Capítulo 17

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Tiffany pareceu não notar quando eu arrumava desesperadamente a minha mochila. Traidora... Acho que se ela falasse comigo agora eu seria capaz de lançar um feitiço qualquer e machucá-la, ou até matá-la. Eu ainda não conseguia aceitar que ela gostasse do meu Janish... E agora ele iria ficar livre... A ideia me fazia ter ânsia, quase me fazia querer bater em alguém. Mas eu não podia pensar nisso agora, precisava me concentrar em fugir. Peguei apenas algumas peças de roupa, uma caixa de fósforos, verifiquei o colar de Destiny Hope, acomodando dentro dele algumas cobertas, um travesseiro, o diário, a minha foto com o meu padrinho e uma foto de Janish.Vesti calças grossas, um casaco, e calcei um par de botas e luvas. Peguei a minha leve mochila e caminhei para o jardim, quando notei que a neve começava a cair, e que eu teria que dar um jeito sozinha. Talvez eu fosse para a casa dos Clarke, ou procurasse por Jess, ainda que fosse perigoso, dada a situação de Aurora. Eu resolvi que passaria pelo menos esta primeira noite sozinha, para começar a me acostumar com a minha nova realidade, com a minha nova vida.
  Abri o portão principal usando a varinha e comecei a caminhar pelas ruas de Vancouver, sentindo um frio na barriga, um nó na garganta e lágrimas rolando no meu rosto. Me sentia uma fracassada total por haver perdido uma vida que eu tanto estava gostando, uma vida que estava sendo perfeita para mim.
  A neve começou a cair mais rápido e eu apressei o meu passo na busca por um lugar para passar a noite e se eu encontrasse uma árvore alta o bastante, talvez eu passasse muitas noites aí. Eu ainda estava na terceira quadra depois do colégio, quando senti que alguém tocou o meu ombro. O meu coração disparou e eu tive vontade de gritar e sair correndo, mas não consegui me mover, minha boca e minhas pernas não obedeciam, e eu não tive outra alternativa a não ser esperar.
  − Não acredito que você ia embora sem se despedir de mim. − disse uma voz angelical.
  Foi como se o mundo voltasse para mim. Como se eu tivesse recuperado a minha própria vida.
  − Janish! − eu gritei, e chorando, me joguei em seus braços. Minha respiração falhou e meu coração batia de uma maneira incontrolável, absurda, quase como se fosse explodir. Ele me aconchegou acariciando e removendo a neve dos meus cabelos e parte das minhas costas, alternando movimentos suaves e fortes. Eu o abracei com toda a minha força, como se o mundo fosse acabar ali mesmo. 
  − Por favor, não chore. − ele pediu. Comecei a secar as minhas lágrimas sentindo o meu rosto gélido, enquanto o meu coração começava a desacelerar. Eu realmente não podia estar chorando, não podia deixar que Janish pensasse que era uma fraca inútil. Respirei fundo e limpei o meu rosto. E então, olhei para ele.
  Não podia haver nenhuma visão mais linda no mundo que ele, com seus olhos cor do mar, com seu cabelo negro bagunçado coberto com uma camada fina de neve, e seus lábios entreabertos, que mais pareciam esculturas. Num impulso incontrolável eu levei os meus lábios aos seus e nos beijamos apaixonadamente por alguns momentos, naquela avenida não movimentada neste momento. Mas ainda assim, eu teria que tomar muito cuidado.
  − Janish. − eu interrompi o nosso beijo. − Eu preciso ir.
  As lágrimas quase voltaram ao pensar em me separar dele. Engoli em seco tentando desfazer o nó que havia em minha garganta e continuei:
  − Foi lindo o que passamos juntos de verdade e... Bom eu tenho que ir agora.
  Seus dedos quentes tocaram as minhas bochechas e foi como se me queimassem, como se me ferissem a ponto de me fazer fechar os olhos com força e parar de respirar. Talvez tivesse sido melhor uma partida sem despedidas.
  − Tem razão. − disse sua voz macia. − Em uma parte apenas. O que vivemos foi lindo, mas nós temos que ir agora.
  Abri meus olhos tão rápido quanto o vento e me deparei com olhos divertidos e quentes, e então me dei conta de que ele carregava uma mochila aparentemente pesada.
  − Você quer vir comigo? − balbuciei incrédula. Ele fez que sim com a cabeça, e então disse:
  − Eu nunca deixaria você sozinha. Não consigo ficar longe de você.
  − De maneira alguma, Janish, você tem uma vida aqui, uma família e eu não posso deixar que você venha comigo, eu estaria sendo egoísta.
  Ele apertou as suas mãos nas minhas.
  − Não, Melissa, não. Eu quero estar com você, não importa deixar a minha família e...
  − Não diga isso, por favor. Janish eu sei o que é ter uma família e depois perdê-la, eu sei o quanto isso dói, o quanto isso pode machucar e eu não quero que você passe por isso por minha culpa, eu não posso aceitar isso, jamais me perdoaria...
  Ele me puxou para perto, segurou o meu rosto e me olhou bem no fundo dos meus olhos.
  − Melissa, eu também já perdi pessoas da minha família de uma forma terrível, de uma forma que realmente acabou com a minha família. Meus país não são os mesmos, eu sei que eles estão juntos, mas as coisas não são como eram antes. De qualquer forma isso não vem ao caso agora. Vamos fugir juntos, porque não será por muito tempo. Quando formos maiores de idade poderemos voltar e ninguém vai poder nos separar. Você não será obrigada a voltar para a sua cidade se não quiser.
  Abracei-o novamente e ele beijou a minha bochecha.
  − O que você me diz? Lembre-se do dia em que começamos a namorar, de quando eu disse que quero estar com você nos momentos bons e também nos momentos ruins.
  Fiz que sim com a cabeça. Janish me apertou contra o seu peito.
  − Eu sabia. − ele disse convencido. − Não se preocupe com a minha família. Quando voltarmos, eles vão nos aceitar e vamos voltar ao colégio. Tenho certeza de que vão nos entender. E quero que saiba que, enquanto fugimos, a minha única família é você. Eu te amo.
  Eu me senti amada, de um jeito que só ele conseguia me fazer sentir.
  − Também amo você.
  Nos abraçamos muito forte, ele beijou a minha outra bochecha e logo se afastou.
  − Vamos, temos que sair daqui. Encontrar um lugar seguro. − ele disse. Em seguida segurou a minha mão e começou a me guiar pelas ruas de Vancouver.
  Era muito bom tê-lo comigo, fugindo comigo e me cuidando, mas eu sabia que isto iria me custar caro, porque estando sozinha com Janish eu não ia poder voltar a Aurora para treinar os meus poderes, para aprender sobre magia, para visitar Neil, Kenzie, Mar, Esdras, Lizzie, Laura, Jess... Até mesmo de Harold eu ia sentir falta. Eu não ia poder lutar contra o Rei, e fazer de Aurora um lugar melhor. Isto era realmente frustrante. Todas estas pessoas eram muito importantes para mim e mais tarde eu ia ter que dar um jeito para poder vê-las, ou pelo menos, dizer que eu estava bem.
  Caminhamos apressadamente por algumas horas buscando ruas que não fossem tão movimentadas tanto durante o dia quanto à noite. É claro que Janish era bom nisso, pois conhecia o lugar e eu não conhecia nada. Cansados, nós paramos em um beco estreito e escuro que seguramente seria o abrigo de alguns gatos, pelo barulho que se ouvia. A neve deu uma trégua, mas ainda fazia muito frio. Nos encostamos na parede e respiramos um pouco, aliviados, ainda que eu estivesse, de certa forma, preocupada.
− Janish, eu gostaria de saber como Anna irá reagir a tudo isso.
− Ela certamente ficará furiosa e talvez não perdoe o fato de eu tê-la trancado com meu pai em seu próprio quarto, roubado uma parte da comida e depois ter fugido com você.
  Eu parei de respirar.
  − Você o que?
  Ele riu enquanto eu tentava sair do estado de choque.
  − Pensando bem, ela vai me perdoar. Eu deixei a chave ao alcance da minha irmãzinha, então eles vão conseguir sair do quarto.
  Pensando melhor isso não era tão grave. Nós não íamos ver a família de Janish por um bom tempo, e quando chegasse o momento, eles já teriam esquecido este incidente.
  Janish segurou a minha mão e começou lentamente a falar.
  − Melissa, tenho que contar uma coisa. Em qualquer lugar que eu for a minha mãe pode me encontrar, então eu não tenho muitas alternativas, a não ser...
  − A não ser o que?
  − A não ser me esconder na floresta.
  − Me parece uma ótima ideia.
  De repente ele pareceu surpreso.
  − Está falando sério?
  − Sim, eu falo sério. De verdade, eu acampei muitas vezes com o meu padrinho e aprendi algumas coisas sobre sobrevivência.
  Ele sorriu e me abraçou forte.
  − Quando amanhecer, continuaremos caminhando. − ele disse.
 
  O amanhecer chegou muito rápido e eu logo me deparei com dois olhos lindos da cor do mar me olhando. Era tão irreal que podia até ser a extensão de um sonho.
  − Bom dia. − Janish disse tranquilo. Ele estava sentado no chão me segurando no colo, e me abraçando quase como se eu fosse um bebê, com minhas pernas apoiadas cuidadosamente sobre sua mochila. E então essa era a primeira vez que acordávamos juntos, e eu sentia um pouco de vergonha, ou timidez. Mas eu ia me acostumar.
  − Bom dia. − respondi fechando os olhos. Então senti um beijo estalado na minha testa. Em seguida ele arrumou uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha, dizendo.
  − Eu adoraria ficar o dia todo abraçado com você, mas nós precisamos ir.
  − Tem razão. − eu disse, sorrindo.
  Levantamos e depois de arrumar um pouco o meu cabelo e sacudir o restante da neve, nós caminhamos de mãos dadas um pouco mais.
  Nós entramos num táxi que nos levou para uma rodovia, a cinco quilômetros de uma grande floresta.
  − Têm certeza de que querem ficar aqui? − perguntou o taxista, estranhando a situação.
  − Sim, temos certeza. − Janish respondeu com firmeza. − Nós vamos esperar aqui por alguns amigos que moram próximo.
  Ele sacudiu a cabeça, um pouco mais convencido. Janish pagou, e nós descemos do táxi.
  − Agora estamos sozinhos. − ele respirou.
  − Não acha que vão nos descobrir pelo taxista?
  − Não. Nós vamos estar muito longe daqui.
  Janish beijou a minha mão direita e em seguida começou a correr me puxando e ignorando os meus protestos.
  Depois de andar por cinco quilômetros, nós chegamos a uma floresta extremamente linda e encantadora com suas árvores imensas e o solo coberto de neve. Era uma floresta conífera, com os pinheiros e abetos mais lindos que eu já havia visto. O vento frio fazia as minhas bochechas arderem e os meus cabelos dançarem, meus pés estavam gelados e doendo, mas eu não queria parar agora, queria achar logo um bom lugar.
  Nós seguimos por uma longa trilha íngreme e escorregadia, que parecia que nunca ia ter fim. Eu já sentia dor em cada centímetro do meu corpo, e agradeci por Janish estar indo na minha frente, afastando os galhos das árvores. Ele não parecia nem um pouco cansado, e fazia questão de conversar comigo durante toda a viagem, talvez para ter certeza de que eu não ia fugir. Num dado momento, ele perguntou:
  − Você está cansada?
  − Um pouco, mas vamos continuar.
  Então ele parou.
  − Podemos descansar um pouco.
  Coloquei uma mecha do meu cabelo para trás, e suspirei. Por algum motivo estranho eu estava sentindo raiva.
  − Janish, não podemos perder tempo.
  Seus olhos brilharam adoráveis.
  − Não vamos perder tempo. Venha, não vamos demorar.
  Então ele caminhou para a direita e se embrenhou na mata. Eu o segui, contrariada, pois não podia permitir que ninguém nos descobrisse. Quando o encontrei, ele estava sentado embaixo de uma árvore destapando uma garrafa d'agua.
  − Venha, Melissa.
  Sentei ao seu lado e ele me passou a garrafa. Ao tomar o terceiro gole, eu me dei conta de que precisava economizar. Janish pegou-a de volta e bebeu um pouco também antes de guardá-la. Em seguida me puxou para os seus braços, me segurou e eu fiquei escutando o seu coração.
  − Você tem medo? − ele perguntou.
  − Eu tenho medo que alguém nos encontre. − murmurei. − Não quero que nos separem e tampouco quero voltar à Regina.
  − Eu também tenho medo por isso. − confessou.
  De repente o meu coração ficou pequeno, e eu procurei os seus olhos. Eles estavam obscuros e tristes.
  − Janish, haja o que houver, eu não vou permitir que ninguém me separe de você.
  Agora ele sorriu.
  − Eu também não. Juro que vou fazer o impossível para cumprir isso. Nunca vamos estar separados.
  Ele sorriu com ternura e me beijou, me deixando completamente perdida e feliz e me fazendo esquecer a dor que havia em meu corpo. E eu não queria parar, não queria que ele parasse. Aquele momento era tão perfeito, estávamos sozinhos e entregues um ao outro e não era como no colégio,  não havia ninguém que pudesse nos encontrar e nos castigar. Suas mãos estavam na minha cintura e as minhas acariciavam o seus cabelos. Foi como estar em um sonho lindo, vivendo um momento mágico.
Mas precisávamos seguir adiante.
  − Amor... Amor... − ele tentou falar entre meus beijos. − Precisamos... Ir...
  − Hum... Não...
  Relutante, eu parei e nós voltamos para a trilha. Andamos por mais uma hora e encontramos uma pequena clareira coberta de neve entre alguns altos pinheiros. Janish jogou sua mochila no solo frio e eu repeti o gesto. Estávamos muito longe de casa agora.
  − Parece um bom lugar. − eu disse confiante. Janish sorriu e me deu um beijo gelado. Em seguida começou a esvaziar a sua mochila, retirando primeiro uma linda barraca de acampamento preta.
  − Se não estou enganado, perto daqui, ao norte há um lago congelado. − Agora ele retirou fósforos e uma pequena panela, onde deveriam caber dois litros de água. − Quando precisarmos de um banho, podemos ir até ele e esquentar água.
  Ele começou a montar a barraca.
  − Estou feliz que você tenha pensado nisso. Eu realmente não havia pensado.
  Eu olhei para as minhas mãos e me dei conta de que pensei apenas nas pessoas que eu estava deixando para trás. Algo se moveu perto de mim e eu logo senti os seus braços em volta da minha cintura, e em seguida o seu dedo indicador levantou suavemente o meu queixo. Minha cabeça latejava agora.
  − Ei, não fique assim.
  Olhei para o meu namorado e aquele olhar quente me dizia que tudo ia ficar bem.
  − Nós vamos ficar bem, eu prometo. Juro que vou cuidar de você e que nós vamos voltar para todas as pessoas que amamos. − ele me abraçou forte, enterrando seu nariz em meu cabelo. − Esse é o problema, não é?
  Fiz que sim com a cabeça.
  − Sinto falta do meu padrinho. Ele deve estar muito preocupado.
  Janish me abraçou mais forte.
  − Tente não pensar nisso. Tudo vai ficar bem, e quando voltarmos, o seu padrinho ficará muito feliz.

  Quando a noite chegou, nós tínhamos a nossa barraca pronta, uma fogueira para nos aquecer por um tempo e estávamos comendo uma deliciosa sopa enlatada acompanhada por chá preto, coisas que Janish havia trazido de sua casa. Tínhamos vinte latas de sopa e o plano era consumir uma por dia e no final talvez refazer o caminho de volta e procurar um supermercado para comprar algo parecido. Nossos calçados, que antes estavam gelados, agora estavam mais quentes e confortáveis. Além disso, quando Janish ficou ocupado tratando de juntar galhos para a fogueira, eu tratei de lançar alguns feitiços de proteção de Destiny Hope, e agora eu me sentia um pouco fraca. Talvez tenha sido magia demais pra mim.
  − Você está jantando. − disse Janish, com o olhar cheio de dúvida, ou talvez medo de me magoar.
  Eu agarrei a coberta embaixo de mim e senti as folhas de pinheiro machucando levemente os meus dedos. Janish teve a ideia de cobrir o chão com folhas para que pudéssemos sentar e também deitar. Em um momento diferente, eu também teria tido tal ideia.
  − Sim, eu sinto que há coisas que eu posso superar, que eu devo superar. Não posso mais me comportar como uma criança.
  Senti um grande alívio quando acabei de falar e percebi que os meus olhos cor de mar estavam orgulhosos.
  − Eu sabia que você ia conseguir. Mas algo me diz que você tem outras coisas para superar.
  Levei uma colherada de sopa à minha boca. Ele tinha razão. Eu não podia ter tantos segredos com o meu namorado. Ele me amava e eu o amava plenamente, e então se eu não podia contar o segredo de Aurora, eu podia contar pelo menos os meus segredos, ou senão, que tipo de relação eu poderia ter com ele? Não seria realmente uma relação verdadeira.
  − Sim.
  − Tem a ver com o seu pai? Você sempre me fala sobre o seu padrinho, mas nunca sobre o seu pai.
  − Janish, o meu pai casou com a filha do meu padrinho e isso foi devastador para a minha mãe e para mim. No fundo, minha mãe sabia que meu pai amava a Shannon, mas foi uma surpresa enorme para mim. Em um momento eu tinha a minha família comigo, mesmo que imperfeita, e no momento seguinte eu já não tinha. Minha mãe começou a trabalhar e então eu ficava a maior parte do tempo sozinha, já que ela trabalhava à noite na lanchonete e dormia durante o dia. Às vezes eu ficava muito tempo sem vê-la mesmo morando na mesma casa. − Janish estava imóvel como uma estátua, e estava realmente concentrado na história. − Depois do segundo ano, Regina melhorou um pouco, ficou... até um pouco carinhosa e eu pensei que tudo ia ficar bem. Mas um dia eu cheguei do colégio e a encontrei morta no banheiro. Ela cometeu suicídio.
  Surpreendentemente, eu não tive vontade de chorar. Talvez alguma coisa estivesse realmente mudando dentro de mim. Eu nunca tinha contado a minha história a ninguém e de repente eu contei e me senti mais leve, mais aliviada. De pronto, ele não disse nenhuma palavra. Esperou alguns instantes, soltou o seu prato na neve e veio para perto de mim. Passou o seu braço pelo meu ombro e me puxou para si.
  − Eu só quero que você saiba que pode contar comigo para qualquer coisa, e que pode também me contar qualquer coisa. Eu sei que não posso ajudar você, não posso trazer a sua mãe de volta, mas se pudesse eu faria, só para não ter que te ver triste.
  Seu polegar roçou a minha bochecha, e seus lábios, beijaram a minha têmpora.
  − Obrigada. − eu disse, tímida. − Você me ajuda só por existir. Eu nunca pensei que pudesse contar isso a alguém.
  − Você pode sempre me contar tudo o que quiser.
  − Janish, alguma vez você se sentiu realmente sozinho? Como se não pudesse contar com ninguém?
  Ele confirmou com a cabeça.
  − A minha vida toda. Isso só acabou quando conheci você. E comecei a sentir que a vida podia ser diferente.
  Eu sorri confiante, e esperançosa de que finalmente ia conseguir ser feliz outra vez. Janish e eu conversamos por mais alguns momentos e finalmente adormecemos.
 
    Eu corria alegremente por uma rua em Aurora repleta de transeuntes, vestidos com roupas claras e amarrotadas, fugindo de um garoto com olhos verdes brilhantes que aparentava ter doze anos de idade. O garoto corria velozmente e não parava de rir. No muro da esquina da rua, três Poliguadores bicavam alguma coisa, ao mesmo tempo em que uma senhora comprava utensílios domésticos em uma das lojas. Justo quando eu iria passar por ela, o vendedor estendeu uma grande panela, me fazendo tropeçar e cair, fazendo um grande estardalhaço entre as pessoas e causando muito barulho.
  − Querida... Ah! − exclamou a mulher, assustada, enquanto o velho vendedor também se aproximava. Ela tinha uma aparência horrível, com cabelos brancos desgrenhados e dentes negros e fedidos. Estendeu-me sua mão e eu a peguei sem hesitar. Em outro momento, talvez eu tivesse me assustado.
  O garoto que me perseguia, parou diante de mim imediatamente, com olhos absurdamente assustados.
  − Você está bem? − ele arfou, enquanto a senhora amarrotada me ajudava a levantar. Senti uma dor aguda no joelho e quando verifiquei, vi que sangrava muito, e inclusive manchava o vestido branco impecável que eu usava.
− Uhhhhh− o vendedor grunhiu, de um modo temeroso. − Por favor, Nobre Senhorita, não me acuse, por favor, não me acuse!
  Ele se ajoelhou chorando diante de mim elevando e abaixando os seus braços como se eu fosse algum tipo de majestade. Todas as pessoas que passavam pararam, e olhavam com expressões amedrontadas e horrorizadas. Alguns também demonstravam pena.
  − O que estão olhando? − o garoto gritou com autoridade. − Voltem aos seus afazeres!
  E estranhamente, as pessoas voltaram a caminhar normalmente como se nada tivesse acontecido.
  − Não me acuse, Senhorita, não me acuse! − ele continuou choramingando e movendo os braços.
  − Do que o senhor está falando? Não vou acusá-lo.
  Ainda assim, ele não se acalmou. Agarrou uma de minhas mãos com os seus dedos sujos e nodosos e continuou implorando como se eu fosse alguém capaz de tirar a sua vida por causa de um acidente.
  − Ora, pare com isso! − gritou a velha senhora. Em seguida voltou-se para mim e disse com uma voz amável. − Querida, peço que entre na loja com o seu amigo, para que possamos tentar acalmar esse velho estúpido. – Ela foi ríspida no final da frase. Eu assenti levemente e entrei na loja seguida por Jess, que segurou a minha mão. Era uma loja terrivelmente desorganizada e empoeirada que vendia utensílios culinários, panelas de todos os tamanhos, caldeirões, talheres em madeira, jarras, copos. Eu podia dizer que era uma loja feita especialmente para quem não tem grande poder econômico. O velho senhor ainda soluçava, enquanto a senhora tentava acalmá-lo gritando com ele.
  − Ora cale essa boca, seu velho estúpido!
  − Eu... Feri... Uma... Nobre... − ele grunhiu.
  − E se a Guarda Real estivesse por perto você poderia estar morto agora. − Jess disse.
  O velho se jogou aos meus pés.
  − Não diga isso, Jess! − eu gritei, e peguei uma das mãos do senhor na tentativa de acalmá-lo.
  Jess deu um muxoxo de insatisfação e começou a bater um de seus pés.
  − Nobre Senhorita, por favor... Não me entregue...
  Agachei-me em frente a ele, tomando cuidado pelo meu joelho machucado, procurei os seus olhos assustados e toquei a sua bochecha.
  − Não se preocupe, eu não vou dizer a ninguém.
  Minha mão ficou encharcada.
  − Não seja imbecil, homem! − a senhora berrou, puxando-o pelo colarinho da camisa esfarrapada. − A menina... A menina nunca faria mal a você. Em que mundo você vive? Pare de chorar agora mesmo, ou alguém pode acionar a Guarda Real.
  − Tem razão... Tem razão...
  Ele limpou o rosto com a manga da camisa e se levantou tremendo. Senti uma grande tristeza, um vazio no peito, alguma coisa que me dizia que eu tinha que fazer algo por ele apesar do meu joelho machucado. Não devia ser permitido viver com tanto medo.
  − Vamos embora. Precisamos cuidar do seu ferimento. − Jess disse, e pegou novamente a minha mão. Eu me despedi e logo, retornamos à rua repleta de transeuntes.
  No momento seguinte eu já não estava mais lá.
  Eu estava em uma barraca gelada, sentindo o meu joelho doer, ainda que não estivesse realmente machucado. Que sonho havia sido aquele... Os cobertores que Janish e eu havíamos trazido não eram suficientes para nos aquecer. Eu me virei inquieta, procurando-o na nossa cama de folhas de pinheiro, mas alguma coisa estava errada. Eu estava sozinha.
  − Janish! − gritei apavorada. Ele não podia ficar caminhando pela floresta, algum animal poderia vê-lo e...
  − Janish!
  Levantei tão rápido que cheguei a tropeçar e quase caí. A floresta estava tão escura quanto o interior da barraca e então eu me lembrei de agarrar a lanterna que Janish havia deixado separada na entrada da barraca. Demorei alguns segundos para encontrar o botão da lanterna tal o meu desespero e quando a luz amarelada iluminou parte da floresta, eu fiquei ainda mais aterrorizada, porque eu não conseguia ver nada além de árvores e neve.
  − Janish! − eu gritei tão forte que senti que podia estourar os meus pulmões. Comecei a andar desesperada.
  Definitivamente ele não podia ter ido assim e me deixado. Ele poderia ser atacado por algum animal na floresta, pelo menos na barraca, nenhum animal ia nos achar. Ou talvez... Talvez ele tivesse se cansado de mim e quisesse voltar para o conforto da sua casa. Afinal, que motivos ele teria para fugir comigo e ficar longe de sua família e de seus amigos? Tal ideia me fez ficar enjoada e confusa. Será que eu podia pensar isso dele? Continuei andando e gritando o seu nome, mas nada acontecia. As lágrimas começaram a rolar. Se eu tivesse que ficar sozinha, não iria suportar.
  − Janish!
  Agora eu comecei a correr sem rumo, ofegante, sentindo o vento frio cortando o meu rosto e, meus joelhos doendo, meus dedos, meus braços, minha cabeça. Meu corpo inteiro doía com a ideia de perdê-lo. Eu, que já havia perdido tantas coisas, minha família, minha mãe, não poderia perder o meu namorado assim.
  Mas então algo me deteve. Bati de frente com ele e uma onda de alívio me percorreu. Seus braços quentes me envolveram num abraço antes que eu caísse ao chão e em seguida seus dedos procuraram as minhas lágrimas. Sua voz disse suavemente:
  − Acalme-se... Estou aqui.
  Eu não conseguia entender o que eu mesma dizia. Poucas vezes na minha vida eu havia ficado tão desesperada, triste e confusa. Minha cabeça doía cada vez mais, e meu corpo estava pesado e cansado.
  − Por que fez isso? − perguntei começando a me acalmar. − Por que você saiu da barraca?
  Mesmo no escuro, eu pude ver os seus olhos brilhando.
  − Eu ouvi um barulho, − ele falou, preocupado. − e saí para verificar.
  − Para verificar? − gritei. − E o que você faria se fosse um urso? Ou outro animal? Nem ia poder voltar para me contar...
  − Melissa eu... Acho que agi por impulso. Sei o que poderia ter acontecido, mas... Eu estou bem. Vamos voltar para casa.
  − Não faça isso nunca mais! − ordenei. Ele levantou os braços em defesa.
  − Ok. Eu prometo solenemente que não vou fazer isso nunca mais. − Mas havia certo humor em seu tom de voz.
  − E não brinque com isso. Você me assustou!


AuroraWhere stories live. Discover now