivera era de que o pequeno animal não estava de fato ali.

Com um sobressalto, lembrou do sonho com Izanagi e da velha dos animais.

– Assustado, Isao? – ouviu às suas costas e o cheiro de esterco fresco misturado ao suor azedo invadiu suas narinas. Mamuro se aproximava, trazendo dois cavalos pelas rédeas. O pardo de crinas castanhas era o favorito de Shimada.

– Deixe-me em paz, seu assassino! – gritou, sem conseguir se recompor do susto.

No canto mais escuro de sua mente os olhos prateados e sem vida de Eiji se arregalaram. O sangue transbordava borbulhante de sua cabeça como um saquê recém aquecido derramado em cima da mesa de carvalho. Encarava-o com insistência, mergulhado na escuridão, suplicando-lhe por ajuda.

Mamuro não respondeu seu insulto, apenas sorriu, com seus lábios escuros e cheio de frisos, calculando seu próximo passo. Estava ainda mais assustador soterrado por inúmeras placas de metal como se fosse uma escultura de ferro usada nas grandes fortalezas para espantar os maus espíritos.

O capataz se aproximou, abrindo ainda mais o seu sorriso, e o agarrou pela gola de seu corselete.

Isao sentiu seus calcanhares saírem do chão.

– Rapazes! – bradou o capataz, voltando-se para o grupo de mercenário que acompanhava a cena. – Contemplem o bravo guerreiro que vencerá esta batalha por vocês! – concluiu, empurrando Isao para o meio da pequena multidão que se formava à sua volta.

Todos gargalharam ainda mais alto quando Isao cambaleou desajeitado antes de recuperar o equilíbrio. O sacerdote parou e circulou seu olhar ainda confuso por cada soldado que o encarava. Seus rostos encardidos pela fuligem e pela terra ressequida contorciam-se em sorrisos de escárnio. Vacilou. Uma tontura súbita apoderou-se dele, e por um momento eterno voltou a ser criança, envolvido pela memória das vezes em que fora cercado pelos outros garotos, filhos e parentes dos senhores amigos do tio, e sofrera humilhações e zombarias temperadas por risadas forçadas.

'Como esquecer daquelas risadas?', quis chorar.

Apertou os olhos de novo, lutando contra sua covardia, contra a mania estúpida que tinha de se entregar. Não era mais um garoto. Muito menos um coitado. Procurou acreditar. Ainda que soubesse que a única distância que mantinha daquele menino apavorado era a do tempo.

– Ouviram, rapazes? – continuou Mamuro para desespero de Isao e deleite dos soldados. – Caso as mocinhas venham a precisar de um exemplo de coragem durante a batalha, olhem para a primeira fileira. Lá estará nosso herói, orando, suplicando a um deus qualquer, para que o seu próprio rabo seja poupado! – e arrancou uma nova explosão de gargalhadas.

Não se conteve. As lágrimas fizeram ressurgir um ódio ainda maior por Mamuro, e por cada uma daquelas bestas ignorantes que o rodeavam ao sentir o cheiro de sangue fresco.

Caminhou determinado até o capataz, pronto para atacá-lo. Acabaria com ele e depois com seu tio. Daria um fim àquela guerra. Seus passos foram acompanhados por risadas.

Quando próximo de Mamuro, pôde sentir a raiva que emanava daquele monstro. O cão-de-guarda de Shimada só esperava um motivo para arrancar-lhe a cabeça.

Resolveu parar. Ainda que furioso, preferiu ceder ao medo.

'Onde estou com a cabeça?'

'Pretendo eu, um sacerdote, tão ágil como um cabrito recém-nascido, enfrentar um assassino que devia comer as tripas das suas vítimas no café da manhã?'

Era melhor se controlar. Respirar fundo.

Encarou-o, antes de recuar, torcendo para que Mamuro não voltasse vivo da batalha.

O que não aconteceria, pois não havia justiça divina naquele mundo.

Não uma que fosse tão óbvia quanto a morte de Mamuro ou do seu tio. Ou que justificasse Isao passar por toda aquela humilhação.

'Não basta a ruína do Templo? A perda de meus alunos? A morte de Eiji? Já não é o bastante eu ter nascido sem a permissão de receber o amor dos meus pais, obrigado a conviver com um tio que não me respeita e que é a personificação de todos os valores que desprezo? Não é crueldade suficiente eu mesmo ter matado minha mãe? Ter arrancando sua vida, como um demônio esfomeado, ávido por sobreviver?'

'Quanto mais eu serei punido?'

'O que mais me falta perder?'

As risadas emudeceram como se seu devaneio houvesse calado seus opressores. Parecera a Isao que a fazenda ficara estranhamente atenta ao seu desespero silencioso, mas era Shimada. Seu adorado tio havia surgido na varanda.

– Sim, Mamuro! – bradou o velho, triunfante, em sua armadura ancestral. – Isao estará na primeira linha de minha tropa como um verdadeiro Shimada! – E caminhou para perto do capataz que curvara levemente a cabeça em respeito. – Isao ainda é meu sobrinho. Quiseram os dragões que ele tivesse meu sangue. Desrespeitá-lo é o mesmo que desrespeitar a mim mesmo. Ao meu próprio nome! – Mamuro não pareceu ter sido atingido por suas palavras. – Quem ousar vomitar qualquer ofensa contra ele será amarrado à anca do meu cavalo e arrastado pela estrada até que perca toda a pele do corpo! Ouviram? – encerrou, para silêncio de todos, e prosseguiu, impetuoso, até sua montaria que, indiferente ao discurso, se distraía com as moscas.

Isao viu o capataz erguer a cabeça quando Shimada deu-lhe as costas e se aproximar. Ainda que, agora, tivesse a proteção do tio, estremeceu.

– Garoto, você traiu seu tio. Só não o mato por respeito a ele – murmurou, com os dentes serrados, baixando a cabeça conformado e tirando o suor do rosto. – Mas não me perca de vista no campo de batalha.

Mamuro fitou-o por um instante, antes de ordenar que todos preparassem os cavalos.

Isao permaneceu atônito.Parado, não por medo, desta vez, mas por um súbito lampejo de esclarecimento. Por uma resposta que iluminara seu interior. Havia, sim, uma última coisa aperder. Um único e derradeiro tesouro que deveria ser sacrificado. Sua vida. Eera para entregá-la que o Supremo, em todo o seu esplendor, queria que Isao estivessepresente naquela guerra.

 Eera para entregá-la que o Supremo, em todo o seu esplendor, queria que Isao estivessepresente naquela guerra

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Isao chega a uma inquietante conclusão. Vocês concordam com a saída desesperada de nosso sacerdote? Nos próximos capítulos, Isao desenvolverá melhor seu ponto de vista. ;)

É incrível chegar nesse ponto do livro, tão perto do final, aqui no Wattpad. Quando eu ia imaginar, lá em 2014, quando comecei essa jornada, que eu terminaria essa história e que a lançaria numa plataforma como Wattpad...

O Wattpad é uma loucura muito boa! rs

Um grande abraço em cada um de vocês. E nos vemos na segunda! \o 

O Dragão de UrumaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora